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4. Almedilha
4.1. Introdução
Outubro de 2008. Gravação do documentário “Entre Línguas”. Chegámos a Almedilha, vindos de Portugal. Ir das Batocas, a aldeia vizinha, ainda portuguesa, a Almedilha, é um passeio ameno que atravessa campos com árvores dispersas e um ribeiro. Aqui a Raia é menos visível do que em qualquer outro sítio.
Descemos do carro e encontramos duas idosas à porta da casa a falar entre elas de qualquer problema doméstico. Estavam a falar em português, mas ao repararem na nossa presença, traduziram o anteriormente dito entre elas para um castelhano salamanquino… Uma gravação que, a priori, parecia dificultosa, finalmente não o seria.
Perguntámos pola casa do Presidente da Câmara, Julián González Reyes. O autarca recebeu-nos amavelmente. O Julián, apesar de não ser novo, pertence já à geração que foi educada em castelhano. “Aos irmãos mais velhos os pais falaram-lhes o português, mas a mim sempre me falaram o castelhano” confessou na língua de Cervantes.
O Julián procurou-nos como guia o Emilio, um cicerone fiel e simpático, que nos acompanhou todo o tempo. Era um reformado castelhano-falante, que fora emigrante em Bilbau. O Emilio levou-nos em primeiro lugar a falar com a Consuelo, uma das irmãs do Presidente da Câmara.
A Consuelo falava num português de fonética aberta, que qualquer um identificaria primeiramente com alguma fala galega da costa ocidental ou da Raia Seca. Esta mulher adorável converter-se-ia na protagonista do nosso documentário. Infelizmente, quis o azar que falecesse aos poucos meses de ser filmada.
Um outro “guia aborigem” foi o Pepe, uma pessoa de afabilidade e alegria transbordantes, longe da idiossincrasia que se atribui aos castelhanos e mais próximo do tópico do português, mesmo que neste idioma apenas conseguisse dizer frases curtas ou palavras soltas. Com ele e outros almedilhenses acompanhamos as vacas do senhor Amadeo, de Almedilha, através da herdade do Pedrés, até Itoiro1. Pedro Martínez González “Pedrés”, nascido em Albacete, tinha sido toureiro, ainda que a fortuna, segundo se dizia, não a encontrasse na tauromaquia, mas numas bombas de gasolina que abriu em Madrid com os ganhos das touradas. O monte que atravessamos nesta curta transumância era o típico montado mediterrânico dedicado à criação de porco ibérico e gado vacum, tão frequente na Estremadura espanhola e no Alentejo português. Este trilho permitiu-nos observar e filmar o monte Xalma a partir de Almedilha. Não por acaso, Clarinda de Azevedo Maia tinha tratado conjuntamente os dialetos de ambos os territórios2.
Almedilha (oficialmente La Alamedilla) é um concelho da província de Salamanca com uma superfície de 19,34 km² e que está situado no centro da bacia do rio Guadahortuna, sobre terreno chão e rodeado de outeiros de pouca altura, dos quais se podem observar magníficas paisagens de veigas e montados.
Almedilha (oficialmente La Alamedilla) é um concelho da província de Salamanca com uma superfície de 19,34 km² e que está situado no centro da bacia do rio Guadahortuna, sobre terreno chão e rodeado de outeiros de pouca altura, dos quais se podem observar magníficas paisagens de veigas e montados.
O concelho vive desde meados do século XX um acentuado declínio demográfico, tendo passado de 839 (1950) a 140 habitantes (INE 2017). No momento da gravação teria recenseados cerca dos 200 moradores (191 no INE 2011).
A economia de Almedilha está baseada no setor agropecuário. Antes tinha muita importância o contrabando e o comércio com Portugal, existindo várias lojas e padarias na localidade, agora desaparecidas.
