No dia 28 de maio de 1987 tivo lugar a assembleia da Rede Mundial de Mulheres polos Direitos Sexuais e Reprodutivos, em que se abordarom temas relativos à morbilidade e mortalidade durante a gravidez, parto e puerpério. Desde então, todos os anos, em 28 de maio é celebrado o Dia Internacional de Ação pola Saúde da Mulher. O motivo é claro: a nossa saúde continua a estar (mui) maltratada. Haveria muito a dizer sobre isto, mas o espaço impõe os seus limites, de modo que nos centraremos em dous aspetos, do meu ponto de vista fundamentais.
Por um lado, os maus-tratos no nível assistencial (nas consultas). Carme Valls e Noemia Loio assinalam que as queixas das mulheres são consideradas psicossomáticas em 25% dos casos, antes mesmo de ser realizada qualquer exploração, ao passo que quando um homem vai à consulta com sintomas semelhantes, estes costumam ser considerados mais “sérios”. O problema não reside, contudo, neste diagnóstico, mas em que ele é estabelecido antes da exploração. Assim mesmo, a referência à psicossomática é feita habitualmente com uma ponta de desdém, se calhar porque na realidade são consideradas “histéricas”, ainda que não se utilize esse termo. Destarte, um quarto das vezes há um risco importante de sermos mal diagnosticadas, o que poderá levar eventualmente a consequências fatais. Segundo indica Guadalupe Sabio, 50% das mortes de mulheres por doenças cardiovasculares são evitáveis, salientando que, por exemplo, determinados quadros cardíacos são “confundidos” com ansiedade.
Segundo indica Guadalupe Sabio, 50% das mortes de mulheres por doenças cardiovasculares são evitáveis, salientando que, por exemplo, determinados quadros cardíacos são “confundidos” com ansiedade.
Quando as consequências não são fatais, são causados mal-estares que comprometem seriamente o bem-estar e o desenvolvimento da atividade normal: por exemplo, com a forma de a fibromialgia ser encarada (segundo Carme Valls, “diagnosticada” a mulheres em mais de 90% dos casos, mulheres que são tratadas com uma média de sete psicofármacos diários, de maneira que ficam sonolentas e a dor não desaparece) ou com a falta de atenção à sensibilidade química múltipla (que também afeta principalmente as mulheres), desde o desconhecimento do processo em muitos serviços assistenciais à ausência de medidas paliativas e preventivas.
Não são tomadas em consideração as situações de violência machista em que podem estar envolvidas as mulheres -muitas vezes quase impercetíveis, mas igualmente danosas: segundo a própria OMS, estas situações explicam muitas das patologias físicas e emocionais e até 25 por cento das tentativas de suicídio-, de jeito que não se relaciona o problema com a causa que o produz, é tratado com psicofármacos e certamente não se resolve.
Segundo a própria OMS, as situações de violência machista explicam muitas das patologias físicas e emocionais e até 25 por cento das tentativas de suicídio-, de jeito que não se relaciona o problema com a causa que o produz, é tratado com psicofármacos e certamente não se resolve.
Maus-tratos à saúde das mulheres
Tudo isto (e mais) explica porque 80% dos antidepressivos, ansiolíticos e soníferos são prescritos às mulheres, quando os problemas de saúde mental para os que estes medicamentos são indicados são menos do dobro dos sofridos polos homens.
Poderíamos apontar muitas outras formas de maus-tratos à saúde das mulheres na consulta: um diagnóstico de depressão que na realidade é um hipotiroidismo, um quadro de ansiedade quando na verdade há uma deficiência de ferro, e uma longa lista de “confusões”, desde problemas que produzem sintomas semelhantes até violência obstétrica em todas as suas expressões.
Tudo isto (e mais) explica porque 80% dos antidepressivos, ansiolíticos e soníferos são prescritos às mulheres, quando os problemas de saúde mental para os que estes medicamentos são indicados são menos do dobro dos sofridos polos homens.
O segundo aspeto que devemos ter em conta diz respeito à construção da saúde. Em primeiro lugar, porque os fatores estruturais que influenciam (negativamente) a referida construção nos afetam mais: somos mais pobres, com empregos mais precários e maior risco de os perder, com tarefas mais repetitivas, posturas no trabalho menos ergonómicas, menos oportunidades de acesso ao espaço público, social, cultural, etc. Em segundo lugar, o devandito processo de construção é influenciado por uma série de fatores simbólicos que nos limitam. Assim, a educação patriarcal (familiar, escolar, social, etc.) promove que nós, meninhas e mulheres, tenhamos dous traços caraterísticos inseridos no subconsciente.
Por um lado, devemos ser abnegadas e renunciar, portanto, à satisfação das necessidades próprias para preenchermos as necessidades alheias. Por outro lado, não podemos ser agressivas, cousa impossível porque a agressividade é um instinto. Apenas podemos reprimir a agressividade, que fica armazenada, virando-se contra nós. Em suma, sendo abnegadas não nos cuidamos e sendo autoagressivas magoamo-nos por ação. Mas ainda há mais: o facto de sermos abnegadas e/ou agressivas cara fora causa culpa, o qual nos leva a ser cada vez mais abnegadas e mais autoagressivas, como única medida de proteção contra o sofrimento que nos causa a referida culpa.
Por sua vez, a pandemia agravou muito mais os problemas de saúde da cidadania, especialmente os das mulheres, mas isto tem de ser deixado para uma outra análise, por motivos de espaço.
Em resumo, a saúde é construída (e destruída) com base em dous modelos. Considerar um só deles implica fazê-lo em masculino e assim excluir duma intervenção de qualidade a um pouco mais da metade da população: as mulheres.
[Este artigo foi publicado originariamente no Nós Diario]