Há anos que o Valentim Fagim empreendeu uma viagem pela língua com várias paragens na Filologia, no ativismo e na docência. O seu amor pelos livros levou-o a bom cais, desenvolvendo também as facetas de livreiro, editor e escritor.
O homem por trás de tantas entrevistas do PGL é hoje entrevistado para falar da sua última publicação Estou a estudar português, Através Editora, 2022; uma viagem para quem quiser encurtar uma distância entre A (o que já sabemos) e B (o que queremos aprender).
René Magritte em Ceci n’est pas une pipe fez uma declaração de intenções. No teu livro afirmas que Estou a estudar português não é uma gramática. Será que intimida a palavra “gramática”? Qual é o propósito do manual?
A maioria das gramáticas está focada para uma pessoa do Brasil ou de Portugal e envolve a gramática da palavra (substantivo, artigo…), da frase e do texto. Ora, sou professor de português LE, língua estrangeira, e as pessoas que fazem parte das turmas precisam de informações que uma nativa já conhece e de muitas outras que uma gramática não tem porque integrar.
Este manual tenta reunir esses saberes que precisamos a partir da nossa realidade linguística, quer sejamos falantes de galego, quer de castelhano. Estes saberes costumam aparecer em diferentes materiais, de boa qualidade, mas é pouco habitual aparecerem reunidos. Este nosso livro recolhe não apenas o que as pessoas entendemos por gramática, mas também reflexões sobre o que implica estudar português, dicas sobre fonética e a ortografia bem como aspetos significativos relativamente ao léxico. Enfim, é um mapa.
Do ñ para o nh, Estou a estudar português, 101 Falares com jeito… os referentes deste tipo de publicações na Galiza são poucos. Achas que os manuais que existem não costumam ter em conta o marco especial de aprendentes de português na Galiza?
A imensa maioria dos manuais, e doutro tipo de textos de português LE, são criadas em Portugal e não focam a realidade galega, dado este mercado ser, ainda, menor. Existem cada vez mais, úteis também para a turma galega, materiais para a comunidade de expressão castelhana. Não é por acaso. 70% das pessoas, no Reino de Espanha, que estão neste momento a estudar português são da Estremadura, uma comunidade de um milhão de habitantes onde o seu governo, em contraste com o nosso, decidiu que o português ia ser importante, e está a sê-lo. Lá, todas as Escolas de Idiomas oferecem português, quase todos os centros de secundário e ainda muitos de primário. Quando o governo galego faça metade do que o estremenho, aflorarão, quão crisântemos na primavera, materiais impressos para as nossas turmas.
Pensas que esta publicação pode ser uma pequena semente para existirem mais manuais com o foco na Galiza?
Cada vez há mais oferta educativa em português, nomeadamente no ensino secundário, graças ao entusiasmo de muitas e muitos professores de galego, ou ainda de outras cadeiras. O grande desafio é criar um manual para essas turmas, um manual que lhes faça sentir o português como um presente que nasceu na Galiza e que está ao alcance dos seus dedos e, ao mesmo tempo, que lhes faça mexer os pés, como se fosse uma borboleta brincalhona. Lindo desafio, não é?
Quem já trabalhou com o Do ñ para o nh, o que pode encontrar de novo em Estou a estudar português?
Quando criamos um livro pensamos em quem o vai ler. Com Do ñ para o nh eu pensava em pessoas instaladas no galego mas que vivem esta língua na sua forma extensa, interligada com a variedade do Brasil ou de Portugal, ou em pessoas que estavam ou podiam estar no processo de mutação, aproximando-se desta forma de viver o galego.
Pouco depois de sair o tal livro, uma amiga enviou-me uma foto dum aluno de português em Barcelona a ler o livro. É evidente que o livro podia ser útil para uma pessoa não galega, ou para uma pessoa galega instalada no castelhano, mas eu não pensei neles ao elaborá-lo. Agora sim.
Do ñ para o nh é um manual com o esquema teoria/prática. A prática também está presente em Estou a estudar português mas o foco é mais abrangente e mais ambicioso.
No campo da ortografia, da gramática e dos conetores, temos muitas mais informações. Na esfera fonética foi o nosso intuito recolher o essencial que devemos saber, e praticar, para produzirmos o sotaque português e brasileiro.
No campo da ortografia, da gramática e dos conetores, temos muitas mais informações. Na esfera fonética foi o nosso intuito recolher o essencial que devemos saber, e praticar, para produzirmos o sotaque português e brasileiro.
Na área lexical não recolhemos vocabulário em áreas semânticas, trabalho abordado no Dicionário Visual, mas respondemos perguntas: o que se espera que saibamos? onde podemos escorregar?
Com um estilo muito pessoal e cativante na redação, consegues que viajemos acompanhadas da Joana, a Rosa e o António. Quem são eles? Comenta-nos um bocado a organização interna do livro.
A questão é: o português para quê? para que estudo português? No livro aparecem quatro alunos. António é da Estremadura e para ele o português é uma língua estrangeira, tal como para mim o inglês ou o catalão. É um saber externo que não faz parte, quase nunca, do seu dia a dia. É um oceano onde se navega de vez em quando, em maior ou menor medida segundo a biografia e o entusiasmo das pessoas.
Por seu lado, a Joana e a Rosa são galegas. A Rosa é de Vigo e a sua relação com o português é, mais o menos, parecida com a do António. Por ser galega há muitos conhecimentos que já possui no primeiro dia de aulas, graças nomeadamente à matéria de língua galega do ensino obrigatório, conhecimentos que o António vai ter de integrar.
A Joana é de Melide, está instalada no galego, é a língua em que se expressa. Ora, o seu input, em contraste com a da Joana, não é em castelhano mas em português do Brasil e de Portugal. Ela interage com filmes, séries, canais YouTube, canais TikTok, apps, jogos on-line, literatura, ensaio, wikipédia, tutoriais, pesquisas na Rede… em português.
Rosa e Joana são categorias mas a realidade, como sabemos, é gradual. Existem Joanas e Rosas nas aulas galegas mas em muitas ocasiões há feições intermédias entre ambas. É comum, as pessoas que estudam português na Galiza, terem uma sentimento positivo com o galego e o facto de aprenderem português é uma manifestação do seu sentir.
Depois, esquecias o Duarte, o aluno picuinhas, de que não sabemos a sua origem embora se possa intuir.
O livro tem 6 grandes áreas como se pode ver no índice. Em A preparação da viagem, conversamos sobre o sentido da viagem de estudar português e damos algumas dicas para ganhar autonomia. A seguir, a viagem em si, inclui Fonética, Ortografia, Gramática, As palavras e Articulando o texto. Quase sempre, as indicações que damos são para a turma toda, mas nem sempre.
Que conselho dás a quem tiver agora o manual nas mãos?
Ao longo da história, e mesmo no ano em que estamos a viver e respirar, a forma mais comum de aprender línguas não ocorre por meio de ensino formal e de livros. As pessoas aprendem usando.
Este manual é o livro que eu gostaria de ter quando comecei a navegar no português porque precisava dum mapa. Ora, línguas não são apenas aulas e exames, felizmente. O meu conselho é navegarmos e isto nunca foi tão fácil. Quando se estuda uma língua é fundamental entregar-lhe fragmentos da nossa quotidianidade. Quando ações que fazemos habitualmente em castelhano, e isto vale para o António e para a Rosa porque a Joana já faz, passam a ser feitas em português, o nosso navio ganha velocidade, chegamos a ilhas maravilhosas e o esforço, para além de ser escasso, é amplamente retribuído.
Naveguemos.