Saber priorizar (*)

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Nascim em 1983, quase ano e meio depois da Real Academia Galega (RAG) e o Instituto da Lingua Galega (ILG) aprovarem as normas ortográficas e morfológicas do idioma galego, que se convertêrom meses depois em —disque— oficiais. Sem ter conhecimento deste feito, minha mãe educou-me em galego; em que outro idioma ia ser, se é o que falava a família toda? E fijo-o na variante própria do canto da Terra Chã em que me criei. Ao mesmo tempo, muitos pais, naqueles oitenta, optárom por renegar do seu idioma e romper a corrente de transmissão linguística, mas isso é algo que saberia só muitos anos depois, pois todo o alunado da escola —quase quatrocentos— éramos galego-falantes.

A língua é um investimento e, se se puder escolher, não é raro optar por aquela que nos parece mais proveitosa e menos conotada. Séculos de exclusão dos âmbitos de prestígio pesam sobre o galego, mas, à minha mãe, bastou-lhe o feito de ser a sua língua, a que refletia a sua identidade e a do seu país.

A minha geração pudo normalizar o idioma através do ensino, da televisão ou dos livros infantis, ainda que os prejuízos padecemo-los igual e de seguro alguém nos perguntou, sem vir a conto, por que falávamos galego. Na escola aprendemos a escrever numa variedade que é uma convenção, como todas as normativas, baseada nuns critérios linguísticos, históricos, de tradição literária… Isso também não nos distingue das demais. Poderiam ser outros? Com certeza. Muito me surpreendim, sendo neno, ao pegar num livro brasileiro e ver ali, com naturalidade, palavras do meu galego que não apareciam na variante ensinada na escola: «bom», «muito», «irmão»…

Conhecer outras realidades faz relativizares o teu e perceber como natural que, quando se escolhe uma opção, sempre há partidários das outras possíveis. Bem que as línguas existem mesmo não tendo expressão escrita e para além dela, por isso mesmo me preocupa a ruptura desse elo na corrente de transmissão, que não soldará grafia nenhuma, mas ajudará.

Sendo neno, peguei num livro brasileiro e vim ali, com naturalidade, palavras do meu galego que não apareciam na variante ensinada na escola
Sendo neno, peguei num livro brasileiro e vim ali, com naturalidade, palavras do meu galego que não apareciam na variante ensinada na escola

A beligerância com que em 2009 se atuou contra a nossa língua para conseguir um feixe de votos deu em medidas tão nocivas como o mal chamado «decreto do plurilinguismo» que proíbe dar a matemática, a física ou química em galego, mas sem qualquer impedimento em inglês. Parece que querem voltar esses tempos e escuitamos, nos últimos dias, manifestações políticas que atacam o galego e que defendem os direitos dos que sempre os tiveram: pessoas castelhano-falantes que pretendem educar os seus filhos na ignorância da língua própria do seu país e inoculando-lhes a ideia de que é um idioma superior ao galego, o qual só valeria para a aldeia e pouco mais.

Ninguém deveria basear-se nos seus preconceitos para impedir as crianças do acesso a um mundo mais amplo, para lhes furtar um conhecimento essencial, que é a língua da sua terra. Também, ninguém se deveria parapeitar atrás de uma pancarta ou de um tweet para atacar a língua própria da Galiza. Os dirigentes que apoiam estas teses atentam contra o maior património que temos, aprofundam na estigmatização e não são dignos de nos representar. Nesta situação, a questão da grafia pode parecer uma cousa menor, mas, devidamente concebida, tem uma grande relevância e um potencial imensurável.

A ruptura da corrente de transmissão da língua deve-se, essencialmente, a um preconceito sobre a sua utilidade. Restaurar ao galego a grafia que lhe é própria, isto é, a da língua portuguesa —que não é outra cousa que o galego que cresceu sem outra língua assovalhando nele—, e reinserir o nosso idioma na esfera lusófona de que jamais deveu sair, revelam-se como os mais eficazes antídotos contra a doença.

Jaora, a nossa língua não vai ser melhor nem pior por partilharmo-la com mais de duzentos milhões de pessoas ou só com uns poucos centos aqui e acolá. A nossa língua é a mais importante porque é nossa, porque é a chave que decodifica o nosso mundo, os nossos sentimentos e a nossa maneira de ser. Mas estamos num momento de urgência linguística e devemos saber priorizar, sim, e isto significa começar polas soluções mais rápidas e ao alcance da nossa mão: que é mais doado? Mudar a ortografia de um idioma ou fazer pedagogia, pessoa a pessoa, com mais de dous milhões de concidadãos? O seguinte capítulo desta história deveria-se escrever só…

 

A nossa língua não vai ser melhor nem pior por partilharmo-la com mais de duzentos milhões de pessoas ou só com uns poucos centos
A nossa língua não vai ser melhor nem pior por partilharmo-la com mais de duzentos milhões de pessoas ou só com uns poucos centos

 

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(*) Resposta ao artigo homónimo da professora Malores Villanueva, publicado em ‘La Voz de Galicia’ a 12 de novembro de 2020