4.2. Descrição da variedade linguística
Em Almedilha falou-se tradicionalmente um dialeto português, que ainda se conserva entre as pessoas mais velhas3. Esta variedade está próxima do português do concelho do Sabugal, segundo Leite de Vasconcelos4, que afirmava existir grande semelhança entre as falas de Almedilha, o Xalma e a pronúncia familiar beiroa do Sabugal. Entre as coincidências assinalou: A inflexão do /e/ final átono em /i/, a pronúncia indistinta de b/v, o ditongo arcaico português -ui- reduzido a -u-, etc.5
Mas também em Almedilha a hibridação com o castelhano deixou a sua pegada, registando-se fenómenos fonéticos como a “gheada”6 ou formas verbais castelhanizadas7.
Trata-se, de qualquer modo, dum português pouco “fechado” e facilmente compreensível para os galego-falantes. Os almedilhenses costumam contar vivências com os galegos na emigração ou na tropa em que não havia qualquer dificuldade de comunicação mútua na fala própria de cada um. Os lusófonos de Almedilha conhecem o português moderno e empregam neologismos portugueses8. O português conserva para eles a função de língua teito, sem dúvida devido a um relacionamento intenso e íntimo com Portugal.
4.3. Origem desta variedade linguística
Desconhecemos a origem certa desta variedade linguística, mas pressupomos que Almedilha deveu pertencer ao Condado Portucalense ou ao Reino de Portugal na primeira reconquista, como toda a região transcudana. Tenhamos também em conta que os territórios transcudanos se estendiam muito para além do Coa9.
A conquista aos mouros da região do Riba Coa é um facto obscuro. Segundo a História dos Godos, Fernando I conquistaria aos mouros algumas vilas transcudanas no ano 103910. Frei Bernardo de Brito, no segundo volume da Monarchia Lusitana11, data este feito dez anos depois. Mas também há quem diga que a conquista do território foi feita por D. Afonso Henriques12 ou algum dos reis da Dinastia de Borgonha, possivelmente, D. Sancho I13 ou D. Sancho II14. Herculano assinala que nos fins do séc. XII a fronteira entre Portugal e Leão ainda não era uma linha mais ou menos nítida e precisa15. Em qualquer caso, por motivos poucos claros, estas terras passaram depois a domínio galaico-leonês, até que, em 12 de setembro de 1297, é assinado o Tratado de Alcanizes16 entre D. Dinis de Portugal e Fernando IV de Leão e Castela, que define a fronteira entre os dous reinos e a região retorna à Coroa Portuguesa.
Segundo uma hipótese muito discutível de Lindley Cintra, reelaborada por Azevedo Maia17, o Riba Coa (incluindo Almedilha e a região de Xalma) teria sido repovoado polo mosteiro de Santa Maria de Aguiar com “colonos galegos”18. Mas não existe qualquer prova documental desta “repovoação”, que, por outra parte, nada explicaria, pois ninguém seria capaz de diferenciar as falas galegas das portuguesas no século XIII, no suposto destes “colonos galegos” pertencerem a um território incluído na atual Galiza administrativa (ou nos territórios das províncias espanholas limítrofes). Aliás, esta hipótese baseia-se em conceitos como “Reconquista”, “repovoação” ou a “teoria do ermamento”, hoje amplamente questionados19.
Achamos, destarte, que a origem do português almedilhense não se pode desligar da dos dialetos da vizinha região de Xalma. Sendo determinantes, na sobrevivência desta fala, a dependência eclesiástica do Sabugal (Vidal Matías afirma que, ainda no século XVIII, o arcediago da vila portuguesa do Sabugal cobrava os dízimos de Almedilha20) e a situação geográfica da vila. A localidade portuguesa das Batocas fica a menos de 2 km, enquanto Puebla de Azaba, a povoação salamanquina mais próxima, fica a quase 9 km. A língua ver-se-ia assim reforçada por um ativo relacionamento humano (comércio, contrabando, casais mistos…).
4.4. Análise sociolinguística
Dizia Sánchez Aires em 1904: “usan un traje muy especial, y se habla el portugués mas que el español, teniéndose casi, casi por lusitanos, pues hay quien dice cuando van pocos del país á su fiesta popular «N’ este anno ham venido a nossas festas poucos castessaos (sic) »”21.
