Conta Gregório de Tours que o filho do rei suevo Carriarico se curou miraculosamente da lepra quando recebeu em Braga as relíquias de Martinho de Tours. Pois quem quer ser pai dum filho morto? Quem quer ser órfão? Começo estas notas no dia de São Martinho, dia de “lume, castanhas e vinho”, segundo o provérbio. Por aquilo de que os significados existem e os seus sentidos se bifurcam, é também aniversário do armistício da 1ª Guerra Mundial, data que em Portugal se relembra anualmente por ter tido este estado participação ativa nela. Durante estes quatro últimos anos foram-se sucedendo exposições, publicações diversas e outros eventos para marcar a memória deste centenário. Quem tenha visitado Portugal pode ter reparado nos monumentos aos mortos da Grande Guerra que há em muitas cidades e vilas do país, por exemplo o da Avenida da Liberdade de Lisboa, onde todos os anos se faz a cerimónia de memória do Armistício e onde este ano que há pouco findou se fez um grande desfile militar e se ouviu um patriótico discurso do atual presidente da república. A construção destes memoriais foi um grande esforço da república proclamada em 5 de outubro de 1910. Já no período salazarista deu-se pouco azo à propaganda sobre esta participação de Portugal na Grande Guerra, tida como grande projeto republicano.
O repertório de datas e personagens da história de Portugal é reduzido mesmo para os galegos interessados e isso condiciona e limita o entendimento da vida social e política deste país. Ainda que curiosa pelo que à história portuguesa diz respeito, não sabia eu antes de ser professora neste estado do lugar destacado que a batalha de La Lys de 9 de abril de 1918 ocupa na História contada nos manuais escolares, nem do confronto de tropas portuguesas e alemãs em Moçambique e Angola. Intrigada como sou pelas assimetrias entre os factos históricos e os seus relatos, tento perceber as coordenadas da história pela interpretação dos historiadores: o papel da secular aliança com a Inglaterra e o possível valor de troca das colónias portuguesas, a sobrevivência e legitimação da república, as negociações posteriores de Portugal para manter os territórios em África… Tento perceber o ar do tempo, as ideias que circulavam, quem eram os pacifistas, as organizações operárias, o internacionalismo sindical, os monárquicos, alguns deles exilados na Galiza… Observo a História desde as histórias de vida, as condições nas trincheiras do chamado Corpo Expedicionário Português, as origens e o caminho daqueles homens e das mulheres que deixaram. Uma boa parte dos soldados portugueses foram feitos prisioneiros depois de La Lys. A neta de um deles, a jornalista e historiadora Maria José Oliveira, recolheu num livro recente testemunhos de centenas de cartas destes prisioneiros que nunca chegaram ao destino, alguns deles dados mortos que voltaram a pé às suas aldeias.
“Observo a História desde as histórias de vida, as condições nas trincheiras do chamado Corpo Expedicionário Português, as origens e o caminho daqueles homens e das mulheres que deixaram. “
Existe um testemunho valioso deste setor de Ypres em que aconteceu a batalha de la Lys dado por Valle-Inclán num livro que foi publicado em Portugal há alguns meses com o título Visão estelar. Um momento de guerra. Segundo a introdução desta edição, poucos meses antes do começo da Grande Guerra Valle enterrou o seu filho Joaquín. O convite para visitar a frente veio do cônsul francês na Espanha, pelo apoio manifesto de Valle aos aliados. Da leitura ficaram-me duas ideias e uma espécie de sequência de fotografias verbais: a ideia literária da guerra, a ideia da narração como aspiração ao esférico e, quase como a fazer outro caminho, a descrição sem ornamento, sem cores retóricas, do que testemunha. Entre os episódios de guerra que regista fica na memória o de uns pais que veem morrer ao seu filho. A leitura deixa a impressão de quem se rende a não poder ter olhar de estrela e só pode dar este olhar de empatia. E de catarse para quem lê.
