Ouro e alcatrám

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Em 1925, da mao de Carré Alvarellos e Ánxel Casal, Vicente Risco dava a lume na editorial ‘Lar’ o seu relato ‘A trabe de ouro e a trabe de alquitrán’. O ourensano adaptava para a literatura culta umha das muitas versons das mouras guardadoras de tesouros. Os velhos nacionalistas resgatavam na altura o enorme património oral popular, enquadrando-o num relato céltico da Galiza, carregado obviamente de intençons políticas.

No conto, os amigos Bastiám e Gorinho atrevem-se a umha incursom no Couto de Lourido, estimulados polo rumor de que umha criatura fantástica custódia riquezas subterráneas. O tesouro -umha trave de ouro- está ao alcanço da mao, mas com umha condiçom: nom sucumbir ao engádego dum pente (de ouro também) que a moura vai deixar cair no chao como reclamo; Bastiám e Gorinho decidem levar entom, aconselhados polos velhos, um pente de corno, para lhe oferecer à moça quando esta deite a sua alfaia ao chao. Se a moura amanha os cabelos com este pente humilde, fica aberto o caminho para umha riqueza inesgotável.

Risco conta-nos, porém, o que já intuimos de antemao: se bem um dos amigos é recto, o outro nom pode evitar sucumbir à sua fraqueza: quando a moura o deixa cair, Gorinho vê-se tentado a olhar ‘o ouro entre as carpaças, brilhando como um sol, trabalhado como o pé dum cáliz’. Feble, mas também inseguro e insincero, Gorinho guarda o pente de ouro secretamente no bolso, e adentra-se na cova de mao da moura sem dizer palavra. Ainda que o amigo Bastiám tem acesso ao caminho franco que conduz à trave de ouro, a inconsciência de Gorinho conduz à trave de alcatrám. Nom é só que o moço desapareça de vez, tragado pola terra, senom que de súpeto ‘foi como umha labarada prendera em todo, sem deixar respiro, como se fora cousa de outro mundo. Em dez léguas nom se parava com o cheiro do chamusco’. De maneira que, conclui Risco, ‘agora já nom há tesouro no Couto de Lourido. Ardeu todo ao se acender a trave de alcatrám’. Nem o velho galeguista nem aquelas galegas de antano conhecêrom os mega-incêndios da mudança climática, mas imaginárom com muito realismo a desfeita de todo como umha trevoada de lumes e borralha.

As geraçons que já tivemos a fortuna de ser escolarizadas (ainda parcialmente) na nossa língua, e de estudar os clássicos nas aulas de literatura, temos familiaridade com relatos como este, e poida que em todo galego e galega de mediana idade para abaixo exista umha certa relaçom de carinho com as lendas de nosso. E porém, a um dá-lhe a impressom que passamos sobre elas de pontas em pés, como se fossem um passatempo singelo e ingénuo para os anos infantis, ou um ritual de sociedades mui antigas e elementais que recordamos com comiseraçom. Que nos podem dizer estes contos a nós, habitantes da sociedade tecnológica, que prepara a viagem a Marte e vive angustiada a ritmo de tweets e mensagens instantáneas? E de maneira ainda mais concreta: que nos transmitem estes contos a nós, militantes galegos, embarcados em processos mui complexos de confronto político, enfrascados em debates teóricos perenes, formulados no mais sofisticado da prosa sociológica e ilustrada? Contra a primeira impressom, podem-nos dizer bem mais do que pensamos.

As geraçons que já tivemos a fortuna de ser escolarizadas (ainda parcialmente) na nossa língua, e de estudar os clássicos nas aulas de literatura, temos familiaridade com relatos como este, e poida que em todo galego e galega de mediana idade para abaixo exista umha certa relaçom de carinho com as lendas de nosso.

A sociedade tradicional galega, atenaçada pola miséria e a escasseza, tivo os seus próprios sonhos, e elaborou-nos em relatos. Neles, um futuro habitável e ilusionante foi representado polo ouro, o contraponto rechamante a um mundo sem luz eléctrica, inçado de pedras toscas, madeira, lama e chuva; nós, que por agora nom habitamos tal precariedade material, temos porém a nossa própria ideia de ‘ouro’, que certa tradiçom política chamou ‘utopia’ e outra, mais modestamente, prefere chamar ‘justiça’. Como recordava Primo Levi, o ser humano vive forçosamente orientado ao porvir, e essa atadura ao futuro, se é negra e ansiosa, chama-se medo; mas se é luminosa, chama-se esperança. Dado que habitar permanentemente no medo é garantia de morte, as sociedades, ainda no pior dos panoramas, escolhem a esperança, e representam-na em símbolos mui poderosos.

A trave de ouro da nossa tradiçom nom está longe, e conserva-se, de feito, mui perto das nossas moradas. Subterránea e portanto oculta, precisam-se certas doses de curiosidade e afouteça para i-la procurar (a esperança sempre vai acompanhada de risco e incerteza). Mas achegar-se a ela nom supom, de por si, alcançar o objectivo.

A trave de ouro da nossa tradiçom nom está longe, e conserva-se, de feito, mui perto das nossas moradas. Subterránea e portanto oculta, precisam-se certas doses de curiosidade e afouteça para i-la procurar (a esperança sempre vai acompanhada de risco e incerteza). Mas achegar-se a ela nom supom, de por si, alcançar o objectivo.

Primeiro, porque este nom é fácil de discernir. Forem de ouro ou alcatrám, ambas as peças som traves, essas estruturas que servem para soster e abrir um espaço, e garantem protecçom; a ambas somos reclamados com promessas de tempos melhores; e a diferença entre perder-se ou salvar-se é subtil, tam subtil como apanhar umha ou outra bifurcaçom da cova onde se conservam os tesouros.

Segundo, porque a procura vai pôr a prova a nossa debilidade: como em tantas lendas de distintas culturas ao longo do planeta, a nossa adverte-nos de reprimir-nos e nom mirar, nom tocar, nom cobiçar, nom desobedecer, porque as consequências vam ser terríveis.

E apesar de todo, miramos, tocamos, cobiçamos e desobedecemos, até nos desobedecemos a nós mesmos; fazemo-lo sabendo que ‘vai arder todo ao se acender a trave de alcatrám’. Os nossos contos dam umha liçom mui profunda sobre a necessidade de autocontençom e sobre a capacidade essencial de discernir os brilhos deslumbrantes da apariência do bem verdadeiro e da esperança verdadeira, que por vezes som tam toscos como um pobre pente de corno.

Os nossos contos dam umha liçom mui profunda sobre a necessidade de autocontençom e sobre a capacidade essencial de discernir os brilhos deslumbrantes da apariência do bem verdadeiro e da esperança verdadeira, que por vezes som tam toscos como um pobre pente de corno.

Hoje, como em 1925, em muitas dimensons da nossa vida, somos atrazidos para os caminhos doados, em imperceptível costa abaixo, da irresponsabilidade, o individualismo, a falta de discernimento e a febleza. Temos razom, e sobram-nos razons, para saber onde estám os perigos e onde se venta a catástrofe para a nossa Terra e o planeta que habitamos. Mas a razom nom abonda –nunca abondou– e o conhecimento livresco tampouco. Por isso as pessoas e os movimentos populares devêssemos recuperar umha palavra em desuso, quase anacrónica: sabedoria. Procede da experiência e tece-se, mais que nas bibliotecas, no trabalho, na luita, no gozo e na dor, no debate e na conversa. Sem ela nunca distinguiremos o ouro do alcatrám.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]