Cruz na ponte

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“Cruz na fonte,
cruz no monte,
cruz na ponte”

Começo estas notas na estação de Porto-Campanhã, à espera dum trem para Lisboa que só apanharei daqui a uma hora. É final de julho e a sala de espera está cheia de gente. Gosto destes espaços de gente em trânsito que por um momento se encontra. Vejo muitas pessoas a lerem o jornal, outras a conversarem, bastantes com o olhar fixo no telemóvel, vejo malas e sacos de todas as cores e tamanhos, ouço diferentes línguas, o que para mim é sempre um prazer. Ouvir uma língua que não compreendo é como ouvir água duma nascente.

Há momentos estava distraída a ver a luz intensa no exterior da estação, pensando que havia de escrever sobre as viagens que em vinte e um anos tenho feito nesta minha Finisterra, entre a Crunha e o Algarve, e comecei a ouvir na minha cabeça o “Clair de Lune” de Debussy. Pensei logo que não me prazia de tudo ter a mente sempre tão cheia de cultura. Depois lembrei aquele personagem de Alejo Carpentier que procura alguma pureza, algum começo absoluto, remontando o rio Orinoco e no percurso conhece o grego que lhe fala de Ulisses e lhe dá o espelho da sua própria viagem. E lá pensei que a memória encontra os signos como formando um ecossistema. Com a esperança que tenho na possibilidade de alguns encontros anacrónicos, agradeci a Debussy ter escrito uma peça tão bela e fiquei a observar o meu pensamento a fazer-se frases ligando isto e o outro.

Deve ser isso, vinte e um anos à descoberta do sol crescente a sul sem deixar nunca de fluir no luar. Há sempre a força da lua a reger os movimentos dos mares, do sangue e dos amores. E é nessa força que viajo sempre neste vaivém pendular entre o norte dos meus desejos e o sul dos meus amores, sem dispensar nada do que me é dado ao conhecimento, as frases ao acaso ou as visões efémeras, como a daquela lua cheia, dourada como metal polido, como nunca tinha visto até então, sobre o mar ao sul que vi um dia de junho do miradouro de Santa Catarina, na foz do rio Arade.

Costumo viajar em transportes públicos, sempre que possível de trem. Nestas duas décadas algumas cousas mudaram, outras nem tanto. Quem assim viaja descobre logo os centros de decisão e as ligações que são pensadas nos gabinetes e projetadas nos caminhos-de-ferro como numa metáfora bem transparente. Mesmo assim orgulho-me de viver nesta Finisterra à que inteiramente pertenço tão plenamente quanto a minha inteligência para descobrir caminhos me permite.

Há anos uma das expectativas da viagem era quem me calhava de companheiro de lugar, por aquilo da amenidade da conversa. Agora com telemóveis e computadores as conversas são mesmo raras. Lembro um professor de Latim, dublinense de nação, que conheci no ano em que morei em Vila Real de Santo António, na foz do Guadiana. Ia eu da Crunha em direção a Sevilha e começamos a conversar num bar de estrada de Benavente, era já noite. Até Salamanca, que era o seu destino, deu-me a visão mais emotiva que já alguma vez tinha ouvido sobre o povo romano. Ele contou-me a sua visita ao Museu de Lugo e como se tinha comovido com uma estela funerária cheia de saudades dum homem pela sua mulher falecida. Tivemos uma intensa conversa na escuridão do autocarro sobre a imortalidade e universalidade dos sentimentos e a ilusão do tempo. Lembro que falamos quase a sussurrar. Decoro, adequação ao tema, penso agora. Antes de ele sair em Salamanca recomendei-lhe visitar o horto de Calixto e Melibea. Cumplicidades dos habitantes da sonhada república livre da literatura.

Lembro outra breve conversa com um arquiteto germano-japonês que ia visitar um amigo em Lagos, no Barlavento algarvio. Ia eu de Vila Real de Santo António a Portimão. Explicou-me que nos breves dias que levava em Portugal conhecera um homem que tinha uma máquina de fazer ruas. Nem vou tentar reproduzir o que ele explicou, porque o que me ficou foi a imagem duma máquina a fazer ruas como os barcos fazem os ronséis. A ideia parece-me linda como algumas máquinas de Leonardo da Vinci. E lembro também a conversa com um senhor que viajava entre o Algarve e Lisboa que dizia que de vez em quando apanhava aquele trem logo de manhã, dava umas voltas por Lisboa e depois voltava ao Algarve. “Há que conhecer aquilo que nos sossega” disse-me desde a autoridade da sua velhice. O homem ainda me ofereceu algumas lembranças da sua vida entre Angola e Portugal e o primeiro testemunho amargo sobre o Portugal depois de Abril que ouvi na minha vida. Conversas que guardo na memória como clarões preciosos de pensamento vital por pessoas que sabiam que nunca mais me iriam ver. De aí se calhar a liberdade com que se exprimiram.

