Sempre gostei da metáfora que apresenta o Brasil como o grande pulmão da língua portuguesa no mundo. E, embora não seja o seu legítimo autor, a tenho empregado algumas vezes. No entanto, alguma coisa aconteceu em 2018 que provocou que o pulmão ficasse rapidamente sujo e pouco atraente. Suponho que terá relação com aquilo que me disse um brasileiro que conheci através da Internet à procura de falantes nativos com os quais exercitar o português. Quando viajava ao exterior ou contactava pontualmente com alguém no mundo virtual, habitualmente não respondia com sinceridade a temida pergunta: Where are you from? As vezes se apresentava como português, outras como argentino, mas tentava, apesar de que nem sempre o conseguia, não mencionar a sua nacionalidade brasileira caso suspeitasse que o interlocutor pudesse ser minimamente culto ou politicamente curioso.
Ainda que não tenha mencionado, por enquanto, o nome que tem provocado essa mudança na perceção do Brasil no mundo todo, quem esteja a ler não terá nenhuma dúvida ao respeito. Em efeito, tratasse de Jair Messias Bolsonaro, o ex-militar que começou a sua carreira política no ano 1988 e acedeu, trinta anos depois, à presidência da República Federativa do Brasil. No mês de outubro de 2018, o segundo turno da eleição presidencial entronizou o polémico Bolsonaro como liderança política máxima da nação brasileira depois duma efetiva campanha, muito agressiva, contra a corrupção (aproveitando o impeachment contra a presidenta Dilma Vana Rousseff, que deixou o Partido dos Trabalhadores numa situação crítica) e a alegada imposição da ideologia de género no ensino público. Foi de grande ajuda para o capitão Bolsonaro a impossibilidade de o ex-presidente Lula apresentar-se nos comícios. Luiz Inácio Lula da Silva foi feito preso e afastado da cursa eleitoral pelo juiz Sergio Moro, que alguns meses depois se incorporaria no governo bolsonarista como ministro de Justiça e Segurança Pública. Moro renunciaria como ministro em 2020, após Lula ter voltado à liberdade. Finalmente, no ano de 2021 o Supremo Tribunal Federal anulou as condenações de Lula no âmbito da denominada operação Lava Jato. O ano seguinte, em 2022, Luiz Inácio Lula da Silva fecha agora o círculo derrotando o candidato Jair Messias Bolsonaro no segundo turno dum processo eleitoral vibrante e tenso. Será que há males que vêm por bem?
Foi de grande ajuda para o capitão Bolsonaro a impossibilidade de o ex-presidente Lula apresentar-se nos comícios. Luiz Inácio Lula da Silva foi feito preso e afastado da cursa eleitoral pelo juiz Sergio Moro, que alguns meses depois se incorporaria no governo bolsonarista como ministro de Justiça e Segurança Pública.
Apesar de tudo, o fracasso de Jair Bolsonaro perante o renascido Lula não pode ocultar que o bolsonarismo constitui hoje um movimento popular ainda bem forte que tem conseguido atrofiar a direita moderada no Brasil, normalizar o discurso de extrema-direita, eleger uma forte bancada na Câmara dos Deputados e no Senado assim como governadores estaduais afins, e plantar também algumas inquietantes sementes na sociedade brasileira: a primeira, através da distribuição de armas entre a população, nomeadamente aquela afim ao seu líder; a segunda, ao conseguir uma identificação quase total entre o mundo evangélico oficial e o seu programa político. É deste segundo ponto que falarei a continuação.
Bolsonaro é um líder extremista e oportunista ao mesmo tempo, algo comprovável ao examinarmos a sua posição do ponto de vista religioso. Além disso, é um líder sem conhecimentos idiomáticos fora do português, um idioma no que tampouco tem um domínio extremamente sólido. A sua gestão na crise sanitária da Covid-19 permitiu observar as suas inclinações quase psicopatas. E na mesma direção apontam as suas declarações públicas em defesa da ditadura militar brasileira (1964-1985), a prática da tortura e lamentando que a ditadura não tivesse morto 30.000 brasileiros mais. A brutalidade do personagem consegue afastar, segundo diversas pesquisas [1], a maioria do voto vinculado as crenças religiosas de matriz africana e ao catolicismo. Porém, é no mundo protestante, que medra cada ano no Brasil como nenhuma outra religião, onde Jair Bolsonaro possui o eleitorado mais fiel, especialmente no espaço pentecostal e neopentecostal, se bem as denominações evangélicas históricas também abandonaram este ano a sua prudência habitual.
A vitória de Lula, felizmente, limpa e dignifica o nome do grande pulmão da língua portuguesa, e é uma ótima notícia para a autoestima dos brasileiros, a imagem do país no mundo e, até certo ponto, para os defensores do galego como idioma internacional e intercontinental.
Habilmente, o bolsonarismo apresenta a primeira-dama Michelle Bolsonaro como uma mulher batista absolutamente engajada com o mundo evangélico, enquanto mantém uma interessada ambiguidade em relação à filiação religiosa do seu marido, católico desde menino, mas rebatizado no rio Jordão por um pastor evangélico. Jair é católico para os católicos e pode ser lido como evangélico aos olhos dos evangélicos. No caso desses últimos, o apoio incondicional oferecido desde a Igreja Universal do Reino de Deus, dirigida por Edir Macedo, e as Assembleias de Deus, com líderes vociferantes como o mediático pastor direitista Silas Malafaia, coincide com a escolha antipetista já feita em 2018. O sonho não confessado ao cem por cento de personagens como os citados, consistente em converter o Brasil num Irão evangélico, com a esquerda fora de jogo e a Igreja católica como ator cristão secundário, onde eles possam ser os aiatolas a pairar sobre a figura presidencial, terá de aguardar.
A vitória de Lula, felizmente, limpa e dignifica o nome do grande pulmão da língua portuguesa, e é uma ótima notícia para a autoestima dos brasileiros, a imagem do país no mundo e, até certo ponto, para os defensores do galego como idioma internacional e intercontinental. Sempre será uma isca mais atrativa ser a língua falada por duzentos milhões de seres humanos no país de Lula do que no do inqualificável Bolsonaro. É ou não é?
[1] Por exemplo, Datafolha em 2021 e 2022 ou PoderData.
