O inverno e o vigor

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Maximilien Le Roy

No verao de 1845, Henry David Thoureau abandonava a sua vida convencional em Concord, numha pequena vila do nordeste de Estados Unidos e marchava a viver à beira do lago Walden numha modesta cabana construída com as suas próprias maos. Trabalhou umha hortinha, leu, escreveu, conversou com os esporádicos lenhadores e caçadores que visitavam aquelas terras, mas sobretodo observou incansavelmente e em silêncio a natureza, e sob o seu influxo quase hipnótico, formulou umha emenda à totalidade ao mundo do industrialismo que nascia, antecipando algum dos seus resultados mais funestos. À beira do Walden, Thoureau escreveu o livro do mesmo nome, êxito editorial póstumo que sintetiza a vivência do naturalista, do buscador espiritual, e do crítico social que intui os desastres do capitalismo e do seu mito de omnipotência. Como todos os clássicos, Thoureau influenciou famílias políticas diversas, e ganhou apaixonados amigos e inimigos em todo o fraccionado campo ideológico contemporáneo.

À beira do Walden, Thoureau escreveu o livro do mesmo nome, êxito editorial póstumo que sintetiza a vivência do naturalista, do buscador espiritual, e do crítico social que intui os desastres do capitalismo e do seu mito de omnipotência.

Para alguns pensadores da esquerda, Thoureau é umha influência desaconselhável; um crítico individualista confiante na política impotente do ‘gesto individual’, inimigo da associaçom, e reticente às grandes dinámicas colectivas que transformam a realidade. Ainda com um tom menos sombrio, pareceria ser um precursor de alguns colapsistas que fogem dum mundo invivível liscando a aldeias remotas, com o único arsenal da conviçom profunda e os mais rudimentais recursos de existência. Para outros, pola contra, é umha mostra excelsa da consciência livre que nom se ajoelha ante a pressom abafante do grupo, e é quem de manter a integridade dos princípios a custa da prisom e do ostracismo. Com efeito, Thoureau pagou umha fugaz estáncia na cadeia por negar-se a pagar impostos que alimentavam os Estados cúmplices do escravismo; apoiou publicamente o rebelde abolicionista John Brown, morto no patíbulo, e por tal feito (equivalente ao que o poder chama hoje ‘apologia do terrorismo’) foi repudiado pola maioria dos seus contemporáneos.

Thoureau pagou umha fugaz estáncia na cadeia por negar-se a pagar impostos que alimentavam os Estados cúmplices do escravismo; apoiou publicamente o rebelde abolicionista John Brown, morto no patíbulo, e por tal feito (equivalente ao que o poder chama hoje ‘apologia do terrorismo’) foi repudiado pola maioria dos seus contemporáneos.

Nestes tempos de medo e aturdimento, o pensamento binário reforça-se, porque nos promete acougo; e também neste caso que nos ocupa, estamos tentados de aderir a um ou outro campo destes juízos sumários do esquerdismo. Mas como a reflexom tradicional galega bem sabia, é na compreensom dumha dialéctica mui subtil onde se podem topar aqueles caminhos que merecem ser transitados.

Aos mais dos galegos e galegas, particularmente as independentistas, filhas dumha sociedade comunitária com milhares de anos de história, custa-nos enormemente entender o gesto individual do rebelde anarquista ou liberal da tradiçom anglosaxona; procedemos de instituiçons mui sólidas e antigas –a família ou a paróquia–, e a nossa missom contemporánea é de facto a tentativa de construir novas instituiçons, estas deliberativas e políticas, que alicercem umha República de nosso. E ao mesmo tempo, fazendo um esforço de sinceridade, reconhecemos que a simples adesom a umha estrutura ou movimento nom garante a enteireza nem a coerência precisas para fazermos frente a um mundo selvagem como o nosso. Há umha parte do esforço que vai ter que carregar sempre pesadamente nos ombros do indivíduo: na reflexom desvelada que se fai nas horas solitárias, nas decisons transcendentes que tomam o homem e a mulher enxergando a sua identidade e o seu destino. ‘O pensamento é aquilo que segue às dificuldades e precede a acçom’, dixera Bertolt Brecht; e o pensamento nasce na soidade e no silêncio.

