Pecado laico (e patriarcal) e culpa

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Alex Rozados

Quase sempre que é utilizada a palavra pecado fora do seu significado religioso é sobre uma ação incorreta ou desacertada, mas com nuances leves e não vinculadas com a culpa. Isto deixaria fora da equação todas as pessoas agnósticas e evidentemente ateias que não assumimos os preceitos da igreja e, já que logo, que os transgredir seja um pecado. Provavelmente seria assim se não for porque a religião católica, antes cristã, antes hebraica e sempre monoteísta, configurou um sistema de valores que secularmente impôs baixo promessas de glória eterna, baixo ameaças de condenação eterna, ou mesmo pela força bruta. Estes valores inçaram a cultura, que influi em todas e cada uma das pessoas que pertencemos a ela.

Concordando com as achegas do Carl Jung, há um inconsciente coletivo cujos contidos estão organizados em arquétipos. Um arquétipo é um modelo (por exemplo, o arquétipo mulher) que reúne todos os traços que devemos ter as mulheres para sermos consideradas boas e, em consequência, aceitadas (e aceitáveis). Este conjunto de traços (valores) são transmitidos de geração em geração através da família e do resto de grupos de socialização, influindo na construção do inconsciente individual, onde há um “compartimento” (o Superego), no que ficam as normas morais (proibições) e o Ideal de Ego (modelo ao que nos assemelhar).

Ambos sancionam as nossas ações, os nossos pensamentos, os nossos sentimentos e mesmo as omissões. Todo isto é independente de crermos ou não num deus e no aparato religioso derivado do seu culto. Em consequência, transgredir as normas culturais reúne todos os requisitos do pecado… laico, mas pecado, e este provoca culpa (também laica), que à sua vez induz umas cotas de mal-estar tão importantes, que a sua antecipação coíbe moitas vezes a nossa conduta, mas não os pensamentos e muito menos os sentimentos, pelo que está presente com muita frequência.

A intensidade, a frequência e a estrutura da culpa, assim como os mecanismos de defensa para nos proteger dela, configuram dois padrões que compre diferenciar.

Abnegação e agressividade

A intensidade, a frequência e a estrutura da culpa, assim como os mecanismos de defensa para nos proteger dela, configuram dois padrões que compre diferenciar. Sem dúvida, o modelo que inclui maior intensidade e frequência, estrutura mais complexa e mecanismos de defensa mais intrapunitivos (autolesivos), é o das mulheres, provavelmente em relação com a existência de mais normas no Superego e maiores (e difíceis) expectativas depositadas sobre nós. De todas elas, as mais prejudiciais contra a nossa saúde são a renúncia aos próprios desejos e ao nosso bem-estar, em benefício do bem-estar “do outro” (abnegação) e a contenção da agressividade, que acaba por tornar contra nós, fazendo-nos dano ativo (e inconsciente).

Já que logo, a culpa é um instrumento ao serviço do sistema patriarcal para nos manter “no nosso sítio” e assim impedir sermos quem de decidir sobre a nossa vida, porque isto nos conduziria a atingirmos a igualdade real e poria em sério perigo a subsistência do patriarcado.

Já que logo, a culpa é um instrumento ao serviço do sistema patriarcal para nos manter “no nosso sítio” e assim impedir sermos quem de decidir sobre a nossa vida, porque isto nos conduziria a atingirmos a igualdade real e poria em sério perigo a subsistência do patriarcado.

Angústia e remorso

Outro dos inconvenientes da culpa é que muitas vezes não é presentada como tal (não a pensamos como tal). De facto, a sua forma mais convencional, que inclui remorso e/ou arrependimento, e uma grande dose de angústia, não é necessariamente a mais frequente. No trabalho com mulheres encontramos muitas vezes expressões da culpa sem a presença de arrependimento ou remorso (que a permitiriam identificar como tal). Estes são substituídos pela antecipação dum “castigo” (pensamentos intrusos sobre algo mau que vai suceder), sempre com uma grande dose de angústia.

Noutras ocasiões somente se presenta a angústia. Outras se presenta em forma de vergonha, que inclui sempre o medo a sermos descobertas (e rejeitadas) polas demais; por último, e não menos importante, podemos senti-la como amargura; neste caso, a culpa estaria representada pela negação do desejo de nos sentir bem e pela conseguinte omissão de habilitarmos os médios necessários para o lograr; a tristeza, a frustração e a raiva acabariam por configurar a estrutura desta emoção, devastadora para o estado de ânimo e para a saúde.

Em resumo, nas mulheres, o pecado laico e a culpa são tão grandes que poderíamos dizer que resulta quase conatural ao facto de o sermos. Resume-o mui bem a máxima do Clemente de Alexandria (150-215 d.C.): “todas as mulheres deveriam morrer de vergonha perante a ideia de nascer como tal”.
Por todo isto, acho que vale a pena reflexionarmos sobre a culpa patriarcal e o pecado, para a identificar e, nomeadamente, nos apoiar entre nós para a diminuir.