Devalar

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Ai de mim, onde irei apanhar, quando o inverno

vier, as flores”.

Hölderlin, “Metade da vida”

Pelo São Miguel. No momento em que começo estas notas um trem me leva ao sul. Ao meu lado um grupo de homens joga à carta. Um deles lança as cartas sobre a mesa com tanta veemência que se poderia imaginar que está a ler as incertezas do seu destino. Do outro lado do vidro, a longa praia de Espinho e a imagem do oceano em linha reta à que me habituei vivendo em Portugal. A brêtema esbate a linha do horizonte. Um minhato cruza o ar à minha esquerda. Pergunto-me vagamente o quê é que aqueles galaicos nas guerras púnicas que testemunhou Sílvio Itálico, adivinhadores pelas entranhas das bestas e o voo das aves, conseguiriam ler neste momento. São os últimos dias do mês de setembro, sétimo só no nome que herdamos dos romanos. O sol faz o seu caminho para o sul enquanto em algumas vilas e no alto dos montes se festeja o anjo que luta com a serpe. À minha frente tenho um palimpsesto de signos e uma língua feita de retalhos de cosmovisões perdidas para dizer o mundo que vejo. E nem por isso sei se acerto a dizer a minha vivência íntima deste meu caminhar para o sul neste outono que começa, para mim, depois de vinte anos, já um rito cujo significado, ainda sem palavra que o diga, experimento uma vez e outra vez. Muda a luz, muda a vegetação, mudam os sons e as palavras da língua que falo, o sabor do pão e o cheiro da terra, a sonoridade dos nomes de lugar que leio nas estações. Mudo eu?

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Pelo São Martinho. Há dias que me acompanha a leitura do Devalar de Otero Pedrayo. Tenho-o lido nas viagens de metro que faço diariamente para a escola. O que os meus olhos leem parece refletir-se nos muros dos túneis como numa tela iluminada. As vindimas nas beiras do Ávia, o cósmico viver ao que desperta o hemisfério boreal no inverno, desde as Hébridas ao Marão, o foulear dos verdes mares que contempla Martinho Dumbria… Na superfície é o muito luminoso novembro de Lisboa. Comovida pelo verbo de Otero em que ecoa a voz das entranhas pétreas da terra, saio à superfície imaginando as fadas geológicas desta cidade. O discurso dos geólogos traz-me as imagens deste território que agora habita a cidade de Lisboa contado na escala das idades da terra. Nas lajes de pedra lioz, característica desta região, está gravada a memória de mares hoje desaparecidos. Esta pedra com que se construiu toda a Baixa pombalina, e também igrejas, palácios, estações de metro, casas particulares ou cafés um pouco por toda a cidade, contém fósseis de um bivalve entretanto também desaparecido chamado rudista, que formava recifes num mar tropical que os geólogos batizaram com o nome de mar de Tétis. Por vezes entretenho-me a observar as formas esbranquiçadas dos rudistas, em rodelas ou em espiral, incrustadas na pedra, ainda mais visíveis nas lajes avermelhadas como as muitas da estação de metro do Rato em que tomo estas notas. Na boca do metro uma assadeira de castanhas envolve em fumo as pessoas que transitam. Lá longe, por trás da cúpula da Basílica da Estrela, a intensa luz dourada do sol lembra-me a data em que estou, o são Martinho. Hoje é festa em Ourense, mas ninguém à minha volta sabe a história dos reis suevos, ainda que herdasse os seus signos. O crepúsculo faz-me pensar em todas as velhas invenções míticas que contam a morte de um deus.

