A cantiga de Saidnaia

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Em tempos recentes os noticiários informaram-nos do colapso da terrível ditadura de Síria. Entre as aberrações do regime abatido sobressaíam as informações sobre a cruel prisão de Saidanaia (ou Saydnaya), um imenso centro de tortura e de morte, que mais uma vez reproduz no nosso espírito o espanto pela capacidade humana de inventar instrumentos de sofrimento e de aniquilação para os seus semelhantes.

Ora, o nome de Saidnaia suscita em nós também uma lembrança positiva, de carácter literário. E é que uma das Cantigas de Santa Maria (elaboradas na nossa língua na corte do rei castelhano Afonxo X o Sábio na segunda metade do século XIII) tem como referência localizadora essa cidade síria.

A cidade de Saidnaia

Saidnaia é uma localidade de uns 20.000 habitantes nos tempos modernos, a uns 35 quilómetros ao Norte da cidade de Damasco, capital de Síria.

Desde os primeiros tempos do cristianismo floresceu ali a fé e a vida cristã, como de resto em todo o Próximo Oriente. A invasão árabe da zona, no século VI, transtornou gravemente essa situação, prolongada mais tarde pelo domínio otomano. Mas Saidnaia conseguiu ser como uma exceção: a comunidade cristã da vila perviveu com grande vitalidade até os nossos tempos, apesar da proximidade à cidade de Damasco (que em épocas foi, como é sabido, sede de um poderoso califato muçulmano que chegou a estender o seu poder até a própria Península Ibérica).

A cantiga 9 das Cantigas de Santa Maria

A cantiga mariana, número 9 da colectânea, recolhe uma historieta muito divulgada já anteriormente em textos latinos, com variantes de pormenor. Nela é cenário principal a localidade de Saidnaia (na cantiga denominada Sardonai, deformação de uma variante comum Sardenai). Podemos resumi-la assim.

Um monge foi em peregrinagem de Constantinopla (a atual Estambul, então capital do império bizantino) a Jerusalém para visitar o Santo Sepulcro de Jesus. Na viagem albergou, em Saidnaia, num mosteiro feminino, e a abadessa do mosteiro pediu-lhe que lhe trouxesse de Jerusalém ao retorno uma imagem pintada da Virgem. Já em Jerusalém o monge esquecia o encargo; mas uma voz do céu veio lembrar-lho. Mais tarde, depois de comprar a pintura da Virgem e já no caminho de regresso, ele próprio experimentou que a imagem o protegia ante sucessivos perigos: primeiro a aparição de um leão e depois o ataque de uns ladrões. À vista de tal, o monge estava decidido a levar a imagem consigo para a sua terra; porém, sucederam diversas peripécias que lho impediram. Afinal acabou entregando a pintura à abadessa de Saidnaia que lha solicitara. A imagem da Virgem veio a tornar-se como de carne, pois ressudava dela uma espécie de ólio, e converteu-se em lugar de devoção e de peregrinação.

A tradição deste milagre localiza-o no mosteiro feminino de Nossa Senhora, onde foi conservada uma imagem da Virgem, cuja autoria se atribui (legendariamente) ao evangelista São Lucas.

Uma página de formosas miniaturas resume a historieta em seis cenas, explicadas pelas suas respetivas legendas, num curioso precedente da moderna banda desenhada. As legendas dizem assim:

[1] Como a bõa dona rogou o monge que lhi trouxesse d’ Acre ũa omage de Santa Maria.

[2] Como o monge compriu sa romaria ao sepulcro de Jerusalém.

[3] Como o monge comprou a omagem de Santa Maria que lhe rogou a bõa dona.

[4] Como o monge foi livre do leom e dos ladrões pola omage de Santa Maria.

[5] Como o monge e os da nave forom li[v]res da tormenta pola omage de Santa Maria.

[6] Como o monge deu a omagem aa bõa dona, e posero-na sobe-lo altar.