29 de novembro

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Por Ângelo Pineda Marinho (*)

Nos meses estivais tive a oportunidade de viajar a Galiza para reencontrar-me com a família e as amizades. A experiência foi magnífica, não preciso dizê-lo. Contudo, era totalmente explícito a um olhar externo o preocupante estado de desânimo nos que os últimos acontecimentos políticos e sociais tinham sumido a boa parte dos amigos e amigas que tive a ocasião ver lá. O feche de médios de comunicação em galego, o cambaleio dalguns centros sociais logo duma década de constante expansão, a política etnocida do governo Feijóo ou a continuidade dum clima cultural ultramuntano; geraram uma inveja de Catalunha que poderia ser qualificada de qualquer maneira, menos de sã. Com o galho da recente convocatória de eleições autonómicas para 28 de novembro, estas linhas pretendem matizar a visão que o progressismo galego tem da Catalunha, para intentar evitar que a fascinação derive em êxodo. Um pouco tarde.

Esquerda – Direita

Na Galiza temos um governo francamente de direitas. Na Catalunha têm um de esquerdas. Poderíamos dizer que é relevante dentro do quadro geral europeu onde a alternância bipartidista tem derivado cara a uma escassa diferenciação entre as políticas da social-democracia e do conservadorismo liberal?

O economista Vicenç Navarro, um homem de esquerdas e social-democrata, opina que sim no seu esclarecedor artigo “En general, el tripartito catalán lo ha hecho bien”. A sua linha argumental baseia-se na comparação entre a despesa social dos governos de CiU e a dos 7 anos de governo de coligação entre o PSC, ERC e ICV-EUiA. Para Navarro, o significativo incremento e a redução da diferença com a Europa dos 15 é um sintoma de que «Catalunha tem hoje um estado do bem-estar mais bem dotado e mais sensível às necessidades das classes populares que não quando o Tripartido iniciou seu mandato». Discrepo. Dizer que em matéria social Catalunha melhorou a respeito dos governos de Pujol omite o que é esperável dum governo de esquerdas.

A realidade é que o incremento na despesa social não nos informa de como e em quê se investe esse incremento. Assim não se nos explica que a administração fomentou a assunção da oferta de serviços assistenciais por parte de entidades de titularidade privada. Deste modo, as transferências da administração catalã não asseguram os serviços sociais como direito subjetivo, já que estão a cargo de entidades que apenas procuram a consecução duns objetivos concertados com a administração e, neste senso, não existem garantias duma cobertura universal.

Os resultados estão à vista: por um lado, o tripartido gerou uma rede clientelar preocupante ao redor desta questão; por outro, a política social de Catalunha é três vezes menos eficiente do que a média europeia na redução da taxa de risco de pobreza. Destarte, as frequentes invocações à política social do tripartido por parte das suas e dos seus defensores deixam literalmente frio ao eleitorado quando o tecido industrial do país vê-se seriamente afetado pela atual crise financeira. Não passou nem uma semana desde que Montilla declarou que a reforma laboral deveria ter acontecido «muito antes».

Catalunha – Espanha

Contudo, como é bem sabido, o eixo esquerda – direita não é o único relevante no país mediterrâneo. Poderia dar-se o caso que as bases do tripartido, descontentas com a linha social deste governo, encontrassem uma compensação no nível de interlocução com o estado. Também não é o caso.

A reforma do estatuto de autonomia envenenou o primeiro tripartido que acabou rachando precisamente por esta questão. As bases de ERC, descontentas com a falta de ambição do projeto, forçaram à direção para defenderem o “não” no referendo da reforma. Esta circunstância fez que em 2006 os conselheiros de ERC fossem expulsos do governo na enésima crise do mandato de Maragall. Uma crise que desembocou na convocatória de eleições antecipadas.

O primeiro problema do tripartido de Montilla foi precisamente a reedição desta fórmula, sobretudo para ERC. Como explicar às bases que sendo as ovelhas pretas do governo Maragall participem novamente na conformação dum governo presidido por um candidato de perfil baixo totalmente aderido à política do PSOE? Não se pode. Os resultados estão aí: dos quatro candidatos apresentados para a presidência do partido em 2007, apenas Puigcercòs fica na direção. Carretero saiu pela sua posição crítica com o tripartido, Carod-Rovira caiu em desgraça e Uriel Bertran abandonou recentemente ERC para aderir-se à candidatura de Laporta. As sondagens prognosticam uma forte descida, talvez fruto da perda da imagem tradicional de partido contrário ao quadro institucional que emergira da transição espanhola.