Num documentário sobre a vida nas trincheiras fala-se de como os símbolos sagrados estavam proibidos entre os soldados portugueses pela laica república. Mas a norma não conseguiu impedir que os soldados usassem como objeto sagrado troços de granadas das que inexplicavelmente se tinham salvado. Tento imaginar a urgente procura de sentido e o desejo de cura, a dolorosa necessidade de além e esperança, vigiada pela esfera das ideologias a interpretar os factos e a realidade dos filhos mortos dos que Valle deixou tão pouco literário testemunho. Pensando também na minha própria família, o século XX aparece-me como século de mutilados, órfãos, exilados, homens e mulheres a viverem só com uma parte de si. Faço balanço do século XX e não encontro melhor título para a minha particular visão estelar que o do longo poema de Tristan Tzara O homem aproximativo. Os seus versos a proclamar “os sinos soam sem razão e nós também”, “como esta linguagem que nos açoita para nos sobressaltarmos com a luz” fazem-me respirar o ar do tempo e a noite do signo. O duplo Dr Jekyll e Mr Hyde de Stevenson, o perfeito homem público e o monstro íntimo, a extrema polaridade do público e do privado, do subjetivo e o objetivo, a fragmentação da verdade, a metáfora esquerda/direita tão marcada. Conta-se que Paul Wittgenstein, reconhecido pianista e irmão do filósofo Ludwig Wittgenstein, perdeu a mão direita na Grande Guerra. Maurice Ravel respondeu ao seu pedido de que alguém escrevesse um concerto para ele poder tocar. Expressiva alegoria para a arte do século.
Ouço nos microprogramas da rádio “Há cem anos” as comemorações na Basílica dos Mártires, fundada pelo rei Afonso Henriques. Afastado das narrativas heroicas dos estados e dos debates dos historiadores, há o tempo contado pelos literatos. 1917 foi ano de muita cousa em Portugal. Mas também foi ano da primeira publicação de Húmus de Raúl Brandão. Se Valle-Inclán fala da morte como causalidade do mundo, Brandão fala de um mundo em que os vivos têm medo de viver. “Já não há esforços que contenham o mundo subterrâneo que se pôs a caminho”. É assim o século XX nos meus olhos, a exploração do submundo, do instinto, do inconsciente no tempo dos grandes avanços técnicos. A história do capitalismo, do colonialismo, também é contada por Goethe no Fausto, por Mary Shelley no Frankenstein, por Joseph Cornad no Coração das trevas… Brandão faz falar a matéria, a história da matéria metaforizada em mater nalgum tempo primordial e que no nosso mundo industrial grita. “Tudo na minha natureza são formas da minha alma. Minha alma passa como uma luz em frente da escuridão. Extinta só resta a treva”.
“É assim o século XX nos meus olhos, a exploração do submundo, do instinto, do inconsciente no tempo dos grandes avanços técnicos.”
Trauma é palavra que significa sonho ou dano segundo a língua em que falemos. Penso nisto e sinto como não são suficientes os significados na minha língua. E vejo a imagem do santo a cavalo e o manto rasgado. E penso em toda a cavalaria sagrada, esse querer ter olhar de estrela como Valle, a esfera de todos os sentidos possíveis de um signo. E sigo a caminhada desse cavalo em que se metaforizou o pensamento no soneto de Ângelo de Lima, poeta que chegou a publicar em Orpheu e que esteve internado no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda: “Para-me de repente o pensamento… Pára Surpreso… Escrutador… Atento como pára um cavalo alucinado ante um Abismo… ante seus pés rasgado”. A argumentação a favor do apoio de Portugal aos aliados era o apoio ao iluminismo e a revolução francesa perante a barbárie germânica. E agora? Vivemos em tempo para pensarmos o instinto e o assombro no pensamento, com o constante estado de alerta que nos produzem os dispositivos eletrónicos e o apelo ao desejo da publicidade, tempo para pensarmos para que serve realmente a ideologia, para pensarmos na imaginação e na razão, na arte e na energia, na beleza, na terra, na herança, na organicidade e na democracia.
Volto ao meu ofício de fazer histórias com as mãos, com as duas mãos, com toda a nossa inteira humanidade. Quebradas as linhagens do dizer, só vejo as costuras do pensamento na palavra. Dizia Valle-Inclán numa entrevista que a oratória e a épica eram géneros acabados no século XX. Que história contar? Para quem contamos? Qual é a nossa linhagem de contadores? Que vaso é agora esse em que se decanta a energia do narrar? Yann-Ber Kalloc’h, poeta bretão que morreu no campo de batalha em 10 de abril de 1917, escreveu nas trincheiras: “Nasci no meio do mar, no país das asas, no interior das ondas. Reencontro o meu pai no mar e o calor do peito da minha mãe”. Bela canção de berço para o século dos desterrados. O país que dorme. Qual a minha linhagem de poeta no tempo em que a arte se produz? Penso no oceano e nos cavalos, no além como camada que forma e informa a visão estelar de Valle, nos cavalos gravados na pedra há tantos séculos e que os incêndios nos montes deixaram ao descoberto, e pergunto-me se ali está escrito que temos que cavalgar, algures entre a Panónia e Ourense, os caminhos que existem na terra e nas palavras para algum rei não ser pai dum filho morto. Penso no gesto da partição do manto de São Martinho. E na reciprocidade.