A soberba, a humildade e a cultura patriarcal

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“Contra a soberba, humildade”, dizia o catecismo que tínhamos que aprender (sem o entender) quando éramos pequenas. Era uma dessas verdades que a igreja e a escola do tardofranquismo nos tatuarom lá no inconsciente. As cousas mudarom pouco desde aquela altura. A igreja tem menos influência direta, mas a maior parte das suas chaves são já construções culturais, que se entranham em nós independentemente das nossas crenças subjetivas, de modo que é importante decodificá-las para poder resolvê-las. Demorei anos para entender o significado deste tipo de máximas, e muitos mais para compreender o pecado laico. Ainda recentemente consegui identificar as armadilhas patriarcais que subjazem a este binómio pecado-virtude.

A soberba é a crença na superioridade do Ego. É o primeiro dos sete pecados capitais (um dos mais graves, aliás), que a igreja coloca nos alicerces da casa de Lúcifer, quem o cometeu por ter querido igualar-se a Deus. Implica altivez, arrogância, vaidade, autogabança e, sobretudo, desprezo polas outras pessoas. Caracteriza o poder que se detém a partir da “superioridade” de género, de classe, de raça, ou em qualquer outra relação mediada pola desigualdade. À soberba opõe-se a humildade, que é o reconhecimento das próprias limitações e fraquezas, minimizando as próprias capacidades e conquistas. A humildade inclui a modéstia, a singeleza e a submissão, ou seja, a crença na inferioridade do Ego, e é considerada uma virtude!

A soberba é a crença na superioridade do Ego. É o primeiro dos sete pecados capitais (um dos mais graves, aliás), que a igreja coloca nos alicerces da casa de Lúcifer, quem o cometeu por ter querido igualar-se a Deus.

Mas o binómio soberba-humildade não funciona da mesma maneira para todas as pessoas. Uma das armadilhas é que a soberba, em algum dos seus traços e até certa intensidade, é bem mais tolerada a quem detém o poder (de género, de classe, de etnia, etc.), enquanto a humildade que a umas se exige é diferente da que a outros se pede.

Assim, na desigualdade de classe, a humildade tem como conteúdo essencial a submissão, mas a rebeldia é legitimada e, certamente, a gente que reclama ou exige os seus direitos não é considerada soberba. Preconizava o filósofo libertário mexicano Ricardo Flores Magón (1873-1922): “Contra soberba humildade, suspira o frade; contra soberba rebelião!, berramos os homens” (os homens!), fazendo de quem se rebelar quase um herói.

Porém, patriarcado e religião exigem às mulheres humildade absoluta, onde a modéstia deve implicar autodesprezo, a singeleza deve excluir qualquer tipo de aspiração e a submissão deve ser total. E tudo isto constitui um dos principais preceitos, ao mesmo tempo legislado e avalizado pola “ciência”, que certifica a nossa inferioridade. Este sistema inçou todas as estruturas culturais, sociais, políticas e económicas, relegando-nos à esfera privada e à subordinação.

Mália as (muitas) conquistas do movimento feminista organizado, sessenta séculos de opressão não se resolvem em dous, de maneira que as mulheres continuamos a ser as mais exploradas economicamente entre as pessoas exploradas, as mais racializadas entre as racializadas e as mais oprimidas entre as oprimidas. E esta grande misoginia sistémica reproduz-se logo em idênticos termos em cada uma das relações privadas entre mulheres e homens -como dizia Kate Millett (1975), no sentido que lhe dava ao seu lema “o pessoal é político”.

E isto constitui uma outra armadilha, porque é o mecanismo perfeito para continuarmos com a nossa exigida humildade; mecanismo que não opera noutros jeitos de opressão, uma vez que não há relações afetivas entre opressor e oprimida.

Por outra parte, o sistema não confere o mesmo sentido à soberba para uns e outras. Para rotular uma mulher de soberba e de arrogante (ultimamente de feminazi) não é preciso que se gabe de si mesma, que seja altiva ou arrogante, nem muito menos que despreze as outras pessoas. Apenas é necessário que não se submeta, que abandone o autodesprezo, que reclame e exerça os seus direitos e que valorize os seus feitos -em definitivo, boa parte do que torna heróis os homens das classes oprimidas…e soberbas as mulheres, sendo rejeitadas polo seu ambiente social e afetivo e por elas próprias.

Para rotular uma mulher de soberba e de arrogante (ultimamente de feminazi) não é preciso que se gabe de si mesma, que seja altiva ou arrogante, nem muito menos que despreze as outras pessoas. Apenas é necessário que não se submeta, que abandone o autodesprezo, que reclame e exerça os seus direitos e que valorize os seus feitos -em definitivo, boa parte do que torna heróis os homens das classes oprimidas…e soberbas as mulheres, sendo rejeitadas polo seu ambiente social e afetivo e por elas próprias.

Pressão demais para nós, da que também se ressente o corpo e, obviamente, a saúde social. A pesar de estarmos num processo de reivindicação constante na macroestrutura, que ultimamente mesmo resulta benzido por certos setores, o microgrupo é outra cousa, aí resta muito mais caminho para andar.

Em suma, temos de insistir em que, para conseguirmos a igualdade entre os seres humanos, é imprescindível mudar a máxima dominante de “contra a soberba, humildade” por outra muito mais democrática: “Contra a soberba e a humildade, dignidade!”.

[Este artigo foi publicado originariamente no Nós Diario]