As coisas não são mais fáceis para o PSC. Inicialmente, Montilla apresentava-se como uma garantia de estabilidade institucional face à agitada vida política do tripartido anterior. A aspiração, no âmbito nacional, reduzia-se a defesa da tíbia reforma estatutária; elemento que se considerava suficiente para acalmar reticências catalanistas. Porém a reforma envenenou também esta legislatura situando o PSC na contradição estrutural entre a sociedade catalã e o Estado espanhol. Na metade do mandato era evidente para todo o mundo que o Tribunal Constitucional atacaria a redação final do estatuto numa resolução que se adiava sine die talvez à espera dum contexto propício que evitasse a reação social de signo independentista no Principado. Montilla, em vez de intervir de modo enérgico, atuou como homem de partido intentando racionalizar a incompreensão espanhola e as promessas incumpridas de Zapatero. No seu crescente descrédito, o governo espanhol pôs o seu grãozinho de areia atuando com absoluta deslealdade para com os seus protegidos chegando a tratar o candidato de CiU, Artur Mas, como interlocutor válido para determinadas questões relativas a Catalunha.

Neste quadro de decomposição, a única formação que parece salvar-se da queima é ICV-EUiA; a quem as sondagens prognosticam certa estabilidade em nível de apoios. Isso apesar de que, como titulares da Conselharia de Interior, foram os responsáveis duma importante repressão dos movimentos sociais e duma política de mão dura em matéria policial apenas matizada por gestos epidérmicos cara as organizações de defesa dos direitos humanos.

Democracia popular – Democracia oficial

Tendo em conta o anterior, entende-se a emergência da iniciativa das consultas populares sobre a independência da Catalunha; que no fundo são uma protesta civil contra o clima geral de acosso espanholista e de inoperância autonómica. Com efeito, a consulta de Arenys de Munt abriu o que se conhece na sociologia dos movimentos sociais como “janela de oportunidade política”. Em realidade, pouca gente confia que esse vaia ser o mecanismo da autodeterminação catalã. A melhor dizer, as consultas constituem uma ferramenta para a intervenção nos principais cenários do país situando o objetivo estratégico da independência na agenda política catalã.

Não é estranho que determinadas formações parlamentares subissem ao comboio quando este estava em marcha. Como não será estranho que saltem dele quando minorar. Fenómeno que, dito seja de passagem, já se está a produzir.

Quiçá seja esta presença de vereadores e vereadoras de ERC e CiU a que fez que o processo fosse pouco valorizado entre a esquerda galega e espanhola. No entanto, o movimento das consultas tem um grande componente de classe mercê à abertura da participação pública que implica. É assim que uma personagem “liberal” (no pior senso da palavra) como o ex-vogal do Conselho Superior do Poder Judicial e cara visível das consultas, Alfons López Tena, declarava-se surpreendido pela participação do proletariado na organização dos comícios:

Trabalhei com trabalhadores puros e duros, sem demasiada formação e me impressionou ver que choiavam com mais profissionalidade e eficácia do que a gente com a que trato normalmente em Barcelona, (…) esta gente ia direta ao assunto e serão estes catalães, que têm um salário demasiado ajustado para perderem o tempo em bizantinismos, os que nos salvarão a pele.

Fora do populismo contra Can Fanga[1], o fato de que uma pessoa de direitas afirme que lhe ficou claro que «a independência se tem que fazer com gente da classe operária» é bastante relevante, se tivermos em conta que as consultas nasceram como uma iniciativa de esquerdas na que o López Tena nada pintava.

Seja como for, a periferia do mundo nacionalista catalão constituiu-se em coordenação nacional das consultas. Se esta direção foi sinceramente útil no desenvolvimento e expansão do processo, tudo aponta a que esta mesma direção será a sua sepultureira. A recente convocatória de eleições propiciou a criação de pequenas candidaturas que se pretendem herdeiras das consultas e que, no caso de SCI (a candidatura do ex-presidente do Barça), compromete a evolução das mesmas. É assim que Laporta cooptou López Tena (procedente de CiU), Uriel Bertran (procedente de ERC) e Anna Arquè (na coordenação das consultas desde o começo). O carisma destes vultos do independentismo, a queda livre de ERC e uma provável abstenção elevada farão que estejam presentes no parlamento, ainda que longe do nível que aguardam.

Tanto SCI, como outras formações com escassas possibilidades como o Reagrupament de Carretero, baseiam-se na clássica idéia da Frente Patriótica consistente em subordinar a questão de classe (ou se preferirem, o eixo esquerda – direita) à consecução do objetivo da independência de Catalunha. Como idéia não está mal. Apenas uma objeção significativa: o objetivo deste “independentismo do lírio na mão”[2] não pode ser outro que o de entrar no parlamento a costa de ERC. Não é realista esperar que tenham uma influência significativa na agenda política da Catalunha. Qual será a sua posição sobre questões como a política social, as relações laborais, o aborto ou a imigração?

A suspeita é clara: sendo formações que provêem duma crítica ao tripartido, a sua única alternativa ao grupo misto é servir de apoio tácito ou implícito a um hipotético e provável governo encabeçado por CiU; quem já diz que de referendos, nada. Nem uma improvável participação de ERC numa coligação parece garantia, visto as difíceis relações com estes setores que provêem da sua matriz e a sua vontade de que ninguém lhe marque «a agenda política» (Puigcercòs dixit).