Na altura das gravações, este dialeto apenas sobrevivia como língua de comunicação habitual entre as pessoas mais velhas, que mudavam espontaneamente de língua ao perceberem a presença de estranhos.
O dialeto de Almedilha, oral e ágrafo, carece de qualquer uso culto. Não obstante, entre os seus utentes existe consciência de falarem português. Por exemplo, ao serem registados em vídeo, a tendência maioritária era tentar falar um português padrão. Este atua, logo, para eles como língua teito.
O dialeto de Almedilha, oral e ágrafo, carece de qualquer uso culto. Não obstante, entre os seus utentes existe consciência de falarem português. Por exemplo, ao serem registados em vídeo, a tendência maioritária era tentar falar um português padrão. Este atua, logo, para eles como língua teito.
Ainda que não existe qualquer associação que procure a recuperação da língua e da cultura próprias, entre 1985 e 1995 foi editado El Atraso (Anuario independiente de fronteras y novedades)22, uma humilde publicação local que incluía algumas palavras ou frases portuguesas, escritas quer com ortografia castelhana, quer com ortografia portuguesa23.
Para além de falantes espontâneos (que se podiam contar com os dedos das mãos em 2008), também existem pessoas mais novas capacitadas para falarem o português, pessoas que apesar de serem filhos de lusófonos, já aprenderam o português por contato com portugueses e não dentro da própria família.
Um outro dado de interesse é a consciência por parte dos últimos falantes de Almedilha de se exprimirem numa língua internacional que lhes permite comunicar-se em Portugal… E, também, na Galiza.24
Julgamos que a instauração traumática em 1936 da ditadura franquista deveu acelerar o processo de substituição linguística em Almedilha. Processo ao que contribuíram de forma importante o impulso à escolarização que se viveu no século XX, assim como a forte emigração, as missas em castelhano e a chegada massiva dos média (rádio, televisão). Fatores todos eles que contribuiriam para a instauração dum forte complexo de inferioridade linguística entre os falantes de português25. Como já previamente assinalamos, há décadas que não existe transmissão da língua de pais a filhos. Numa mesma família, os irmãos mais velhos (com mais de setenta anos em 2008) foram educados em português, enquanto os mais novos foram educados em castelhano26.
Esta variedade linguística carece de reconhecimento oficial e de legislação protetora dos direitos linguísticos dos seus falantes.
Portanto, o português de Almedilha é praticamente passado. Uma fala morta ou agonizante.
1 Denominação local de Ituero de Azaba.
2 Maia C. de Azevedo (1977) Os falares fronteiriços de concelho do Sabugal e da vizinha região de Xalma e Alamedilla, Instituto de Estudos Românicos da Faculdade de Letras, Coimbra.
3 Ou se conservava na década passada… Tal é a situação terminal desta fala.
4 Leite de Vasconcelos, José (1930) Linguagem portuguesa de Alamedilla ou Almedilha. Extracto del homenaje a Bonilla y San Martín. Tom. 2, pág. 627-631. Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Central, Madrid.
5 Martín Galindo José Luis A Fala de Xálima. Variante dialectal do português da Riba-Côa
https://docplayer.es/39186168-A-fala-de-xalima-variante-dialectal-do-portugues-da-riba-coa.html
6 P. ex. pronunciam habitualmente “portughês”.
7 P. ex. “pido”.
8 P. ex. “borracha”.
9 Pinto de Azevedo Rui, op. cit.
10 História dos Godos de 1039: «Era MLXXVll (1039) capiuntur in Extremadurii multae populationes cis et cintra viliam Turpini, Talrneida, Egitania, et usque ad ripam Tagi». (Referência tirada de Costa, M. Gonçalves, História do Bispado e Cidade de Lamego. Braga 1977-1987, vol. 2, pág. 40).
