Fèlix Cucurull, o nosso lusitanista

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1-felix-cucurullNo mês de maio de 2017 deixou-nos, em meio dum grande silêncio, um destacado escritor, tradutor e jornalista. Alguém que, devido à sua fascinação pela tentativa esperantista, converteu-se num lisboeta pesadamente atraído pela cultura catalã. Manuel de Seabra, português de nascença e catalão de adoção, o homem que recebeu a Creu de Sant Jordi, em 2001, das mãos do ex-presidente Jordi Pujol. O singular intelectual que, junto com a sua mulher Vimala Devi, construiu a melhor ferramenta existente para viajar da língua de Ramon Llull à de Machado de Assis e vice-versa. Foi também Manuel de Seabra quem emprestou a sua casa lisboeta para que, entre os anos 1963 e 1965, um lusófilo catalão pudesse estudar e conhecer em profundidade a cultura portuguesa graças a uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. O nome do intelectual e escritor alojado na sua vivenda era Fèlix Cucurull i Tey, do qual vou falar principalmente no presente artigo embora as figuras de Manuel de Seabra (1932-2017) e da goesa Vimala Devi (1932) também mereçam uma enorme consideração.

Filho de Fèlix Cucurull i Campalans, prefeito de Arenys de Mar (Maresme) pela Lliga Regionalista, o pequeno Fèlix nasceu em 1919 nesse município banhado pelo Mediterrâneo, o qual fica aproximadamente a 12 km da Pineda de Mar a que tão ligado esteve um grande conhecedor da questão galega: Joan Coromines i Vigneaux.

Filho de Fèlix Cucurull i Campalans, prefeito de Arenys de Mar (Maresme) pela Lliga Regionalista, o pequeno Fèlix nasceu em 1919 nesse município banhado pelo Mediterrâneo, o qual fica aproximadamente a 12 km da Pineda de Mar a que tão ligado esteve um grande conhecedor da questão galega: Joan Coromines i Vigneaux.

3-cemiterio-sinera-espriuA sua vida alicerçou-se arredor e acima das letras, o que se concretizou em produções bem diversas que incluíram o romance, a poesia, o ensaio e os textos jornalísticos. Também exerceu como tradutor. Até o momento, as suas obras foram publicadas na sua língua, a catalã, e em outros dez idiomas, à frente dos quais está o galego-português. Sendo injustos com uma obra bem plural que merece ser conhecida na sua totalidade, entre os diversos livros da sua autoria poderíamos destacar alguns dos que nos permitem aterrar na sua privilegiada visão histórica e política: Dos pobles ibèrics (1967), do qual falaremos mais adiante, Orígens i evolució del federalisme català (1970), que afunda na existência histórica dum catalanismo de caráter popular e acaba como a vergonhosa condena ao esquecimento de Josep-Narcís Roca i Farreras, Panorama del nacionalisme català (1975), obra que consta de seis volumes e realiza um imponente repasso histórico que chega até o ano marcante de 1936, e Llibertat per la democràcia (1986), que recolhe artigos de opinião publicados em jornais catalães entre 1976 e 1983. A primeira incursão em língua portuguesa cristalizou através da tradução, culminada em 1957 por parte de Manuel de Seabra, da obra L’últim combat. Seabra e a tradutora carioca Stella Leonardos converteram-se nos colaboradores necessários para levar os seus escritos ao público lusófono e aprofundar no caminho aberto pelo pioneiro Ignasi Ribera i Rovira. Seguindo esse mesmo rumo, em 1967 apareceu Dos pobles ibèrics depois que a censura franquista obrigasse a invisibilizar os nomes de Portugal e Catalunha do título [1]. Grande parte dos textos incluídos foram publicados previamente em jornais e revistas portuguesas. Trata-se, em qualquer caso, de uma obra de extraordinário interesse traduzida para o português em 1975 (Assírio & Alvim) e reeditada em 2017 (Guerra & Paz). Esta última edição, foi apresentada em Lisboa num ato que serviu para homenagear o escritor luso-catalão Manuel de Seabra.

apresentação do livro em Lisboa em 2017.
apresentação do livro em Lisboa em 2017.

A figura de Joan Maragall, as distintas nações ibéricas, as pulsões occitanas e iberistas e a sua sinceridade, o trabalho e os sonhos de Ribera i Rovira, Julio Navarro Monzó, uma caracterização da saudade fundamental para as pessoas alheias ao mundo lusófono, o paralelismo entre a enyorança catalã e a saudade galego-portuguesa, Teixeira de Pascoaes, as relações políticas, culturais e literárias luso-catalãs, o desleixo quase lusófobo de Gaziel… Estes e muitos outros pontos são abordados nessa aconselhável obra que, nas edições posteriores à original, conclui com uma descrição precisa sobre Portugal realizada após a vitória democrática de 1974 perante a ditadura.

