A citação que dá título a este artigo está tirada de um ensaio de Robert Louis Stevenson sobre a sua cidade natal, Edimburgo. A frase, que já isolada é tão sugestiva ao pensamento como aquela de Vicente Risco “a Galiza é um mundo”, ganha consistência e sentidos quando lida no contexto do parágrafo, da mesma maneira que a de Risco se a consideramos como prólogo ao relato da peregrinação a Santo André de Longe: “não tereis uma autêntica vista de Edimburgo se só vedes desde o centro de algum dos seus bairros: não, até verdes como uma capital, com o mundo à sua volta, com a Europa e os mares a circundar. Porque todo o lugar é um centro da terra, de cujas vias partem os barcos para portos estrangeiros; o limite duma paróquia não é mais imaginário do que a fronteira de um império”. Assim gosto de olhar para o mundo, assim gosto de ver a minha cidade nativa, um porto numa rede de portos que continua, no tempo e no espaço. Dir-se-ia que há quem goste de ver a imutabilidade, e de outorgar a qualidade do eterno ao limite da paróquia e do império. Outras gostamos de ver a mudança, mesmo na terra, as camadas de memória que vão transformando o signo, a sua penetrabilidade, a continua transferência de significados. Gosto de descobrir esse mundo sequencial humano no livro do território, de interpretar a paisagem, de a ler como se fosse um livro, colhido do contínuo da terra e do conhecimento, à medida da nossa finitude e da nossa sede de relações.
Noutro ensaio Stevenson elogia o caminhar a pé polos pensamentos que temos caminhando e o estado do corpo depois de caminhar, recomenda o não viajarmos induzidos por leituras prévias, o viajar polo prazer, ou a necessidade, do exercício do movimento, da experiência do instante, do inédito, do efémero. A vivência da viagem depende do nosso estado de espírito, da nossa disponibilidade para que os lugares eduquem a nossa sensibilidade e formem o nosso conhecimento. O ato físico de caminhar nunca é só físico e altera, diz Stevenson, a nossa experiência do tempo, redimensiona o mundo interiormente. Há uma relação deste exercício com a liberdade e a falta de horário, uma medida do tempo ritmada polo movimento dos astros. Para alguém, como eu, leitora infantil dos romances de Stevenson, estes ensaios esclarecem o sentido de todas as suas outras narrativas das viagens ao longe, a sua busca do diálogo anímico com os lugares, a sua memória e a sua consciência, a sua mensagem de que estar nos lugares desencadeia um discurso interior que não existe no estático, o seu amor pola aventura e a graça, a profunda emoção perante o inesperado como trânsito mínimo de qualquer movimento. “Quando tenhas a tua dose de bosque talvez queiras percorrer o mundo inteiro”, diz com essa maneira única de representar o espaço sem hierarquias e, ao mesmo tempo, com a possibilidade de desvendar-nos relações e significados até ao infinito.
No mesmo volume leio o seu relato de viajante num barco de emigrantes que vão das Ilhas Britânicas a Nova Iorque em 1880. Para além da curiosidade pola descrição imediata da vida quotidiana e das relações durante a travessia, Stevenson dá uma leitura única dos territórios no século da industrialização e os movimentos migratórios no Atlântico. A sua primeira interpretação daquela viagem, a sua “leitura prévia”, uma história épica de homens que conquistarão a sua liberdade polo trabalho no Novo Mundo, vai deixando lugar com a observação e o conhecimento real dos emigrantes a um olhar compassivo sobre aqueles passageiros, que não eram homens jovens sedentos de aventura mas homens de alguma idade, que Stevenson define como “derrotados da classe operária na Grã-Bretanha”. Incluindo-se no retrato, fala duma comunidade de marginados e fracassados da Inglaterra. A industrialização marcou um antes e um depois na nossa relação com o território, e não posso deixar de notar que no tempo em que se pensou e se produziu para todo o tempo e para todo o lugar houvesse tão grande produção de marginais e de desterrados, de modos de ser incorretos ou deficientes.
Nos nossos tempos, em especial na última década, deslocalização e turistificação vêm sendo palavras comuns no discurso público, como uma maré imparável a assolagar a nossa vivência do espaço. Eu vou resistindo à monocultura com a necessidade de ir aos lugares e ouvir as pessoas, deixando que eles se filtrem no meu pensamento como água sempre a buscar caminho. Os anos que passei no Algarve deram-me a minha particular vivência do impacto do turismo na paisagem e nas relações, e com certeza me transformaram. Variados lugares nos que passo têm para mim a mesma entidade de cenário em que algo de catártico acontece na minha alma. Qualquer praia virada a poente é espelho no que procuro reflexo dum tempo auroral sem história que desejo por hábito da alma. Outros lugares têm alguma teatralidade, como tantos de Lisboa, encenação de poder ou drama de resistência. A Galiza toda é um mundo em sincronia, com estratos temporais em drama constante, do tempo das pedras à voz que pensa neste momento na língua que me foi dada. Que existe uma comunidade de pensamento apesar da descontinuidade dos diálogos entre galegos e portugueses é algo que vivo diariamente desde há duas décadas. Que os lugares alimentam pensamentos, que não dizemos o mesmo num lugar ou noutro, também sei. Um prazer que me foi dado é que dependendo do lugar em que nos situamos os diálogos também são diferentes, ainda que por vezes não passem de variantes de versos de um poema comum.
Esta é a minha cultura, isto é o que eu sou: leio o território como livro da memória e confio nele mais do que no documento. As galegas somos socializadas com a metáfora de sermos periferia e quando ainda ousamos reclamarmo-nos como centro com frequência é para afirmar a clausura e o isolamento. A metáfora é sinal de como vivemos no quadro maior do imaginário continental, da nossa radical falta de soberania. Não compreendo como a cultura que gerou a maior vaga de caminhantes da história do ocidente, que já dura séculos, perdeu a curiosidade pola viagem, polo outro como outro, como desconhecido, e o hábito de interpretar o seu percurso não só polo que é, mas polo que encontra, polas relações das que faz parte, tão complexas, com vetores em tantas direções. E, o que é pior, de onde vem a insistência nos mesmos erros, a falta de reflexão e de mudança na interpretação e no relato? De onde a censura de percursos diferentes, a obsessão por leituras prévias à própria experiência, a insistência em imagens tão reduzidas e redutoras do que é ser galega? Tenho eu, é uma impressão possivelmente criada no meu exercício docente, que o empirismo é cousa pouco apreciada, e já dura séculos, polo pensamento dominante (e dominador) nesta nossa Península Ibérica. O controlo do pensamento, secularmente estruturante na organização política, territorial e económica dos estados ibéricos, ecoa na intolerância, na incompreensão, na imposição de modelos estáticos da identidade, na falta de empatia e na pedagogia que praticamos ou nos vemos levados a praticar. E se se foram ganhando espaços para algumas identidades, o mesmo não acontece para a ideia do nacional e do territorial. A minha nação é um porto, com essa bela dialogia nas línguas romances entre porto e porta. Dizia Isaac Díaz Pardo que as cousas com raízes perduram sempre. De árvores estão feitas as naus e a primeira navegação nasceu da metáfora de uma árvore aberta, e não há viagem marítima que, dalguma maneira, não tenha, como momento primordial, o movimento de alguma raiz.
(As citações estão tomadas de: Robert Louis Stevenson, Viajar. Ensayos sobre viajes, ed. Páginas de Espuma, 2014).