11 Brito-Brandão, Monarchia Lusitana, Tom. 2, livro VII, cap.28, pág. 533: «& no seguinte, que foraõ mil & quarenta & nove do Nacimento do Nosso Redemptor Jesu Christo, entraraó gentes del Rey por Estremadura, & se ganhou parte de Tra-los-Montes, Riba de Coa, & o mais atê a Serra da Estrella, pela Comarca de Castel-Branco, Idanha, & mais povoaçoēs atè o Tejo».
12 Pinto de Azevedo Rui (1962) Riba Coa sob o domínio de Portugal no reinado de D. Afonso Henriques. O mosteiro Santa Maria de Aguiar de fundação portuguesa e não leonesa, Anais da Academia Portuguesa de História, II série, vol. 12, pág. 269.
13 Brito-Brandão, op. cit., livro XVII, cap.33, pág. 243 r.: «que por hum seu avó ouvera elRey D. Denis seu padre ganhada a terra de Riba de Coa»
14 Correia Joaquim Manuel (2004) Terras de Riba-Côa Memórias sôbre o Concelho do Sabugal. Lisboa, 1946. Edição fac-similada da Câmara Municipal do Sabugal, pág. 1.
15 Herculano Alexandre (1915) [7.ª ed., definitiva] História de Portugal, vol.III, pág. 145. Lisboa.
16 «E outro si por que me vós partades das demandas que me faziades sobre razon dos termos, que som antre meu Senorio, e vosso por esso me vos parto do ditos Castellos, e Villas, e Lugares de Sabugal, e de Alfayates, e de Castel Rodrigo, e de Villa Maior, e de Castel Boom, e de Almeida, e de Castel Melhor e de Monforte, e dos outors Lugares de Riba Coa que vós agora teendes à vossa maãao, com todas seus Termos, e Direitos, e perteenças, e partome de toda demanda, que eu hei, ou poderia aver contra vós, ou contra vossos successores per razom destes Lugares sobreditos de Riba Coa, e de cada hum delles.» http://pt.wikisource.org/wiki/Tratado_de_Alcanises.
17 Maia C. de Azevedo, op. cit.
18 Situado nas proximidades de Castelo Rodrigo (Riba Coa, Portugal), que na altura pertencia ainda à Coroa Galaico-Leonesa.
19 Barbero Abilio, Vigil, Marcelo (1978). La formación del feudalismo en la península ibérica. Crítica. Barcelona.
20 Vidal Matías Emilio, em uma página web agora indisponível:
http://www.google.es/#q=%22Emilio+Vidal+Mat%C3%ADas%22&hl=es&prmd=ivo&ei=sU7kTMTlIsPKhAfKwKGTDQ&start=20&sa=N&fp=f51992584e1bf6df
21 Sánchez Aires C. (1904) Breve reseña geográfica, histórica y estadística del Partido Judicial de Ciudad Rodrigo:91 (Ciudad Rodrigo: Cástor Iglesias).
22 https://alamedillaweb.wordpress.com/el-atraso/
23 Vemos assim escrito: Fontiña/Fontinha, non/não, carallo/caralho, bos dias, -¿Ya regastes as coibes?. –Y‘as regei, mais inda tenho qu’hi deitar as putas das pitas…
24 Declarações de Consuelo González Reyes no documentário Entre Línguas.
25 Diz Vidal Matías: La actitud que tenían sobre su lengua aquellos que la hablaban y los oyentes solía ser muy diferente de la que se daba a la lengua oficial del país. Las chanzas de los forasteros y de los habitantes de los pueblos vecinos producían un sentimiento negativo derivado de las expresiones valorativas mordaces. El prestigio que tradicionalmente se confirió a la Fala, ha sido otro elemento que ha intervenido en su desaparición. Considerando en algunos casos que se tinha a fala estragada, teniendo una connotación negativa, mientras que el prestigio se reservaba a la lengua oficial, siendo la escuela el elemento esencial a través del que entraba la lengua estándar. https://alamedillaweb.wordpress.com/2010/05/31/bilinguismo-y-consideracion/
26 Consuelo González Reyes e o seu irmão Julián, como já comentamos anteriormente, exemplificavam esta situação.