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Pelo Santo André. Como no verso de “Alturas del Machu Picchu” de Pablo Neruda, ia eu entre as ruas e a atmosfera, contemplando as linguagens sobrepostas desta cidade em capas: as figuras alegóricas na porta de edifícios públicos, as estátuas dos reis a cavalo, os anjos nas portas das igrejas, as ruas quadriculadas do marquês de Pombal, os painéis da estação do Rossio, as ameias do castelo de São Jorge colocadas no tempo do Estado Novo. O que seja esta cidade, qualquer cidade na sua continuidade imaginária, é como o Jano bifronte dos romanos: o dizer humano consegue a magia dual do deus que olha dous mundos. Contemplo Lisboa desde o Cais das Colunas. Corta-me a pele um vento tão estranhamente frio que pareceria vindo da própria serra de Albarracín. Um corvo espreita o Tejo desde o alto duma das colunas neste último dia de novembro, este tempo de luz como vinda de porta entreaberta em que nasci. Se vivesse no tempo em que os animais falavam havia-lhe de perguntar ao corvo onde ir com a minha invenção. Há anos um bom amigo e amante da poesia fez-me ver que o começo da declaração de independência dos Estados Unidos era um grande poema. “Consideramos estas verdades como auto-evidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade.” Simón Bolívar escreveu o seu poema “Delírio en el Chimborazo”, uma visão do tempo além para o tempo presente das Américas, depois de subir a encosta do vulcão Chimborazo, seguindo os passos do seu admirado naturalista Alexander von Humboldt. A loucura poética tem espaços intermédios com a loucura política. Daqui vejo a cidade em que os caminhos vão dar ao poder, capa sobre capa, uma linha crescente entre o sol e o dragão que só a minha invenção teima em encontrar, como o dinossauro do conto de Monterrosso.

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21 de dezembro. O Observatório Astronómico de Lisboa diz que às 10:44 foi o solstício de inverno. Hoje é o dia do sol estático na visão dos romanos. Fui ver as cores do outono a um dos jardins que mais transito, o das Amoreiras, com a sua fonte no centro rodeada de um círculo de exemplares de ginkgo biloba, a árvore que os botânicos chamam fóssil vivente. A terra estava coberta de folhas de intenso amarelo. Goethe dedicou um belo poema às folhas do ginkgo. Lendo a sua forma em dois lobos, Goethe escreveu um canto à íntima ligação de tudo o que o homem percebe como dual. A humidade que vem das folhas espalhadas pela terra fez-me sentir um começo de viagem. “Morre e devém”, diz um outro verso de Goethe. Há algum tempo que reparei na abundância de testemunhos literários na Galiza das estações como alegoria do tempo dos homens. O outono que se vai enterrando no poema “Penélope” de Diaz Castro, Os eidos de Novoneyra, as belíssimas Estações ao mar de Xohana Torres, o próprio Devalar de Otero… Alegoria da história que se imagina na continuidade da terra, mas também da própria linguagem a ser dizendo-se. Se me protejo da intempérie dos séculos nesta língua em que escrevo, como em agarimo, é porque dela bebo esta contínua fonte imaginária do mundo que vive morrendo e nascendo, salvados no fim, uma língua em que digo o mundo sem metáfora, irradiando ser em palavra desde a raiz dos montes, em pedra, árvore, chuva e vento, abraçando cada ser humano que vem ao mundo. Nestes pensamentos ando entretida enquanto faço uma geleia de romã. Há pensamentos que só me habitam cozinhando. As romãs abertas trazem-me a memória do Algarve e do aceso vermelho das flores da romãzeira tão abundantes na região. Gosto de ver o Algarve na memória como um pomar fechado de cores e arrecendos. Os bagos de intenso vermelho tingem-me as mãos como se ressumassem da minha saudade e por um momento imagino-me a poeta que canta as sementes e os frutos. “Aqui, Mecenas, dou início ao canto que nos ensina a ter fartas colheitas”. Tão longe estou da terra, tão enraizada a tenho na alma. Por vezes a história em linha reta parece a longa separação de Perséfone e Deméter. De todos os mitos gregos sempre foi o de Perséfone o que mais me comoveu. A mãe a procurar pelo mundo a filha perdida parece-me a própria imagem da humanidade a habitar a terra sonhando paraísos como se na sua mesma terra estivessem exilados. E se assim fosse, se, como diz aquela cantiga de berço que cantavam “Fuxan os ventos” pelos anos 70, atravessamos um inverno escuro e frio, nesta noite em que inteiramente me habita o despertar invernal dos montes da Galiza que guardam as sementes que ainda ninguém imaginou, serei a poeta que canta a história futura do regresso da filha à casa da mãe.

Máis de Maria Dovigo