Rodrigues Lapa e a Galiza

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O professor Manuel Rodrigues Lapa (Anadia 1897-1989), que tanto amou a Galiza e tanto trabalhou pela cultura galega, merecia ser mais conhecido entre nós. O sectarismo anti-português que nestes últimos anos prevalece no grupo dominante na política cultural galega (o “galeguismo oficial”) provocou, entre outras consequências, que se agravasse ainda mais o já tradicional desconhecimento da cultura luso-brasileira determinado pela nossa dependência espanhola. Isto afectou também a obra e a pessoa de Lapa. Não é casualidade que tenha falecido sem receber da Galiza algum reconhecimento público (nem sequer um doutorado honoris causa, e de verdade que não será fácil achar um não galego que mais o mereça).

Pior ainda: as suas ideias foram tergiversadas e ele viu-se caluniado repetidamente como se fosse um inimigo da nossa identidade linguística. Frente a esses ataques escrevia em 1981, com a sua característica dignidade moral de respeito aos adversários:

“Há uns bons 60 anos que me venho ocupando do problema galego, em termos de muita simpatia por um povo irmão […]. Os meus escritos estão patentes a quem os queira ler”1.

Desses muitos escritos que Lapa dedicou à Galiza, selecciono a seguir alguns trechos, a maior parte deles tomados da sua colectânea intitulada Estudos galego-portugueses (1979), em que juntou vários artigos seus sobre temas galegos2.

A “descoberta” da Galiza

Os galegos sabemos que, infelizmente, para muitos portugueses, mesmo cultos, a Galiza é simplesmente uma parte mais da Espanha. Lapa descobriu cedo que, para um português, o nosso país era muito mais do que isso. Foi na sua mocidade, pelos anos 20, e desde então a dedicação aos temas e problemas galegos converteu-se para ele, como confessa, num “vício” e num dever moral ao mesmo tempo:

“andava eu a preparar a minha tese de doutoramento […] e convenci-me inteiramente de que, para nos conhecermos bem, teremos de conhecer a Galiza, onde está a nossa mais profunda raiz […]. Nesse mesmo ano de 1930, em que publiquei a tese, saía também dos prelos da Seara Nova um estudo meu sobre O vilancico galego nos séculos xvii e xviii. Daí em diante nunca deixei de me ocupar da Galiza, que é para mim um vício e uma necessidade; e também um dever moral” (1977)3.

Foi, pois, o estudo das origens da nossa poesia medieval –campo em que se tornaria logo um dos maiores mestres, com numerosos e importantes trabalhos publicados durante toda a vida, até sacar a lume a monumental edição das cantigas de escárnio– o que o conduziu de modo natural a descobrir este pequeno país de língua portuguesa que é a Galiza, cujo desconhecimento em Portugal ele tantas vezes lamentou e procurou corrigir.

A partir desse momento a Galiza ia arreigar tão profundamente no seu coração que já nunca na sua longa vida deixaria de estar presente na sua obra e nas suas actividades, como uma espécie de necessidade interior mas também por um sentido de dever moral, segundo o seu próprio testemunho. Até sentia honor e orgulho em declarar-se galego, por ter nascido em Anadia, uns 25 quilómetros para o norte do rio Mondego, que era o limite meridional da antiga Gallaecia romana, e uma vez, quando Fernández del Riego o qualificou carinhosamente como “Galego honoris causa”, Lapa replicou que esse título “não me satisfaz inteiramente: eu não quero ser Galego honorário, mas simplesmente ordinário, no bom sentido do termo”4.

“Sempre considerei a Galiza, essa terra maravilhosa, desgraçada e incompreendida, como sendo a minha própria terra; e historicamente e geograficamente assim é, pois estou dentro dos limites da velha Galécia, que chegava pelo sul ao rio Mondego. Mas também lhe estou vinculado pelo coração, que apoia naturalmente todos os que defendem a sua liberdade e a sua cultura”5.

