O medo de P

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Suponhamos que esta pessoa, um homem convencional na sua média idade, tem por nome P. Suponhamos também que, sem grandes sobressaltos nem dramas na sua vida, um dia descobre que apareceu um bulto no seu corpo. Ao primeiro nom lhe empresta demasiada atençom mas, com a passagem do tempo, descobre que medra, dando ao seu aspecto certa deformidade.

P. nom vai ao médico, apesar dos conselhos de alguns amigos e familiares. Despreocupado, razoa que, se bem é certo que existem tumores malignos, ‘nenhuma estatística certifica’ que todos eles o sejam; a possibilidade nom é grande, e portanto nom se vai angustiar; acrescenta aliás que, ainda tratando-se dumha patologia, ‘ele ainda pode fazer vida normal, e nada o perturba para continuar com o seu trabalho e o lazer.’

Ante a insistência do seu círculo, que teima em que visite o sistema público de saúde, P. (com conviçons políticas) tem objecçons: há longas listas de aguarda, a falta de pessoal leva por vezes a um tratamento desleixado com as pacientes; e ademais disso, trata-se dum sistema híper-medicalizado, onde se privilegia a farmacologia por cima dumha abordagem global da saúde. Nom, esse sistema sanitário, mesmo no caso de afrontar umha doença, pouco vai solucionar! P. Nom vai acodir ao SERGAS.

E a privada? Sugire umha amiga. Por favor! P. é um homem de esquerdas, sempre tentou ser coerente. Nom é justo que o direito à saúde for apenas para aquelas pessoas com um certo nível de renda. E ainda que ele pode pagar um médico privado, nom, nom o fará.

Como julgaria o sentido comum umha pessoa como P? Possivelmente coincida em assinalar que é um inconsciente e um toleirám; umha observaçom mais fina diria ainda que quiçá estiver paralisado polo medo a umha possível diagnose funesta, e que portanto esta aparente despreocupaçom é a mostra da típica estratégia evitativa. Se a este quadro ainda somamos mais dados, como que P tem crianças, entom ainda diremos que P é um perigoso irresponsável, pois a sua saúde é também o futuro da sua prole.

Que diríamos se P fosse nom umha pessoa, senom um grande colectivo, e o seu bulto fosse nom umha doença individual, senom um sério sinal de aviso dumha terrível crise? Sem vacilaçons, diríamos que esse colectivo tem um grave problema de madurez, responsabilidade, e possivelmente de medo nom enfrentado; e que a cativeza do seu ánimo multiplica por cem a intensidade do problema.

P é, em realidade, a maior parte da esquerda que conhecemos (a occidental) ante a crise ecológica e civilizacional que está a petar na porta das nossas moradas. Se a extrema direita e os seus think tanks, trumpistas ou bolsonaristas, gastou dinheiro por décadas para negar que existisse qualquer ‘bulto’, a esquerda escolheu o silêncio e a evasiva. ‘Nom está garantido que for tam grave’; ‘um sistema como este nom tem soluçons ao problema, portanto abordaremo-lo ao tomarmos o poder’; ‘todo o que eu fixer, como indivíduo, é intranscendente no seio destas grandes estruturas.’

Se a extrema direita e os seus think tanks, trumpistas ou bolsonaristas, gastou dinheiro por décadas para negar que existisse qualquer ‘bulto’, a esquerda escolheu o silêncio e a evasiva. ‘Nom está garantido que for tam grave’.

Na nossa Terra e nas nossas melhores tradiçons organizativas, os gestos individuais fôrom julgados sempre como um modelo de excelência moral que, aliás, tinha potencial transformador: valoramos sempre enormemente a pessoa que passava a falar galego no seu dia a dia apesar de que, obviamente, umha pinga de normalidade nom muda por si só um océano de diglossia e auto-ódio; aplaudimos com sinceridade quem envia cada mês umhas letras de ánimo à presa, apesar de que umha carta manuscrita num papel de quadros nom rebaixa nem um mês de catorze anos de condena; somos estritos à hora de vigilar que os homens nom incorramos em trato vexatório ou paternalista com as mulheres, apesar de que as formas dumha conversa pessoal nom vam derrubar milheiros de anos de patriarcado.

O valor da acçom individual esmorece, entre nós, quando o sentido comum nos exige reformular a nossa relaçom com a Terra, e a nossa forma de vida nela. Puros parches! Dim-nos os centos ou milhares de P, que aguardam o dia da verdadeira soluçom.

Há poderosas razons para este desleixo. No nosso pobre pensamento binário, custa-nos assumir que, ainda como classe trabalhadora espezinhada, somos a um tempo yonkis do consumo, atados a relaçons aditivas em relaçom de amor-ódio com mercadorias venenosas. Culpabilizar o grande narco do capitalismo é doado; mas examinar-nos a nós mesmos como compradores das suas drogas nom é um exercício tam gratificante. A adiçom inclui, além dumha dependência a comportamentos e objectos, a elaboraçom de autênticas mentiras autojustificativas: ‘quando queira deixo-o’; ‘nom me condiciona tanto’; ‘no futuro já mudarei’.

Mas por cima de todo, o problema de P. aponta à questom essencial que abate todas as fantasias do mundo da opulência: a morte. Confinada ao tabu na experiência individual, como vamos ser capazes de pensá-la na sua dimensom colectiva? Mas a sua sombra é alongada e, se escuitarmos a ciência, a sua possibilidade cercana. Neste verao, e enquanto se escreve este artigo, as lapas comêrom aldeias e ainda estám perto da Devesa da Rogueira após registarem-se os lumes mais virulentos dos que temos memória. Nom pode haver imagem mais poderosa de todo o que está em jogo: a riqueza natural, a fonte de sustento, as casas, a memória, um dos espaços simbólicos mais poderosos e queridos da naçom galega.

Diz umha velha sentença que, ou bem sujeitamos o medo, ou o medo nos sujeita: graças à linguagem, a nossa espécie pode processá-la, mas só na vida colectiva e fabricando sentidos partilhados; graças à nossas faculdades de cooperaçom súper-desenvolvidas, desdobrando o nosso poder na acçom em formas que freem o pulo destrutivo.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]