A proposta de confluência ortográfica da AGAL, umha leitura dissidente

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Esperava com muito interesse o anunciado prontuário ortográfico da AGAL que lim ao direito com toda atençom. O opúsculo sintetiza em forma clara e concisa a “normativa de confluência” aprovado em assembleia da Associaçom de 3 de dezembro de 2006. O propósito perseguido era fixar um padrom ortográfico de carácter normativo com pretensom de estabilidade e vocaçom de permanência devido ao facto de estar baseado no standard do português internacional que eu prefiro denominar galego-português tanto por motivo de rigor descritivo como por fidelidade aos usos acadêmicos consagrados, embora esta denominaçom poda resultar um bocadinho chata aos reintegracionistas de estrita observáncia e orientaçom cosmopolita.

Ortografia Galega Moderna, confluente com o português” é o título que anuncia claramente a orientaçom propugnada, sublinhada com o hemistíquio que completa o título. O opúsculo é um excelente manual de galego reintegrado como é de esperar vindo de dous pedagogos de português tam competentes e comprometidos como Eduardo Maragoto e Joseph Ghanime, assessorados ademais por umha equipa linguística da máxima qualidade. Um livro de consulta imprescindível.

A proposta apresentada sintetiza com precisom as sucessivas formulaçons da normativa AGAL, desde o pioneiro Estudo Crítico de 1983 até o excelente Modelo Lexical Galego de 2012 que deixa aberta em forma explícita a perspectiva de desenvolvimento de umha variante especificamente galega do galego-português, em linha com o propósito fundacional da AGAL.

Conhecia um rascunho do prontuário, achegado previamente por mam amiga, e pudem confirmar que nom prescinde de nengum dos sucessivos formatos ortográficos que a AGAL foi ensaiando ao longo da sua história em procura dessa norma galega científica, actualizada e congruente com as diversas variantes do português internacional. Convivem, efectivamente, todas elas no prontuário apresentada pola AGAL embora seja evidente a querença da Associaçom polo formato habitual do português, bem patente nas notas a rodapé que acompanham o texto.

O propósito implícito da “estratégia confluente”, parece óbvio constatar, é aprontar instrumental para o desenvolvimento da LPA, solenemente aprovada por unanimidade polo Parlamento Galego mas, de cuja situaçom e eventual programa de desenvolvimento nada se sabe. Lembram? Promulguem vocês quantas leis quixerem e deixem-me a mim redigir os regulamentos. Os modos do poder som predizíveis.

Talvez os órgaos decisores da Junta estejam sumidos em profundas reflexons acerca do modo de harmonizar a LPA — praticada a diário polos escolares estremenhos sem aparente dano psicológico— com as virtudes proclamadas do bilinguismo harmónico e mesmo filarmónico, tam caras ao retro fraguismo residual como ao esquálido segmento eleitoral que vozeia sem descanso a intolerável tortura a que submetem aos seus pobres filhos os agentes secretos do BNG infiltrados no sistema educativo galego.

Vista a orientaçom estratégica da “proposta de confluência”, nom pode por menos de surpreender o cauteloso pudor exibido na normativa confluente quanto à conservaçom de certos elementos gramaticais próprios do galego comum como a contracçom “polo” em vez da portuguesa “pelo”. Umha espécie de homenagem do vício á virtude, em palavras de La Rochefoucauld referidas à hipocrisia.

Também está a conservaçom da diferença galega falaram/falárom (pretérito mais-que-perfeito/pretérito perfeito) ou a imprescindível família umha da gramática galega (algumha, nengumha…) em lugar da esperável uma portuguesa. Persoalmente nom acho esta última concesom ao idioma vivo excessivamente meritória por quanto permite garantir um traço fonético característico do galego como o da palatalizaçom do n final: nom, coraçom, etc, tam difícil para os falantes foráneos como natural para os nativos. Um galego nunca pronunciará “nonestaben” por nom está bem” Optar por grafar “uma” renunciando a destacar ortograficamente este traço fonético característico do galego em torpe homenagem à ortografia portuguesa como alguns preferem é tanto, na minha opiniom, como amputar-se de umha mam por amor a um namorado manco. Amor de perdiçom. Postos a inovar, seria muito melhor recuperar a grafia histórica [ũ/ũa] que nom a emulativa [um/uma], incongruente com a nossa pronúncia como sabemos.

Caso digno de mençom é a pronúncia do dígrafo “ch” à portuguesa que alguns já admitem e que provém de o país vizinho ter perdido o som tradicional e rotundo do nosso pondaliano valeroso cham. A deriva meridional experimentada polo som em Portugal é exactamente a mesma que a experimentada polo “ch” castelhano em boca andaluza: un bixo/un bicho. Um fenómeno meridional em soma que está bem para quem gostar.

Na questom da utilidade das consonantes etimológicas duplas — ct, pt, cc — nom vou entrar. Os que preferem prescindir destes nobres e funcionais dígrafos — e que alguns de nós, digam o que dixerem, pronunciamos claramente — deverám lidar com as armadilhas do pacto/pato, óptico/ótico, accesso/aceso e por aí adiante. Naturalmente, para um brasileiro um pneumático ou pneu pronuncia-se pineu, porquê nom adoptar tam engraçada hiperpronúncia para compensar o aforro em letras? Persoalmente prefiro proclamar a minha condiçom romana. O meu mestre á antes um esquecido centuriom destinado ao noroeste da Ibéria que nom um falante por transmisom oral e escassa escolarizaçom.

