Paixom lexicográfica, um terceto virtuoso

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reutersvardu2019s_triangle-svgCremos observar maior toleráncia com a escrita reintegracionista e mesmo um incipiente avanço, perceptível na imprensa digital. Entre os cultores da modalidade reintegracionista há quem até se atreve a prognosticar um hipotético armistício com os mandatários da normativa habitual que denominam bi-normativismo ou bi-modalismo. Embora prefiramos guardar um saudável cepticismo sobre a possibilidade de um armistício honroso em matéria ortográfica tampouco é descartável tal eventualidade caso o segmento social alheio às vantagens de adoptar a ortografia histórica — RAG, ILG, imprensa, editoriais — vaiam aceitando as virtudes derivadas da Lei 1/2014 de aproveitamento dos vínculos com a lusofonia, ou, mais provavelmente, o crescente influxo da aranheira global, mais conhecida por a WEB.

Sinais prometedores nom faltam, algum tam avançado como a proposta do galego de qualidade formulada e praticada polo ilustre gramático X. R. Freixeiro Mato que, em rigor, cabe interpretar como reintegracionismo genuíno salvo no formato ortográfico. Já agora, senhores académicos, para quando o reconhecimento do nosso melhor gramático como membro numerário da RAG? Seria óptimo poder comprovar que a RAG é mes que um club.

Como quer que seja, os efeitos benéficos do reintegracionismo começam a patentear-se na generosa ampliaçom da flexom verbal, na precisom sintáctica, na adopçom de marcadores discursivos ou na crescente presença de neologismos estáveis frente às frágeis improvisaçons habituais na matéria. Tempo ao tempo. Resiste-se por enquanto a mudança ortográfica nom obstante as suas manifestas vantagens. A ortografia histórica, rejeitada por motivos de comodidade ou por simples inércia espanholista, proporcionaria ao nosso idioma umha potente marca identificativa ante a inexorável deriva assimilativa ao castelhano e, o mais importante, permitir-nos-ia ler e pronunciar correctamente os nossos próprios apelidos e a nossa toponímia genuína, percebidos agora como um corpo estranho.

Resiste-se por enquanto a mudança ortográfica nom obstante as suas manifestas vantagens. A ortografia histórica, rejeitada por motivos de comodidade ou por simples inércia espanholista, proporcionaria ao nosso idioma umha potente marca identificativa ante a inexorável deriva assimilativa ao castelhano e, o mais importante, permitir-nos-ia ler e pronunciar correctamente os nossos próprios apelidos e a nossa toponímia genuína.

Neste árduo percurso do provinciano galeñol ao galeguês internacional há ainda outra área essencial a explorar, refiro-me ao universo lexicográfico próprio, próximo ou ampliado.

Proponho ao leitor umha breve visita guiada a esse fascinante continente da mão de três avezados exploradores: Issac Alonso Estraviz (1935), Álvaro Iriarte Sanromán (1962) e Carlos Garrido Rodrigues (1967). De formaçom humanística e férreo compromisso lexicográfico o primeiro, de sólido compromisso linguístico e ampla dedicaçom docente o segundo; de reconhecida competência científica em biologia e técnicas de traduçom o terceiro. Laureados polos seus pares com a inclusom no modesto olimpo dos lusistas observantes que é a AGLP1 os dous primeiros; experimentado artífice na arte da taxonomia lexicográfica — tam ligada ao ofício de biólogo — e avezado analista do ecossistema das línguas europeias, como mestre de traduçom que é, o terceiro.

IE)- O tenaz empenho que deu lugar ao Dicionário on line de Isaac Estraviz2 e a sua opulência lexicográfica nom o salvou da condenaçom ao ostracismo sem atenuantes nem julgamento. O pertinaz desdém oficial pola benemérita compilaçom lexicográfica de Estraviz poderia proceder talvez da indiferenciada inclusom no magno Dicionário de vocábulos de genuína estirpe galega com outros de procedência internacional. Ou talvez do menosprezo polos méritos académicos do filólogo de Trasmiras. Tudo é possível em matéria de fobias filológicas. A arrogáncia da congregaçom académica evoca de imediato o caso exemplar da insigne lexicógrafa Maria Moliner, excluída em vida da honra académica por motivaçons talvez semelhantes, agudizadas no seu caso pola impenitente misoginia dos círculos do poder. Umha certa afinidade moral acentua a semelhança entre ambos lexicógrafos: Isaac leva enriquecendo o seu dicionário toda a sua vida; o ímpar Diccionario de uso del español de Maria Moliner foi também obra de longa maduraçom; iniciada em 1952 ficou inconclusa no momento da sua morte, em 1981, o que lhe furtou a satisfaçom de poder contemplar a ediçom em papel e CD-ROM de 1998.