Com este panorama, a ameaça da desilusão pairará sobre o movimento das consultas logo do 28 de novembro, a cinco meses da simbólica consulta de Barcelona. Neste senso, os comícios autonómicos parecem pressagiar a substituição da fugaz democracia popular e direta, pela democracia oficial da que não cabe esperar demasiado.

A Esquerda Independentista ausente

Mais uma vez, o referente político da esquerda independentista estará ausente dos comícios catalães. A decisão é compreensível internamente atendendo às poucas possibilidades de representação na câmara catalã, é incompreensível externamente para parte do “independentismo social” que deseja ver-se representado no cenário político do país e, em qualquer caso, é doloroso atendendo à capitalização que determinadas organizações de “recém-chegados” à causa da independência estão a realizar do trabalho desenvolvido pacientemente pela Esquerda Independentista.

O projeto das CUP decidiu centrar-se em afiançarem e melhorarem a sua posição no âmbito municipal acrescentando para as eleições locais do próximo ano a complexa representação na prefeitura de Barcelona. É uma incógnita como afetará a multiplicação das candidaturas frente-patrióticas às suas possibilidades de êxito. O tempo dirá.

Seja como for, as CUP avançam com uma absoluta falta de presa e totalmente alheias à dinâmica da “grande política” pelo caminho da constituição dum projeto independentista real e de esquerdas, num complexo equilíbrio entre o necessário detalhamento no seu trabalho e a urgência duma alternativa política ao estado atual de coisas. Uma alternativa que é a única esperança para a assunção do quadro nacional dos Países Catalães. Porque se alguma coisa deixa clara a evolução do panorama político no Principado é que se confirma a sentença popularmente conhecida, segundo a qual, a diferença entre Valência e Barcelona é que na primeira há alguns blaveros[3], e na segunda são todos.

29 de novembro

Como conclusão, todo parece encaminhar a que o dia depois das eleições catalãs assistiremos a uma espécie de Termidor convergente neoiberal. A «desconexão mental com Espanha» da que falava o articulista Marçal Sintes apenas derivará no regionalismo do peix al cove[4]. E como sempre, as grandes derrotadas serão a classe trabalhadora e as aspirações nacionais do povo catalão.

Um dos fatores que precipitarão este final de festa é justamente a ausência duma “burguesia nacionalista”. Contra o que todo o pessoal acredita, de maneira extenuante os nossos “m-l”, a reivindicação catalã sempre foi um assunto de camadas médias da população. Simplificando muito: CiU é uma formação de botiguers[5], ERC de funcionários e autónomos. A única burguesia que apoia quando menos nominalmente a independência é a organizada ao redor do Círculo Catalão de Negócios, organização padana ligada emocionalmente a Laporta e minoritária no mundo patronal. Porque o partido da burguesia não mudou: sempre foi Espanha.  Eis a razão de porque Catalunha segue ligada ao estado.

Neste senso, a possibilidade da independência da Catalunha imperará quando assumir que, como dizia López Tena, se tem que fazer com gente da classe trabalhadora. O que é mais duvidoso é que o Tena e os seus a encabecem algum dia.

Talvez esteja errado. Mas logo do esgotamento do modelo insurrecional basco, as minhas previsões do modelo “plural” ou “civil” catalão cara a independência não parecem melhores atendendo às múltiplas distorções que o regionalismo hegemónico impõe. O tempo dirá. Seja como for, na Galiza não nos valem para nada os lamentos comparativos. Devemos trabalhar na constituição dum modelo próprio para a autodeterminação que recolha os ensinamentos dos exemplos basco e catalão; mas que, principalmente, se adapte à nossa realidade social. É urgente. Um eventual deslocamento do centro de gravidade das lutas populares contra o Estado espanhol deveria fazer-nos protagonistas da resposta política que o chauvinismo espanhol merece.

Ninguém espera nada de nós. Com compromisso e trabalho é que os poderemos surpreender.

NOTAS A RODAPÉ

(*) Ângelo Pineda reside na Catalunha. O título deste artigo faz referência ao dia depois das eleições catalãs.

[1] Termo depreciativo para referir-se a Barcelona.

[2] Termo que se alcunhou recentemente na Catalunha para referir-se ao independentismo conservador e que se remete ironicamente à “boa Fé”; no senso de ir a combater Espanha “com o lírio na mão”.

[3] Blavero: pessoa partidária da secessão lingüística de catalão e valenciano. Por extensão, pessoa ideologicamente contrária à influência catalã no País Valenciano e a qualquer articulação política com a Catalunha.

[4] Literalmente “peixe para a canastra”. Expressão popularizada por Jordi Pujol para ilustrar a sua política de negociação e consecução parcial de competências para a autonomia de Catalunha. Identifica-se com o regionalismo de escassa ambição política.

[5] Vendedores, lojistas.

Máis de Ângelo Pineda Marinho