‘O pensamento é aquilo que segue às dificuldades e precede a acçom’, dixera Bertolt Brecht; e o pensamento nasce na soidade e no silêncio.

É por isso –entre outras causas– que este período de crise surpreende os entornos politizados um bocado febles e adorminhados, nom muito mais fortes que o conjunto da sociedade, que vive com estupor o fim das certezas. As nossas tácticas e estratégias ocupam centos de páginas, as nossas controvérsias partidárias e grupusculares inçam textos, redes sociais e conversas; mas a reflexom sobre a essência e o nervo dos movimentos populares –o ser humano, com todos os seus potenciais e as suas fraquezas– está tam ausente que nos deixa na intempérie.

Há em Thoureau umha associaçom mui original e inteligente entre claridade e força, lucidez e vigor. Como quase ermitao laico, captou com muita agilidade como a nova sociedade das pressas, a produtividade, a máquina e a concorrência nos agrupava em massas cegas e irreflexivas com efeitos debilitantes. A névoa que cobre as consciências manifesta-se nom apenas como escurecimento, senom também como certa molice. Poderíamos dizer que, nos dous sentidos literais, no capitalismo reina a incultura: incultura como falta de conhecimento e incultura como falta de cultivo, da nossa Terra e de nós mesmos. Há no Walden, e nos Diários de Thoureau, advertências mui severas para os esquerdistas amantes do vitimismo e da queixa, pois o seu dedo nom aponta cara fora, senom ao mais fundo do nosso interior.

As reflexons som especialmente oportunas nestes anos incertos. A sobreabundáncia energética fijo-nos, nestas latitudes, perder a noçom da escuridade e a noite e (felizmente), também do frio; agora, em tempos bélicos e às portas dum curso de carestia e problemas de fornecimento, nom devêssemos estar tam longe daquele Thoureau que se armava, interna e externamente, para as duras invernias: ‘um serao frio e escuro, o sol oculto entre as nuvens, ao oeste. A paisagem, deserta, sem objectos, as árvores sem folhas, e a pouca luz no céu que puidera provocar a variedade na paisagem. (…) Rematou a seiva. Agora é o intre de curtar madeira para as juntas e para os jugos, deixando nela a dura cortiça. (…) Nom é este um tempo glorioso para os teus fogos interiores?’ Nom há já lugar para as especulaçons: ‘Quem nom está canso já das cláusulas longas e febles do político e do erudito?’ Consultemos ‘a singela descriçom dos trabalhos mensais do Almanaque dos Granxeiros para recuperar o tom’. O pensamento, a acçom, a subsistência, nom se prestam a circunlóquios: ‘o que tem que curtar e atar madeira antes de cair a noite nos dias breves do Inverno, nom dança ao trabalhar. Cada golpe estará medido e vai sonar sóbrio através da madeira, o mesmo que as suas frases’.

Concentraçom, discernimento, volta ao essencial. No nosso norte político ideal, a loucura consumista produtora de lixo e destrutora da Terra devesse dar passo a umha sociedade justa de contençom e mesura; no nosso horizonte de luita, a proliferaçom de verbosidade, cissionismo, dúzias de colectivos litigantes e efémeros, devesse dar lugar a organizaçons essenciais, lentas, constantes e de longa duraçom, com vocaçom de virarem instituiçons galegas; e na nossa dimensom interna, como pessoas que afrontam o tempo da incertidume crescente, o compromisso devesse começar por saber, em conversa com nós mesmos, que, como e quanto podemos oferecer ao nosso povo. Vigor, que vem o inverno.