O legado lexical de Estraviz, custodiado por umha sólida equipa de suporte, luze sem tacha as suas 138.000 entradas que atraem meio milhom de consultas cada ano. A abertura do Dicionário à ecúmena luso-galaica nom lhe impediu o mais minucioso rastejo do vocabulário autóctone3. A propósito, atrevo-me a sugerir ao eminente lexicógrafo e à sua competente equipa a conveniência de assinalar como é devido o vocabulário especificamente galego com a marca [gz], reservada até o momento a balizar a colisom do ditongo alóctone [-ão] com o autóctone [-om]: edição (-om, gz). A equiparaçom assimétrica das três variantes do sufixo [-om / -ám / -ao: funçom / capitám / verao], em benefício imerecido do indesejado ditongo [-ão], Fernando Venâncio dixit, é tam respeitável como objectável num dicionário galego de vocaçom normativa como é o Estraviz.

O legado lexical de Estraviz, custodiado por umha sólida equipa de suporte, luze sem tacha as suas 138.000 entradas que atraem meio milhom de consultas cada ano. A abertura do Dicionário à ecúmena luso-galaica nom lhe impediu o mais minucioso rastejo do vocabulário autóctone.

O facto de o Estraviz disponibilizar o léxico autóctone galego através de híper vínculos (4, 5, 6) nom soluciona adequadamente o problema porquanto remete a um simples vocabulário desligado das entradas ordinárias do dicionário. O qualificativo de tesouro lexical galego-português do Dicionário bem merece a delimitaçom das diferentes províncias lexicais de procedência, como o Houaiss fai. O respeito à dimensom nacional do galego assi o demanda.

AI)- A equipa de suporte do Dicionário Estraviz guarda com discriçom um outro vértice da minha tríade lexicológica particular de referência: Álvaro Iriarte Sanromán7. Figura discreta do nobiliário reintegracionista que nom pode ocultar o seu inapreciável magistério na arte de transitar os traiçoeiros desfiladeiros que fracturam a fronteira linguística castelhano-portuguesa.

O professor Iriarte, redondelano de nascimento e bracarense de adopçom, é o redactor e responsável do Dicionário Espanhol-Português (Porto Editora, primeira ediçom, 2008) de incontornável referência para os praticantes do português deste lado da fronteira. A filosofia que o inspira luze na citaçom do Livro do Desassossego de Pessoa que lhe serve de lema:” por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição, escrito imperfeiçoa-se; por isso o escrevo”. Aforismo de teor zen adoptado por quem sabe medir a distáncia que vai do perfeito ao imperfeito que os doutorados em auto-suficiência ignoram.

Se a intençom do Dicionário Estraviz fica claramente exposta no seu prefácio: reintegrar o galego na sua linhagem linguística8; a do Iriarte adentra-se ousadamente na árdua destrinça do enguedelho da interface linguística luso-espanhola. Além de delimitar com precisom semelhanças e diferenças terminológicas, o autor avança com pé firme na selva semántica das palavras. A declaraçom de intençons sobre o contido da tarefa lexicográfica empreendida admira pola ambiçom do propósito9: definiçons e transcriçom fonética, mapa semántico e restriçons de uso, informaçom gramatical e enciclopédica, informaçom pragmática (contextual) e sintagmática (combinatória), pormenorizadamente ilustrado com exemplos aclarativos. Um potente arsenal, apto para reactivar a nossa fronteira linguística com o castelhano, tam magoada polo embate das interferências substitutivas e das extravagáncias hiperenxebristas. Consultem a voz pié e o seu mapa de conexons com o português e observam os amigos dos dicionários10 o dilatado continente de semelhanças e diferenças que se abre ante os seus olhos.