De onde provem essa paixão por Portugal, que o levou a relacionar-se com inúmeros escritores e intelectuais portugueses e brasileiros e lhe abriu as portas da Academia das Ciências de Lisboa? A origem da história de amor encontra-se na data marcante de 1640, que significou o início de um período de lutas pela soberania que acabariam com um resultado desigual: para a Catalunha, com a vitória castelhana e a transferência para França do seu território setentrional; para Portugal, com a restauração plena da sua independência. Cucurull entendia que a vitória portuguesa provavelmente teria ficado em sério risco se a Guerra dels Segadors (1640-1652) não tivesse obrigado ao expansionismo castelhano a dividir os seus esforços. Esta é uma visão compartilhada por muitos historiadores. Sintetizou-a à perfeição o influente político espanhol Gregorio Peces-Barba, que em 2011 perguntou-se num ato público sobre “o que teria acontecido se tivéssemos ficado com os portugueses em vez de com os catalães”, acrescentando que esta solução “talvez teria sido melhor para nós” [2]. É interessante apontar que Fèlix Cucurull pronunciou em Barcelona a conferência “Castelao, Galícia i Catalunya” no marco do XXV aniversário da morte do líder galeguista. Obviamente, não tem nada de surpreendente, ao contrário, que uma ligação sincera e livre de constrangimentos com Portugal esteja acompanhada de um natural interesse pela Galiza, elemento que encontramos também em Ignasi Ribera i Rovira ou mesmo no poeta Joan Maragall, para quem na Península Ibérica “encontram-se três famílias nacionais bem definidas pela sua língua: a galaico-portuguesa, a castelhana e a catalã, que ocupa também as ilhas Baleares” [3]. Para sermos honestos, convém sublinhar que a Cucurull lhe doía que uma parte do catalanismo iberista esquecesse com grande facilidade o facto nacional basco ao refletir sobre os distintos povos ibéricos, uma queixa que também formulou em relação a Teófilo Braga.

É interessante apontar que Fèlix Cucurull pronunciou em Barcelona a conferência “Castelao, Galícia i Catalunya” no marco do XXV aniversário da morte do líder galeguista. Obviamente, não tem nada de surpreendente, ao contrário, que uma ligação sincera e livre de constrangimentos com Portugal esteja acompanhada de um natural interesse pela Galiza, elemento que encontramos também em Ignasi Ribera i Rovira ou mesmo no poeta Joan Maragall.

Cucurull, homem de compromisso, não soube viver à margem da militância política. Membro de Estat Català durante a guerra civil espanhola, participou depois na luta antifranquista do Front Nacional de Catalunya. Foi alvo de censura e detenções durante o franquismo. Na década de 1970, formou parte do PSAN, o emblemático partido considerado o pai do independentismo de esquerda moderno, e do PSC-Congrés, mas deixou-o por rejeitar a sua fusão com o PSOE. Além disso, liderou a candidatura do Bloc d’Esquerra d’Alliberament Nacional nas eleições espanholas de 1979 e foi eleito concelheiro em 1983, no seu Arenys natal, como cabeça de lista independente da candidatura do PSUC, que tinha o apoio da formação Nacionalistes d’Esquerres. Com certeza, Fèlix Cucurull não foi politicamente sectário nem seguiu à risca as posições de nenhuma organização política antes que as da sua própria consciência. Agora bem, o seu sólido e coerente compromisso nacional e político é fácil de detetar à vista do seu percurso vital.

Fèlix Cucurull não foi politicamente sectário nem seguiu à risca as posições de nenhuma organização política antes que as da sua própria consciência. Agora bem, o seu sólido e coerente compromisso nacional e político é fácil de detetar à vista do seu percurso vital.

Desde 1996, Fèlix Cucurull descansa no cemitério de Sinera, a poucos metros de outro génio ao qual deve o seu nome o campo-santo de Arenys de Mar: Salvador Espriu. De acordo com a acertada visão de Víctor Martínez-Gil [4], o iberismo de Cucurull era fundamentalmente luso-catalão, absolutamente vinculado à consecução da liberdade dos povos ibéricos. Ele foi um ilustre e talentoso filho da faixa cultural oriental peninsular que sentiu a necessidade de enxergar e compreender a faixa ocidental ibérica. Mais um exemplo que a Galiza e Portugal não merecem ser esquecidas. No fim de contas, não nos convém apagar da nossa memória a existência desses dois países, de cujas experiências podemos e devemos tirar valiosas lições.

[1] I. Albó Vidal de Llobatera, Fèlix Cucurull (1919-1996), 2009.

[2] https://www.jn.pt/mundo/autor-da-constituicao-espanhola-preferia-portugal-a-ter-ficado-com-a-catalunha-2087606.html

[3] I. Ribera i Rovira, Poesia i prosa, 1905.

[4] V. Martínez-Gil, «Del portuguès al català», L’Avenç, núm. 293, p. 31-36, 2004.