Por Ângelo Pineda Marinho
Há já algum tempo que os thinks tanks da direita espanhola estão cozinhando uma ideia discursiva fundamental com a intenção de instala-la na opinião pública: as autonomias são responsáveis ou agravam dalguma maneira a actual conjuntura de crise económica. As FAES, a fundação Everis, os grupos de comunicação conservadores e até o próprio Partido Popular adirem a esta máxima. Terão sucesso, se é que não é já um lugar comum nas conversas de café, nos debates informais e, em definitiva, em todas as ocasiões nas que o vulgo se expressa com adorável candura e ignorância.
Não é para menos: não há nem um mês que o próprio Zapatero “advertia” com “actuar” naquelas comunidades autónomas que não controlassem a despesa. No nosso país, essa catástrofe conhecida popularmente como “Feijoo” não contestava a afirmação do esbanjamento autonómico senão que, em todo caso, projectava-a sobre aquelas comunidades que se consideram “nacionalidade histórica” (leia-se Catalunha).
Por último, a imprensa periférica e servil que envenena ideologicamente as mentes dos nossos concidadãos e as nossas compatriotas; em vez de fachendear do seu fingido autonomismo, cala no melhor dos casos, pronuncia-se no pior. É assim que, por exemplo, o senhor Blanco Valdés assina um artigo sobre as perdulárias autonomias intitulado “¡Y a esos, que me les retiren el café!”. Nele, para além de avalizar a visão sobre a necessidade iniludível de reformar o sistema autonómico em sentido regressivo, queixa-se de que o nacionalismo periférico critique o “café para todos” no que interpreta como o intento de estabelecer uma desigualdade entre os cidadãos e as cidadãs do estado.
Não é nenhum segredo para ninguém que leia os meus artigos que eu sou independentista. Não sou um ambíguo “galeguista” ou “nacionalista galego”, não acredito na bondade do federalismo nem em nenhuma solução intermédia. Para mim, a problemática das relações entre Galiza e o Estado Espanhol não se remete à dicotomia centralismo/descentralização: é uma problemática duma outra natureza. É assim que não sinto nem muita nem pouca simpatia pelo sistema autonómico.
Contudo, escrevo estas linhas entendendo que nunca é positivo caminhar cara atrás e que poucas coisas existem mais odiosas do que enganar a gente:
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Neste estado existe, quando menos formalmente, o direito à livre expressão. Perfeito, nada que objectar. Não obstante, deveríamos ser mais exigentes com aqueles que têm o poder de fabricar opinião pelas consequências abrumadoramente negativas que têm os seus posicionamentos públicos. Por exemplo, vultos da direita (e da esquerda) espanhola afirmam que as autonomias gastam demasiado, que são responsáveis do défice público e que se faz necessária uma reforma centralizadora. Que dados referendam estas afirmações? Nenhum. Muito pelo contrário, segundo os dados do Ministério das Finanças sobre a liquidação do orçamento de 2009, o Estado Espanhol possuía um défice de 126620 milhões de euros, dos quais 99785 milhões eram imputáveis ao Governo central: o 78,8%. Quanto era responsabilidade das autonomias? O 16,72%. Quanto das prefeituras? O 4,48%. Assim que, em vez de centralizar o estado e suprimir prefeituras, talvez sejam as autonomias as que devam “actuar” sobre o Governo central.
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Uma história linda: uma sentença do Tribunal Supremo de Alemanha estabeleceu que o land de Baviera não podia dar mais do 4% do seu PIB ao Estado central. Por quê? Pois porque uma quantidade superior comprometia o desenvolvimento económico do território. Assim de simples. Sabemos quanto paga Catalunha ao Governo central espanhol? Pois anualmente nada menos que o 10% do seu PIB. Alguém deveria lembrar a Feijoo esta cifra, já que o seu governo se mantém mercê ao espólio dos Países Catalães. O que é legítimo perguntar-se: sendo isto assim, porque se nota tão pouco no nível de bem-estar dos galegos e das galegas? Porque talvez este auxílio orçamentário apenas sirva para financiar a megalomania populista e a manjedoura mediática que caracteriza o clima político da Galiza. É uma hipótese, como outra qualquer.
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Em grande parte, todo esta contestado. Porém, não aforrarei um comentário sobre o lixo que semanalmente escreve o nosso hooligan constitucional. Dada a adoração irracional que o senhor Blanco Valdés professa pela Carta Magna, com certeza saberá das condições para o acesso à autonomia “pela via rápida”. O sistema autonómico não é uma feliz ideia dos “pais da constituição”: Catalunha ganhou esse direito o 2 de Agosto de 1931, o País Basco o 7 de Outubro de 1936 e Galiza o 28 de Junho desse mesmo ano. E já nem falamos dos 40 anos de parêntese quando a oposição ao franquismo -onde provavelmente nunca esteve Blanco Valdés-, baixo condições muito duras, lutava pelos direitos nacionais da Galiza sob formulações bastante mais ambiciosas do que o resultado final expressado no estatuto do 81. Não devemos nada: não temos autonomia graças a Espanha, senão apesar dela. Se depois o Estado espanhol, numa estratégia confusionista, decidiu diluir as razões das nossas reivindicações colectivas mediante a regionalização de províncias castelhanas, não é um problema catalão, nem basco, nem galego: é um problema espanhol.
No senso deste último ponto, e embora as autonomias sejam também estado, a direita ou a esquerda espanhola não pode pretender tratar-nos como os seus “filhos díscolos” ou “sus cositas”. Convém não esquecer que a existência da nossa singularidade colectiva, sobre a que se assentou sempre as nossas reivindicações de autogoverno, é bastante anterior à própria existência do estado. Galiza é anterior a esse invento moderno que é Espanha; e, com sorte, sobrevivera-a. Porque como bem dizia o patriota Juan Jesús González já em 1933, “nada nem ninguém pode obrigar-nos a ficar unidos a um Estado que significa, para nós, uma ruína iminente e um perigo constante”.