As orcas e o galego

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Este outono, como já fiz no mesmo período do ano passado, cumpri escrupulosamente o seguinte: somente consumir, por algumas semanas, textos totalmente alinhados com o Acordo Ortográfico, assim como fugir dos conteúdos audiovisuais foneticamente afastados do português mais à lisboeta até que tivesse realizado a prova de português no Instituto Camões da Universitat Autònoma de Barcelona (UAB). Tendo feito o exame, com a breve e intensa mistura de libertação e satisfação posterior à realização de qualquer prova oficial, aproveitei o fim da proibição autoimposta para ouvir a última conversa do ciclo de entrevistas “A língua em décadas”, organizado pela AGAL. Nela, a professora Carme Saborido realizou uma analogia entre a situação do galego em relação ao amplo e plural universo lusófono e uma reflexão aparecida no filme Good Will Hunting (1997): a de ter um bilhete premiado na lotaria é desaproveitar a ocasião para cobrá-lo.

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Parque aquático de Kamogawa

Ao ouvir aquilo, a minha mente viajou até o Japão. E não o fez motivada por razões de simpatia pelo atrativo país asiático senão por uma fascinação que tem a ver com uma das criaturas animais mais belas e imponentes do planeta: a orca, também conhecida como candorca ou baleia-assassina. A nação nipónica, o único estado do planeta onde a perigosa interação aquática entre os treinadores e estes cetáceos da família dos golfinhos segue sem desaparecer, alberga um espetacular parque aquático que fica na cidade de Kamogawa (fotografia). A sua principal peculiaridade é a extrema proximidade física entre o mar e a piscina que acolhe as exibições dos animais marinhos, o que gera uma falsa, porém agradável, sensação de liberdade. Tão perto e tão longe do seu habitat! Até certo ponto, como o galego, constringido por circunstâncias históricas e políticas, condicionado por marcos legais filhos dessas circunstâncias e, não obstante, ainda com possibilidades de achar um oportuno vieiro que lhe permita destruir os limites mentais impostos por fronteiras administrativas e prejuízos políticos.

Como estamos a falar de películas e orcas, alguém poderia pensar no filme Free Willy (1993) e a sua principal estrela, a orca macho Keiko. Capturado perto da Islândia em 1979 e definitivamente libertado pela pressão popular em 2002, o majestoso animal morreu em 2003 depois de não se adaptar à nova situação. Então, poderia ter um desenlace semelhante um galego vivido como uma língua que vai para além dos limites do Estado espanhol? Retornando às orcas, o pior obstáculo para voltarem com sucesso à liberdade não parece ser tanto o condicionamento negativo do cativeiro senão dois fatores às vezes menos sublinhados: primeiro, a incapacidade de localizar os seus grupos familiares originários, o que aconteceu com o Keiko; e segundo, o facto de os filhotes já nascidos em cativeiro não terem uma identidade social viável como resultado do cruzamento contranatural, por exemplo, entre exemplares residentes e nómadas que jamais procriariam nas águas livres.

A orca macho Keiko, capturado perto da Islândia em 1979 e definitivamente libertado pela pressão popular em 2002, morreu em 2003 depois de não se adaptar à nova situação. Então, poderia ter um desenlace semelhante um galego vivido como uma língua que vai para além dos limites do Estado espanhol?

gal-1Seguindo a analogia, o galego (não assim a grande maioria das línguas minorizadas do planeta) tem uma família viva, forte e localizável à que pode aproximar-se sem a necessidade de renunciar aos seus legítimos elementos distintivos. Uma família que precisa menos do galego do que este dos seus parentes. E, logicamente, chegar até a sua gente e o seu contexto precisa também de procurar e atingir acordos ou espaços de tolerância com aqueles que possuem as chaves do aquário e a bênção das leis e do poder político. Porque não é fácil conseguir convencer aos donos legais das orcas para levá-las nos santuários desenhados pelas associações animalistas. Entretanto, os parques da poderosa empresa norte-americana SeaWorld anunciaram em 2016 o fim dos programas de reprodução em cativeiro. Tratou-se, sem dúvida, duma vitória parcial histórica. Viajando de novo para o galego, surge uma questão: poderá o reintegracionismo conquistar um certo status de oficialidade através duma combinação inteligente e arriscada de colaboração institucional e confronto de ideias, tudo isso sem cair nas renúncias nem deixar de respeitar a dignidade dos sectores galegos que mantêm outros pontos de vista?

Poderá o reintegracionismo conquistar um certo status de oficialidade através duma combinação inteligente e arriscada de colaboração institucional e confronto de ideias, tudo isso sem cair nas renúncias nem deixar de respeitar a dignidade dos sectores galegos que mantêm outros pontos de vista?

Desconhecemos o que vai a acontecer no futuro. Mas há, e julgo que cada vez mais, muitas pessoas que não conseguem olhar para a orca, o grande predador dos oceanos, como um anedótico animal de circo. Como também medra piano, piano o número de galegas e galegos que não concebem o galego, definido por Castelao como um idioma extenso e útil por ser falado no Brasil e em Portugal, como uma língua reduzida a algumas províncias do território espanhol. O impactante colapso da barbatana dorsal das orcas nos parques aquáticos, como o esmorecimento do infinitivo pessoal e do futuro do conjuntivo no galego atual, são alguns sinais inequívocos da desnaturalização imposta à mais bela criatura marinha e à língua de Ernesto Guerra da Cal. Conquanto, não existe nem vai fazê-lo, é claro, o ser humano mentalmente sadio que não sinta medo perante a possibilidade de exercer a liberdade sob o risco de, como se diria em termos bíblicos, acabar por pular do pináculo do templo. E, no entanto, afinal trata-se de fazer uma escolha a favor das incertezas e oportunidades inerentes à liberdade que nasce da lucidez e da dignidade ou, caso contrário, em prol das anestesiantes e viciantes certezas que nos oferecem as gaiolas que nos têm isolados, desaproveitados e apoucados. Aos seres humanos, às orcas, às línguas e aos povos.