Contra o fim do mundo

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Robert Louis Stevenson fez na sua juventude uma viagem a pé pela região montanhosa das Cevenas, no sul da França, com a única companhia de uma burra de nome Modestine. Pouco tempo depois relatou a sua experiência em um livro, o seu segundo publicado,  ao que deu por título Os prazeres dos lugares inóspitos. Declara nas palavras iniciais que o livro era na realidade um ensaio sobre a premissa de que a austeridade da paisagem regenera o gosto, uma frase que tinha lido em uma revista. A escolha das Cevenas para provar tal hipótese prendeu-se com a pouca afinidade que à partida sentia pela sua paisagem, montanhosa e com poucos agros. Salienta Stevenson que o interessante de caminhar é o diálogo interior que mantemos, diálogo que vai variando de tonalidade e conteúdo consoante as características do território e o nosso esforço físico para o percorrer. Diz também que não há lugar que perscrutado com atenção não nos revele algo belo e que é o nosso estado de espírito aberto o que nos permitirá que os lugares nos revelem a sua graça, nos cheguem ao coração e nos transformem. Stevenson agradece no fim do prefácio o que estas paisagens inóspitas fizeram por ele, dando assim um vasto horizonte de sentidos às suas ficções sobre viagens e à sua própria vida errante: o encantamento da aventura e do acaso, a necessidade de viajar sem mapa, a procura da empatia com o que à partida nos é distante.

Não sei se era esse o desejo que movia àqueles monges navegantes que em remotos séculos se aventuravam no Atlântico deixando-se levar pela força do mar, sem rumo fixo, permitindo “que o vento os levasse onde Deus quisesse”, dos que tive notícia pela primeira vez no livro de Fernando Alonso Romero Santos e barcos de pedra. Para unha interpretación da Galicia atlántica, publicado em 1991, livro que naquele tempo me deu uma dimensão histórica do meu berço atlântico como nunca tinha tido. Teimo em crer que a margem oceânica que nos criou imprimiu-nos em essa memória da que não conhecemos suporte este gosto pelos caminhos não traçados. “No mar os teus caminhos e os teus trilhos nas grandes ondas” são versos do salmo de David que o peregrino William Wey ouviu na igreja de Santiago da Corunha em 1456 como atribuídos aos discípulos que trouxeram o corpo do mestre ao porto de Íria. Há uma trama profunda da história dos galegos que se conta nessa viagem de despojamento de todas as formas e referências que relatou Manuel António em “Sós”.

Dessa necessidade, e responsabilidade, da consciência de vivermos na margem oceânica falou-nos há dous anos o filólogo Francesco Benozzo nas jornadas de Pitões das Júnias, de sabermos olhar para os centros de poder deste mundo sem deixar-nos captar por eles. Nas Jornadas deste ano Francesco Benozzo enviou-nos um belíssimo texto, “O olhar revelador dos promontórios remotos”, em que nos falou da existência de lugares singulares, como esta aldeia transmontana, “janelas” que nos dão visões únicas de nós mesmos como humanidade. Pitões das Júnias, que dizem ser a aldeia mais alta de Portugal, é um ângulo precioso para olhar para os impérios do mundo e para ver quer o impacto das políticas pensadas bem longe, nos centros imperiais de cada época, quer para ver a continuidade das nossas raízes culturais mais ancestrais.

Por sétimo ano nos dias 26 e 27 de maio tiveram lugar as Jornadas galego-portuguesas de Pitões das Júnias, organizadas pelo grupo de trabalho Desperta do teu sono, a Academia Galega da Língua Portuguesa e a Junta de freguesia de Pitões das Júnias. Este ano ouvimos as palestras do etnoarqueólogo Marcial Tenreiro, “Mouras, Melusinas, Deusas: algumas supervivências do mito no folclore”, da professora de Filosofia Luísa Borges, “Para uma arqueologia poética da Finisterra galaico-portuguesa”, do matemático Manuel Díaz Regueiro, “Identidade genética atlântica e doenças típicas dos celtas” e do fotógrafo José Goris sobre a sua exposição “Gallaecia: um passado mágico”. Foram ainda apresentadas as Atas das IV, V e VI Jornadas, edição de Desperta do teu sono e da Academia Galega da Língua Portuguesa que contou com o apoio da Università di Bologna. Marcial deu-nos um abundante repertório de exemplos sobre a transmissão e transformação dos mitos celtas na tradição popular e na literatura profana medieval. Pela curiosidade nunca satisfeita que tenho sobre esse momento da história literária em que se começou a escrever em língua vulgar, interessaram-me particularmente os exemplos das mulheres sobrenaturais como origem de linhagens na literatura profana e as interpretações moralizantes das versões eclesiásticas. Luísa Borges falou-nos das formas de sobrevivência da tradição druídica na tradição poética galaico-portuguesa, com exemplos das cantigas medievais, Bernardim Ribeiro, Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes. Manuel Regueiro, que chegou aos estudos célticos pelo seu interesse matemático nos labirintos, deu-nos uma visão das migrações no espaço à volta do oceano Atlântico através dos mapas genéticos. José Goris relatou o processo de criação da sua exposição, que partiu da pergunta inicial sobre a origem dos nossos devanceiros e que o levou a percorrer o país fotografando as histórias que as pedras contam.

O programa incluiu o concerto da banda transmontana de música tradicional Matabixo e a visita às mamoas do Planalto da Mourela e Outeiro de Cavaladre, acompanhada pelo Padre Fontes e pelo arqueólogo David Pérez López. O relato das Jornadas ficaria incompleto sem referir o convívio entre os participantes, as conversas à volta da mesa ou nos caminhos pela aldeia e os agros, em que fomos dizendo e cruzando histórias como quem tece.

Murguia falava do mal do centralismo e da resistência a morrer como gérmen da ação dos precursores. Talvez esta questão da celticidade passe por isso, pela resistência à alienação, uma reflexão sobre onde está o centro, sobre quem nos pensa. Porque alguém nos pensa e as aldeias ficam abandonadas. Talvez seja o desejo de sermos uma cultura não para qualquer tempo e lugar, mas para o nosso tempo e, sobretudo, para o nosso lugar. O celtismo também é uma pergunta sobre o que é que significa a pertença étnica neste dito continente europeu que se apresenta no discurso político como uma exceção humana em uma ideal dualidade civilizado vs indígena. Ainda, para além do valor da argumentação do paradigma celtista, suportada em evidências arqueológicas, etnográficas ou genéticas, da investigação feita na Galiza e em Portugal em grande medida à margem das academias, resta ainda explicar porquê a celticidade tem sido campo de invenção tão fértil para os criadores galegos nestes dous últimos séculos. Celebro que nesta edição das Jornadas se falasse de ficção e poesia e que seja um sinal do fim do descrédito da literatura no conjunto das ciências, mesmo das ditas ciências humanas. Porque os géneros literários têm mais de compreensão do mundo e de maneira de nos relacionarmos com ele do que de capricho estilístico. Sou das que pensam que a história, mesmo a mais assente em documentos, existe como género literário. Como coletivos, vivemos nos limites do que conseguimos imaginar e contar.

 

Máis de Maria Dovigo