Pequenos escrúpulos como podem ver deste particular sujeito, um pouco revirado e nascido alá na primeira metade do século XX, incapaz seguramente de adaptar-se aos novos tempos. Os membros da AGLP e os da AGAL com eles concordantes estám, naturalmente, dispensados de reparar nestas miudezas. Escrevam em português e pronto, alá os gramáticos com os seus matizes esquisitos, escrevamos como falamos, quer dizer, como fala a gente mais iletrada.

Contodo, a questom fulcral para mim nom é tanto a da eleiçom do formato ortográfico adequado para transcrever o galego comum senom — e quero sublinhar este ponto — o empobrecimento da capacidade expressiva do idioma a que aludimos quando falamos de estilística. A emulaçom do português quotidiano — tam contaminado, aliás, de neologismos franceses e anglo-norteamericanos — comporta desleixo culpável em detrimento da qualidade literária. Esse objectivo secular que perseguimos desde que as Irmandades da Fala convocárom o país á recuperaçom linguística e nacional. Quero evocar a longa cadeia de estilistas do galego, desde os mestres romancistas como Otero Pedraio (esqueçam os nefastos hiperenxebrismos reactivos, próprios da época) á prosa ágil e concisa dos Rafael Dieste e daí aos clássicos contemporáneos: Cunqueiro e Blanco Amor. E sobre todo os clássicos vivos, especialmente Ferrin e Bieito Iglésias. Sem esquecer os mestres do castelhano reelaborado em chave galega como Valle Inclán ou Torrente Ballester e os mestres da crónica política e social como Fernández Florez ou Júlio Camba, os nossos Josep Plá. Um rico acervo a assimilar fora de qualquer tentaçom adamista. Orgulhamo-nos de sabermo-nos elos de umha cadeia histórica. Criar um estilo próprio, reinventar o galego contemporáneo, congruente com a prática do galego-português internacional, é a obriga ética de todo escritor galego.

O português contemporáneo conta com grandes estilistas que nada tenhem a ver com a insípida prosa do português para estrangeiros que parece fascinar a algum praticante da fé cosmopolita. Os Luandino Vieira, Mia Couto, Miltom Hatoum ou Rui Zink podem servir de exemplo. O estilo fai o ser humano, costuma-se dizer e assi é, acertava plenamente Paul Valery quando afirmava que a pele era o mais profundo do ser humano.

Será que toda variante do português é legítima excepto a norma nacional galega em que está empenhada a AGAL? Será que o galego chegou tarde ao concurso das variantes aceites do galego-português? Será que o fascínio de escrever em formato internacional gratifica tanto a esperançosa geraçom literária que se identifica com o reintegracionismo que está disposto a esquecer a sua própria sociedade?

Precisamos que a potência da escrita d@s Teresa Moure, Susana Arins, Carlos Taibo, Carlos Quiroga, ou da potente voz épica de Vítor Vaqueiro e os magníficos cultores do idioma em blogues e imprensa digital nom se limite a reclamar um oco marginal nas vitrinas portuguesas e exijam, polo contrário, o lugar central na galeria da criaçom literária do galego contemporáneao, à par dos Ferrin e os Iglésias.

Portugal é, efectivamente, um refúgio acolhedor, compensatório da estúpida hostilidade e damnatio memoriae praticada pola cultura instalada e subvencionada, a imprensa cúmplice do poder e as editoriais de guarda, mas, quem decretou que esta anómala situaçom vai ser eterna? Mais bem dá sintomas manifestos de decrepitude.

Tenho razons para suspeitar que o formato lusófono nom vai achegar leitores além Minho; sempre preferírom o produto autóctone (com exclusom mesmo do formato brasileiro) mas contribuirá decerto a alhear leitores galegos. É preciso abrir de par em par a via nacional á literatura emergente no campo reintegracionista. Nas pequenas editoriais emergentes, encabeçadas pola imprescindível Editora Através, está o futuro.

Gostaria de rematar esta breve reflexom com um breve excerto. “Não”. Negativa breve e peremptória. (…) esta maldita imprecação. Abomino o til, o ladrar de perro, a nasalização desprezável. O seu autor é um maravilhoso estilista da língua portuguesa1. Observem a liberdade estilística, desde o próprio título, digno de Cunqueiro. Mário de Carvalho discorda também do AO 90 como tantos outros excelentes escritores2. Que o ditongo “ão” nom se converta em fetiche de amor de perdição, amigas e amigos.

E finalmente umha breve referência à questom da integraçom da Galiza na comunidade CPLP que nom consegue suscitar o meu interesse e menos ainda depois de conhecer a estranha composiçom do pitoresco clube. A Galiza é membro nato de toda agrupaçom internacional de índole cultural que agrupe países de fala portuguesa, por razom linhagem e por capacidade de resistência contra o assimilismo espanhol. O país de Mendinho e Rosalia nom precisa nem solicita passaporte. Se lho exigirem, o clube nom merece a pena. Renunciamos.

Nengumha soluçom virá de fora. Penélope sabe que a teia há-de ser tecida em solitário para alcançar algumha vez Ítaca.

NOTAS:

[1] Mário de Carvalho (2016): Ronda das mil belas em frol. Porto Editora, 1ª edição.

[2] http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/escritores-discordam-do-acordo-7805477?thread=65505061