A extravagante ortografia “galega”

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Por um desses paradoxos que a linguagem comum nos oferece às vezes, o que se conhece habitualmente como “ortografia galega” tem na realidade pouco de “galega”, pois é mais castelhana que galega (e castelhana moderna, de resto, pois o sistema ortográfico castelhano anterior à Real Academia Española era bem diferente: cabeça, passar, amava, séria etc.).

Carvalho Calero

Compreende-se a razão que tinha Carvalho Calero quando escreveu, em 1989, poucos meses antes de falecer:

“Chamo ‘ortografia castelhana’ aquela que a burocracia oficial e a sua clientela dérom agora em chamar ‘ortografia vigente’, como se fosse a única em vigor. […] Que esta ortografia seja chamada galega é umha verdadeira perversom semântica”. (Agália, núm. 20, inverno 1989).

Carlos Casares

Carlos Casares nos últimos anos da sua vida manifestou-se partidário da aproximação da ortografia habitual agora na Galiza à portuguesa, nomeadamente no uso de lh e nh, e referiu-se à impressão de “extravagância” que produz nos estrangeiros a escrita galega, entre outras razões pelo abuso da letra x.

Efectivamente, tanto x resulta chocante, e alguém tem dito com humor que, com tanto x, “mais que uma língua minoritária parece uma quiniela milhonária”…

Ortografias comparadas

Mas não é só a superabundância de x o que torna extravagante a actual ortografia galega frente à escrita das línguas do nosso âmbito cultural.

A tabela que ofereço permite-nos observar alguns exemplos mais, confrontando a norma ortográfica da RAG com a das 5 ortografias que resultam mais próximas e mais conhecidas na nossa cultura: castelhana, portuguesa, francesa, italiana e inglesa. Ademais do uso de x por g ou j (xentil / gentil), seleccionei à maneira de exemplos outros 5 fenómenos gráficos: b / v (haber / haver), s / ss (pasar / passar), c / q (cuestionar / questionar), o uso de um só acento gráfico ou de vários.


x/gb/vs/ssc/qacentos
galego RAGxentilhaberpasarcuestionarum: é
castelhanogentilhaberpasarcuestionarum: é
portuguêsgentilhaverpassarquestionar3: é, à, ê
francêsgentilavoirpasserquestionner3: é, è, ê
italianogentileaverepassarequestionare2: é, è
inglêsgentlehavepassquestion0

Como se pode ver, ademais da extravagância do x, o que faz a ortografia “galega” nos outros exemplos indicados é adotar a ortografia castelhana, mesmo naqueles aspectos em que se afasta das línguas vizinhas (e até o ponto de incorporar mesmo uma “letra” estranha e desnecessária como é o ñ).

Ortografia “extravagante”, pois, no duplo sentido que podemos atribuir a extra-vagar: ‘que está fora do comum sentir’, e, pior ainda, ‘que está fora de si mesma’.

Efeitos perniciosos

De resto, é bem sabido que, para além da extravagância da ortografia “galega”, há outras objecções de peso contra uma ortografia “galega” distinta da portuguesa: especialmente o feito de a ortografia agir, em primeiro lugar, como fronteira (artificial, claro está, mas bem efectiva) para as produções escritas, e, em segundo lugar, como factor de engano para a mentalidade comum, que crê espontaneamente que mulher e muller são palavras diferentes.