Viagem à Galiza

Em 1932 vem por primeira vez à Galiza, com ocasião da homenagem tributada a Castelao em Lugo. Quando retorna a Portugal publica na revista Seara Nova um emocionado artigo com as suas impressões, logo reproduzido na revista Nós (1932)6:

“A meio do almoço irrompe na sala um coro galego. Não sei o que tem a gaita que me revolve todas as fibras da sensibilidade. Aquele aturujo, sorte de clamor guerreiro, alegre e irónico, não consegue, muito ao contrário, distrair a minha comoção, que me vai, a meu pesar, molhando os olhos. Castelao diz-me: ‘- É mui ledo, nom é?’ Respondo-lhe: ‘- Para mim é mui triste’. E logo ele: ‘- Para mim também’.

Começam os discursos. […] Estou pasmado, parece-me estar em Portugal: porque tudo aquilo é puro lirismo, que flui, ligeiro e fácil, da boca untuosa de Pedraio, forte e retumbante do negro vozeirão de Picalho. Afirmações de fervoroso galeguismo. Castelao agradece. Tem a sedução das palavras simples, pitorescas, que vão direitinhas ao coração. […] Há lágrimas em muitos olhos. Acaba o banquete. E eu, que tencionava apenas ser naquela festa um espectador atento, venho derreado das emoções da famosa jornada. Senti-a como se fosse galego. Um meu companheiro de camioneta, vendo-me silencioso, ruminando o meu sonho interior, compreende-me e diz-me melancolicamente esta maravilhosa cousa: ‘- Andamos desviados…’ Assim é, irmão galego, andamos estúpida e incompreensivelmente separados, nós, que tão bem nos entendemos e tanta falta fazemos uns aos outros!”7

Em entrevista a um jornal de Lisboa por esses mesmos dias formulava com nitidez as conclusões da sua recente experiência galega:

“O povo galego tem sabido conservar, através de tudo, com uma teimosia passiva, que é a nota dominante do seu carácter actual, o indigenato da sua cultura, que, sendo galega, é também portuguesíssima. […] apesar da influência machucadora da civilização espanhola, tão diferente, a alma galega vira-se para nós num aceno fraterno”8.

Foi nesse mesmo momento –e não na sua ancianidade, como alguns disseram aqui na Galiza, pretendendo desautorizar a atitude de Lapa como “uma teima senil”– quando começou a preocupação pela língua da Galiza, e o seu convencimento de que o único modo de supervivência para ela era conservar a unidade lusófona, especialmente no campo ortográfico. Nessa mesma entrevista declarava:

“É necessário em primeiro lugar reformar a ortografia galega no sentido da nossa ortografia oficial, sempre que isto seja possível, que quase sempre o é”9.

A Galiza, país lusófono

O problema linguístico da Galiza esteve presente numa conferência proferida no ano 1933 que se tornaria famosa por outras causas. Ali intentou convencer os portugueses de que o nosso futuro não lhes pode ser indiferente:

“Há povos que tem uma alma dilacerada e confusa: são aqueles que, pelos acasos da história, da história feita pelos grandes homens, são obrigados a falar duas e mais línguas: uma, a verdadeira, a que se mamou dos seios maternais, a outra, que é imposta oficialmente pelo conquistador. Temos aqui à porta exemplos desse formidável equívoco; um deles, a Galiza, interessa-nos particularmente, por se tratar de mais de dois milhões de bocas que falam como que às escondidas o português”. […] “para cima da risca prateada do Minho vive e sofre um grupo de dois milhões de homens, que falam a nossa língua e sentem a nossa alma”10.

Propagandista da Galiza pelo mundo

O seu labor de propaganda da cultura galega e de informação sobre a nossa identidade começou também então e perduraria durante toda a vida. Nas suas mesmas aulas universitárias, tanto em Portugal primeiro como mais tarde no Brasil, achou jeito de introduzir a nossa literatura:

“não podendo, como desejava, fazer na Faculdade de Letras uma série de conferências sobre literatura galega, aproveito o curso de Literatura Portuguesa Medieval para pôr os alunos em contacto com alguns nomes: Rosalia Castro, Pondal, Cabanilhas, Otero Pedraio, etc.”11

“Em Universidades do Brasil fiz um ciclo de lições sobre literatura galega dos nossos dias e demorei-me um tanto no estudo do idioma e seu vocabulário poético. […] Foi um deslumbramento nos meus jovens discípulos”12.

