Fernando Venâncio e a fronteira linguística do norte

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A Fernando Venâncio, Ernesto Vázquez de Sousa e Maurício Castro, cúmplices involuntários deste artigo

Apesar do meu deficiente conhecimento da trajectória intelectual de Fernando Venâncio, guardo grande apreço polo professor e pola lucidez e firmeza com que defende as suas posiçons sem fugir da polémica nem vulnerar a deferência devida ao opositor.

Na sua presença ocasional nos debates do PGL, o professor gosta de advertir sobre o perigo de isolamento que ameaça o reintegracionismo sem, no entanto, desconsiderar o movimento. Talvez saiba ou suspeite que algumhas dissonáncias que ele crê perceber som apenas respostas reactivas ao férreo isolamento programado com que as instáncias do poder pretendem abafar o movimento. Os economistas gostam de qualificar situaçons como estas de abuso de posiçom dominante. Ou pode, talvez, que pondere o facto de o reintegracionismo ser o único movimento empenhado em manter o galego na órbita que lhe é própria: a do galego-português. Umha posiçom de fronteira — neste caso interna — sempre incómoda como Fernando Venâncio, transfronteiriço de vocaçom, terá experimentado.

O que nom admite dúvida é o interesse permanente do professor de Mértola pola problemática que agita a fronteira norte da língua portuguesa, além da polémica ortográfica e do difícil equilíbrio entre o galego amortecido e a opulência do português.

O idioma secular dos galegos, que resistiu séculos da assimilaçom, parece esmorecer sem remédio conhecido no momento em que conta com o melhor quadro legal protector: a Lei de normalizaçom linguística (1983) e a Lei Paz Andrade (2014), promovida esta polo reintegracionismo e referendada polo Parlamento a fim de incorporar o português ao curriculum escolar. Falta apenas vontade política para pô-las em prática.

Nom queremos esquecer o importante avanço experimentado nos últimos anos no instrumental filológico a dispor do letrado e o especialista: dicionários e estudos lexicográficos, gramáticas de qualidade, mapa linguístico, concorridas aulas de português, infantários Semente em corajosa expansom, multiplicaçom de contactos com os países da lusofonia potenciados pola Rede.

A Galiza tem reconhecido o status de nacionalidade histórica na Constituiçom espanhola sem que este facto se tenha traduzido em avanços no uso e consideraçom do galego, em flagrante contraste com o vigoroso processo normalizador acometido em Catalunha e no País Basco.

É verdade, devemos reconhecer, o Partido Popular, que opera na Galiza como opçom política por defeito, é umha gravosa rémora para a reabilitaçom cultural do país apesar de nom superar 48% do apoio eleitoral. A influência do conservadorismo espanholista é bastante maior em todo o caso por culpa da afável cumplicidade de umha parte substancial dos agentes institucionais da gestom cultural. Tampouco ajuda a cautelosa posiçom da intelectualidade portuguesa sobre um conflito cultural que dificilmente deveria considerar alheio. A fronteira linguística do norte, fonte originária e inevitável sócio europeu do português, mereceria mais atençom e mesmo cordial cumplicidade nesta hora da Europa en construçom e da Espanha agitada por conflitos identitários irresolutos. Umha actualizaçom inteligente do discurso de Rodrigues Lapa, penso eu, seria bem-vinda como antídoto ao pinheirismo insidioso que impera nas instituiçons culturais do país.

Em 2011, a Revista Grial, no seu número 192 dedicado a Álvaro Cunqueiro, inseria um memorável artigo de Fernando Venâncio[1]: O indesejado ditongo –ão, onde, com a habitual desinibiçom e independência de critério costumada, o filólogo de Mértola desvendava a origem e evoluçom do ubíquo ditongo que, do meu ponto de vista, traceja um autêntico parte-águas ou linha divisória entre os paradigmas actualmente em pugna pola codificaçom ortográfica do galego.

Leccionam os gramáticos que o sufixo castelhano [-ción] procede do nominativo latino [-tio] com ablativo [-tione]. Nom será preciso lembrar o vivo debate que abriu na Galiza este sufixo revelador a partir de Carvalho Calero. A opçom [-ción] é a couraça inexpugnável da RAG, a [-ão] identifica os textos canónicos da AGAL em quanto os tradicionais sufixos [-om, -am] som agora marca distintiva da AEG. A primeira hipótese ortográfica ancora irremediavelmente na norma espanhola, a segunda, na ampla koiné cosmopolita do português e a terceira nos primórdios da língua emergente do latim. Foi neste nervo axial onde pousou o seu resoluto escalpelo filológico Fernando Venâncio. O portal da AEG acolheu com prazer o penetrante artigo, afinal de 2016, que iluminava o indesejado efeito nivelador do avassalador sufixo.

Poucos meses antes, o portal da AEG já inserira outro incitante artigo de Fernando Venâncio, centrado desta vez na situaçom do galego e os problemas que suscitava[2]. Nele, o filólogo interpelava directamente a opiniom pública portuguesa — ou, se preferirem, a opiniom letrada — por conta do seu flagrante ponto cego aplicado á fronteira linguística do norte:

São problemas espanhóis, eles que se avenham. Portugal é aquele país perfeito, um só povo, uma só nação, uma só cultura, uma só língua, com as fronteiras mais antigas da Europa, e portanto do Mundo… É quase, quase verdade. Isto, porque a fronteira linguística é tudo menos aquela perfeição. Há uns esbatidos, umas infiltrações, umas continuidades. Em suma, uma série de vagos problemas. Esbatidos, infiltraçons, continuidades: impossível descrever melhor o ténue ecoar da irmandade linguística reprimida e persistente.

A constelaçom galaico-portuguesa contém órbitas variadas, mutuamente alheias por causa dessa inveterada ilusom que privilegia erradamente a própria: a portuguesa, a galega, a brasileira, as africanas. As fronteiras entre órbitas som objecto de guarda permanente e nom deixam de produzir estranhas miragens, mormente em termos de ensimesmamento mas também de animosas propostas de aboliçom ou confluência como um lusismo abrangente e a-histórico, que já fora analisado em profundidade por Eduardo Lourenço[3], ou, pior ainda, de autismo nacionalista que nos consagra como povo eleito ou mártir, segundo preferências.

Fernando Venâncio, de volta a casa depois de ter leccionado em Utreque e Amsterdam, é perito em fronteiras. Gostaríamos de crer que é chegado o tempo propício para ele contribuir a desenlear o subtil fio azul que une desde a latinidade tardia Galiza e Portugal. Fio oculto por séculos de estatolatria, inoculada em doses homeopáticas a geraçons de escolares e licenciados a um lado e outro do rio Minho matricial para convencê-los de que o idioma em que trovárom os jograis a língua inaugural é história definitivamente cancelada: arcaico dialecto do espanhol ao norte, idioma nacional em exclusiva, engendrado por imaculada conceiçom, ao sul.

Notas:

[1] https://www.aeg.gal/opiniom/item/87-o-indesejado-ditongo-ao

[2] https://aeg.gal/noticias/item/61-o-galego-de-todos-nos

[3] Eduardo Lourenço (2004): Imagem e miragem da lusofonia, Gradiva, Lisboa