 

 

Agora que as pessoas não falam nas viagens habituei-me a escrever. Ficade a saber as leitoras que agora ledes estas letras que elas foram escritas algures em paralelo à “ocidental praia lusitana”, como várias outras letras que convosco partilhei em passados artigos. Gosto de pensar que pode ser assim, que pode ser o que escrevo reflexo da continuidade do mar tão difícil nos caminhos por humanos feitos, um esforço que vem de longe e vai, espero, ainda para longe. Caminhar por esta Finisterra é uma contínua experiência de ir atravessando rios e pontes. Assim o senti desde a primeira vez que saí de Portimão, no Algarve, em direção à Crunha. Passar o rio Arade, o que quando era navegável fez de Silves, então Xelb, capital de um reino, então Al-Garb, duas centenas de quilómetros depois o rio Sado, os campos de arroz tão intensamente verdes no verão e a imagem de postal de Alcácer do Sal e o seu castelo no alto, passar o Tejo em Lisboa, o Mondego em Coimbra, o Douro e a imagem da cidade forte do Porto, feita em rocha dura como mosteiro primordial, o Lima em Viana do Castelo e o indizível azul do norte em fundo verde, a arquitetura feita com raiz como se se plantasse uma árvore das casas minhotas, o Minho de tão subtis correntes, e a sucessão dos rios de tão antigos nomes na Galiza até chegar ao meu mar do Norte.

Oxalá, oxalá mesmo estas letras que escrevo tenham a emoção que estes territórios foram gravando em mim, os diálogos com o intenso recendo das laranjeiras na primavera e as figueiras no verão do Algarve, com as formas humildes e resistentes das oliveiras e os chaparros do Alentejo, com os arrozais do Mondego, com a terra devastada pelos incêndios e o abandono, com as fragas, os castanheiros, os carvalhos, com a sonoridade dos nomes de lugar e as línguas que já habitaram este território e já não existem mais, com os sabores que conheci transitando, a alfarroba, os coentros, o gengibre, os frutos, os azeites, o pão, toda a gente que fui conhecendo neste ir e vir, tantos anos, tantos olhares que vi e me viram, tantos abraços que me tocaram o coração, e tanto amor que já não sei para onde volto, já só sei para onde vou.

Levanto os olhos para arejar o olhar e vejo no vidro do trem o perfil do planalto de Santarém, esta terra do Ribatejo, ossuda e articulada, que para mim tem o rosto do meu muito querido Samuel Pimenta, rosto desta longa história de amor das gentes da Finisterra. Olho para as andorinhas que voam como se caíssem do céu e encontro uma imagem que desejo para a própria escrita, uma ave de movimentos impossíveis para mim, que eu tento acompanhar com esta língua que ensino por gramática e ela me mostra no ar livre. Ela conhece não sei se mais, mas sim mais longe.

Contemplando as andorinhas vou cosendo pensamentos, tecendo fios, transitando por todas as metáforas de ligação e os símbolos do ar. Deixo o pensamento à solta e na serenidade deste céu de verão, ganho a consciência das minhas viagens, destas viagens que, eu sei, não começaram comigo. Durante anos sonhei desimpedir os caminhos que via ainda vivos por baixo das silveiras. Tenho no mais profundo gravadas as viagens feitas pelo Natal em que a visão da estrela polar era o sinal de que estava chegando à casa dos meus pais. Cresci contemplando o oceano e na minha solidão de adulta, com os olhos virados para a alma, habituei-me a sonhar com as estrelas. Imagino o rasto da gente que não vi mais, alunos, colegas, amigos, que me deixaram profundas marcas, as terras que vi, os dias que passei, o sabor das cousas, o calor, o frio, o cansaço, a plenitude. Sinto a saudade da alma que tenho espalhada pelos caminhos, os fragmentos de mim nos espaços aos que nunca voltei. E o movimento inverso da saudade como uma casa habitada pela luz que se move livre no espaço e a mim chega como onda oceânica. Mergulho nas lembranças destas viagens sentindo o ritmo assimétrico entre as pontes de ferro e a força da lua a movimentar as águas. Presente ou ausente, movimentos da maré, fases da lua, estações na vegetação, vaivém entre o norte e o sul, amor preso nas rodas da História, como ar entre os dentes quando pronunciamos os esses. Ou pedimos silêncio.

Máis de Maria Dovigo