No seu livro mais popular, Estilística da língua portuguesa, repetidamente editado –uma espécie de bestseller em Portugal durante anos–, incluiu exemplos literários de autores galegos contemporâneos, ao lado de portugueses, brasileiros e africanos. Xavier Alcalá, Blanco Amor, Cabanilhas, Carvalho Calero, Castelao, Díaz Castro, Dieste, Fole, Novoneira, Otero Pedraio, Pondal e outros escritores galegos têm citações nessa obra.

Amizade com Castelao

Desde o mútuo conhecimento em 1932, Lapa manteve a amizade com Castelao, com quem se sentia irmão em ideias e atitudes. Quando Castelao faleceu, Lapa preparou um número extraordinário, verdadeiramente magnífico, da revista Seara Nova dedicado integramente à figura e aos escritos do seu defunto amigo (como antes, em 1935, organizara outro número especial da mesma revista dedicado a Pondal com ocasião do centenário do seu nascimento):

“O que sentimos perante a cruel notícia foi o que sentiríamos pela morte dum irmão […] Desde que o conhecemos pela primeira vez em Lugo, no mês de Junho de 1932, nunca mais pudemos esquecer aquele homem, os seus olhos doentes, banhados de ternura e fina ironia. Encontramo-nos por vezes em Lisboa […]. Depois, com a guerra civil da Espanha, nunca mais nos tornámos a ver; mas seguimos sempre, cá de longe, com simpatia fraternal, a generosa aventura deste homem raro, espelho brilhante de cidadãos. Morreu longe da Terra, que ele tanto amou e pela qual lutou, como um paladino, até ao último alento da vida”13.

“Da obra tão facetada de Castelao há ainda um aspecto que convém assinalar […] votava ao nosso país o mais entranhado afecto, pois via nele, e muito acertadamente, a parte engrandecida dum todo, que os caprichos e os erros dos homens arbitrariamente dividiram. É no seu último grande livro, Sempre em Galiza, que nos fala do seu interesse, nos anos da mocidade, em conhecer Portugal e a sua cultura. Sempre que […] vinha em excursão a Portugal […], Castelao embebia-se de cultura portuguesa e, ao regressar, ia, como ele impressionantemente diz, ‘com os olhos prenhes de formosura e o coração cheio de saudades, alegre por ter visto em Portugal o génio galego em liberdade’. E, naturalmente, regressava ainda mais galego. […] A grande aspiração de Castelao era –não podia deixar de ser– a união de Portugal e Galiza, a correcção do grande erro, da grande injustiça que desligou os dois povos irmãos, irmãos verdadeiros, até na linguagem”14.

Sonhando um futuro para a Galiza

Como Castelao –que confessava desejar que galego e português se confundissem e sonhar no dia em que Galiza e Portugal voltariam a falar a mesma língua–, Lapa –que, sempre encantador na sua modéstia de sábio, citava com devoção essas afirmações de Castelao– sonhava para a Galiza um futuro lusófono:

“A Galiza amanhã terá a posse de si mesma; e uma civilização, a que cinco séculos de cesarismo político não conseguiram destruir o curioso indigenato, desentranhar-se-á em frutos de cultura e poderá ainda exercer um papel considerável no xadrez variado da Península. Essa civilização terá como veículo expressivo uma língua que já nos encantou no verso indefinível de Rosalia e agora nos anda a deliciar na prosa romântica de Pedraio. Aprenderão os galegos o seu idioma oficialmente e aprenderão o castelhano por intermédio da sua língua materna. Vai haver pois necessidade de se resolver o seu problema ortográfico”15.