CG)- O perfil do professor da Universidade de Vigo Carlos Garrido assenta na firme vocaçom pedagógica e divulgadora e a manifesta mestria na arte taxonómica, tam congruente com a sua formaçom de biólogo. Carlos Garrido presidiu a Comissom Linguística da AGAL entre 2000 e 2015, e preside a da AEG desde 2016, tarefa prolongada nos incisivos comentários filológicos que continua publicando na imprensa digital. Contodo, a vocaçom pedagógica e divulgadora do professor é umha parte apenas do seu valioso contributo ao aperfeiçoamento do galego como língua nacional merecedora de norma própria. Aqueles que desconheçam a dimensom científica de Carlos Garrido podem ficar surpreendidos com o facto de ele ter publicado um dicionário de biologia de referência na prestigiosa editorial universitária brasileira EDUSP11: o Dicionário de Zoologia e Sistemática dos Invertebrados em quatro idiomas12 em cujas virtudes nom vou insistir porque já tem sido objecto do meu comentário em Praça Pública ao qual remeto o interessado13. A obra, gostaria acrescentar, contribui a potenciar a projecçom científica do galego e a erradicar a sua consideraçom como modesta língua doméstica e coloquial. O mesmo que Iriarte, Carlos Garrido encabeça o seu Dicionário com umha requintada referência a Carvalho Calero, à qual já aludim no meu artigo em Praça. Pessoa e Carvalho, dous poderosos padroeiros do galego sem fronteiras.

Aqueles que desconheçam a dimensom científica de Carlos Garrido podem ficar surpreendidos com o facto de ele ter publicado um dicionário de biologia de referência na prestigiosa editorial universitária brasileira EDUSP.

O decidido empenho de depuraçom lexical acometida polo professor ourensao-viguês, dirigido a confirmar um galego autocentrado e congruente com a sua família na romanística, inspirou a elaboraçom de duas ambiciosas obras de codificaçom e crítica lexical: a monumental investigaçom Léxico Galego: Degradaçom e Regeneraçom, (2011, Edições da Galiza) e O Modelo Lexical Galego. Fundamentos da Codificaçom Lexical do Galego-Português da Galiza, (2012, Através). Duas obras complementares de análise lexicográfica e diagnose precisa do processo de degradaçom que tolhe o nosso idioma e dos critérios que devem presidir a sua reabilitaçom.

Léxico Galego foi objecto de umha elogiosa resenha do professor X. M. Sánchez Rei na Revista Galega de Filoloxía à qual remeto o interessado14. Quanto ao Modelo Lexical, é um pormenorizado catálogo das doenças degenerativas do galego e das suas consequentes estratégias correctoras: variaçom sem padronizaçom (geográfica, de registo, de frequência), substituiçom castelhanizante (por reforço ou usurpaçom), erosom ou estagnaçom com suplência castelhanizante, sem esquecer os diferencialismos, corpos estranhos estes, resistentes a tratamento pola sua habilidade para mimetizar-se como galego genuíno. Um potente aparelho conceptual, em fim, arquitectado para tabular o léxico e isolar as suas variedades tóxicas. O Santo Graal do reintegracionismo que inspira o minucioso labor lexicográfico de Carlos Garrido é esse Padrom Lexical Galego, PLGz, limpo das pejas adventícias que conspiram para degradá-lo a simples bable do castelhano.

O mau agoiro da extinçom por confluência com o castelhano é exorcizado polo nosso terceto virtuoso como prenúncio desse galego emancipado, livre por fim da gaiola dourada em que vive confinado.

3 Além de vocábulos de inequívoca procedência galega como “enxebre”, “chainhas”, “trosma”, “relambido”, “nifroso”, “interquenência”, “duira” e tantos outros; também inclui locuçons infrequentes como “bardantes de” bem viva na minha memória linguística familiar e abonada aliás pola minha irmã Susana na sua tesinha de licenciatura na USC, Fala e cousas de Toba, (1968), resumida no Anuário galego de filologia Verba, vol.2, 1975.

10 Permitam-me recomendar-lhes um aliciante opúsculo de um amante informado deste fascinante disciplina: https://editorial.csic.es/publicaciones/libros/11916/978-84-00-09228-3/la-presunta-autoridad-de-los-diccionarios.html