No mês de janeiro começava o ano chinês do rato. Esta foi a última notícia que tive sobre a China antes da crise da covid-19, mas a palavra rato não deixou de me acompanhar por várias razões. Primeiro pela minha experiência docente como professora de Língua Portuguesa e em segundo lugar por um reencontro que tive com os Pixie e Dixie recentemente.
No que diz respeito à primeira razão, na minha prática profissional vejo o abandono da língua e o seu desconhecimento. Não é estranho ouvir decalques, construções que constituem uma tradução literal do castelhano. Uma delas, muito repetida, é com a palavra rato. “Venho dentro de um rato*”, “Depois de um rato*”, “Esperar um rato*”…
Passe a confissão de professora, o segundo dos motivos, o dos Pixie e Dixie, vem também à tona por motivos linguísticos. Como disse, há pouco voltei a visionar os desenhos animados que estes dois pequenos mamíferos protagonizam. Suponho que a minha recente maternidade me fez pesquisar conteúdos para crianças na net e dei por mim a ver novamente as aventuras da dupla de ratinhos. As opções de lazer em confinamento já toda a gente as conhece e saiu logo a deformação profissional: procurei o mesmo episódio em várias línguas. Fiz uma pausa no espanhol. Aquilo deu-me curiosidade e andei a procurar mais informações na Wikipédia.
Cresci a consumir produtos da Hanna Barbera, mas, confesso, não os recordava assim. Foi uma surpresa revisitar este clássico e ver que na dobragem espanhola o Pixie tinha sotaque mexicano, o Dixie falava como um cubano e o gato Jinks evidenciava uma reconhecível pronúncia andaluza.
Foi uma surpresa revisitar este clássico e ver que na dobragem espanhola o Pixie tinha sotaque mexicano, o Dixie falava como um cubano e o gato Jinks evidenciava uma reconhecível pronúncia andaluza.
Quem como eu é do tempo do Mighty Mouse, Topo Gigio, Speedy González ou outros ratos famosos…viveu exposto na sua infância a muitas variedades do espanhol na grelha televisiva e automatizou isto. Entendemos esta língua como um código consolidado e percebemos toda a sua variedade linguística. Já com “venho dentro de um rato*” a coisa muda. Por um lado, leva tempo saber que aquilo é um desvio em galego, por outro, muitos falantes não se reconhecem na norma. A razão pode ser por falta de consolidação, mas também por falta de exposição ao código. Grande parte dos nossos produtos de consumo cultural não estão na nossa língua e isto agrava a substituição linguística.
2020 é também o ano dedicado a Carvalho Calero. Depois de décadas de reivindicação, a Real Academia Galega decidia homenagear o escritor de Scórpio. Exposições, reedições de livros e outros atos iriam comemorar o seu labor nas nossas letras e nem só: a estratégia reintegracionista viria a ser visibilizada. É por isto que muitos e muitas de nós recebemos a notícia como uma grande oportunidade. Carvalho Calero possibilita um diálogo, um encontro entre posturas que eram como o gato e o rato. Este ano permitiria normalizar o consumo cultural com nh e abrir a via para tratar a proposta binormativista.
Com a crise da covid-19 o calendário para todos os eventos programados fica alterado. Nesta situação extraordinária temos duas vias possíveis: concentrar todos os esforços para outono ou bem levar o ano Carvalho Calero até 2021. Com centros de ensino, bibliotecas e livrarias fechadas parece difícil que todas as atividades agendadas possam vir a ser concretizadas. Várias vozes do mundo da cultura pediram recentemente que Carvalho Calero não seja novamente confinado. Levar estes eventos a 2021 é de justiça porque a figura ícone do reintegracionismo merece ser homenageada em condições.
Várias vozes do mundo da cultura pediram recentemente que Carvalho Calero não seja novamente confinado. Levar estes eventos a 2021 é de justiça porque a figura ícone do reintegracionismo merece ser homenageada em condições.
A nível estratégico, conhecermos a obra do filólogo e escritor ajudaria a termos maior intercâmbio com os países lusófonos. Ler e ouvir textos nesses formatos pode fazer-nos recuperar e reforçar usos. A sociedade galega precisa de mais contacto com outras variedades da sua língua para perceber um dos muitos (e desconhecidos) valores que ela tem: a sua extensão.
A sociedade galega precisa de mais contacto com outras variedades da sua língua para perceber um dos muitos (e desconhecidos) valores que ela tem: a sua extensão.
E se Pixie, Dixie e Jinks falassem à galega, à brasileira e à portuguesa? O que teria acontecido se tivéssemos crescido com este tipo de produtos culturais? Qual seria a nossa autoestima? Se me permitirem a metáfora, talvez a nossa língua tivesse saído da toca.
[Este artigo foi publicado originariamente em Nós Diario]