“Teremos então um português ingénuo, delicioso, sabendo a velho, mas próprio para exprimir todos os matizes da sensibilidade […]. Depois disto teremos um grupo português-brasileiro-galaico, com […] milhões de pessoas falando, aproximadamente, a mesma língua”16.

Como Castelao, Lapa viu bem que, num mundo de dimensões cosmopolitas como o presente, só poderemos seguir sendo galegos se integrados dentro da área linguística portuguesa, que é a nossa. E, como Carvalho Calero, sabia que a pretensão de desmembrar a Galiza da área lusófona, pretendendo fazer da língua do território galego um idioma independente do português, seria, ademais de acientífico, uma aventura suicida.

Agora, passados já uns anos do falecimento de Lapa, o tempo vai-lhe dando –a ele e a Castelao e a Carvalho Calero e a tantos outros– cada vez mais a razão. Para muitos de nós cada vez se torna mais claro que a língua da Galiza morrerá se não se integra no seu lar natural, que é o idioma que hoje o mundo conhece pelo nome de “português”. Para que os falantes galegos não sigam abandonando massivamente a língua do país não basta que a nossa língua se lhes apresente como “a língua própria da Galiza”; é preciso, ademais, que se lhes transmita a consciência clara de que é um idioma “extenso e útil” –para retomar as palavras usadas por Castelao–, de grande projecção demográfica e cultural e de radiante futuro.

Por isso mesmo, somos muitos os que na Galiza conservamos vivas no nosso coração e na nossa vida de cada dia as ideias do mestre Rodrigues Lapa –para além da lembrança pessoal de um sábio admirável, de cativante amizade.

1 M. Rodrigues Lapa, «Algo de novo sobre o problema do galego», em: Grial (Vigo), núm. 75 (outubro – dezembro 1981), pág. 498.

2 [Manuel] Rodrigues Lapa, Estudos galego-portugueses: Por uma Galiza renovada, Sá da Costa Editora, Lisboa 1979.

3 M. Rodrigues Lapa, As minhas razões: Memórias de um idealista que quis endireitar o mundo…, Coimbra Editora, Coimbra 1983, pág. 297. Do seu livro sobre os vilancicos galegos cantados em Portugal (intitulado Os vilancicos: o vilancico galego nos séculos xvii e xviii) –cujos textos recolheria anos mais tarde José-Maria Álvarez Blázquez na sua excelente Escolma de poesia galega dos séculos obscuros– o magnífico estudo introdutório foi reeditado pela AGAL (Associaçom Galega da Língua) na sua revista Agália, núm. 11, outono 1987, pp. 351-363.

4 M. Rodrigues Lapa, «Algo de novo sobre o problema do galego», em: Grial (Vigo), núm. 75 (outubro – dezembro 1981), pág. 498.

5 Estudos galego-portugueses (1979), pág. 1.

6 Nós (Ourense), núm. 105, setembro de 1932.

7 Estudos galego-portugueses (1979), pp. 5-6. O artigo, intitulado «Castelao e a Galiza», apareceu originariamente em: Seara Nova (Lisboa), núm. 309 (1932), pp. 327-330.

8 Estudos galego-portugueses (1979), pp. 17-18. Esta entrevista publicou-se originariamente no jornal lisboeta Diário da Noite de 24 de agosto de 1932.

9 Estudos galego-portugueses (1979), pág. 20.

10 As minhas razões (1983), pág. 41.

11 Estudos galego-portugueses (1979), pp. 17-18.

12 Estudos galego-portugueses (1979), pág. 45.

13 M. Rodrigues Lapa, «Homenagem a Castelao», em: Seara Nova (Lisboa), núms. 1204-1207 (fevereiro de 1951), pp. 433-434. Este artigo foi reproduzido na revista Agália, núm. 1, primavera de 1985, pp. 65-68.

14 Ibidem, pp. 435-436.

15 As minhas razões (1983), pp. 63-64.

16 Estudos galego-portugueses (1979), pág. 20.