A primeira parte deste artigo pode ler-se aqui.
2. Calabor
2.1. Introdução
Calabor, a antiga Calapax romana, está situada nas proximidades da serra da Culebra, na região samorana da Seabra, e é atravessada polo rio do mesmo nome, localizando-se perto da raia com Portugal.
Chegar a Calabor a partir do vizinho Montesinho é o natural, pois Calabor constitui geograficamente uma extensão das terras lusas e para chegar a Santa Cruz de Abranes nas Astúrias samoranas1 o caminho torna-se orograficamente dificultoso, especialmente, nas hivernias. A Serra da Culebra é, aliás, a de maior densidade de lobos de toda a Península e, antigamente, atravessar por estes caminhos de montanha devia ser aventura medonha.
Em tempos idos Calabor conheceu um esplendor económico ligado às minas de estanho e enxofre, ao contrabando com Portugal e a uma famosa estação balnear visitada pela própria emperatriz da França, Eugénia de Montijo. Agora é uma aldeinha partilhada por anciãos, ovelhas e alguns jumentos, que não saberíamos dizer se são samorano-leoneses ou transmontanos (se é que aqui se pode falar de duas raças asininas diferentes). Na atualidade, a economia local de Calabor baseia-se na agricultura, na pecuária, nas águas minero-medicinais… e, sobretudo, como corresponde a uma povoação demograficamente envelhecida, nas pensões. A decadência económica vivida por Calabor nestas últimas décadas obrigou a emigrar muitos dos seus moradores.
Em tempos idos Calabor conheceu um esplendor económico ligado às minas de estanho e enxofre, ao contrabando com Portugal e a uma famosa estação balnear visitada pela própria emperatriz da França, Eugénia de Montijo. Agora é uma aldeinha partilhada por anciãos, ovelhas e alguns jumentos, que não saberíamos dizer se são samorano-leoneses ou transmontanos (se é que aqui se pode falar de duas raças asininas diferentes).
Calabor tem uma centena de habitantes (101, INE 2016), dos quais menos de quarenta moram permanentemente na aldeia, sendo o resto emigrantes. É uma das cinco povoações do município de Pedralba de la Pradería e a única de fala portuguesa. As outras povoações deste concelho eram originariamente de fala asturiana2, hoje viva apenas entre alguns velhos das localidades de Santa Cruz de Abranes (Santa Cruz d’Abranes em asturiano) e Riodonor (Ruidenore em asturiano e oficialmente Rihonor de Castilla)3. Aliás, nesta última povoação os seus habitantes são utentes de português ao estar dividida a aldeia entre o Reino de Espanha e a República Portuguesa. Nas restantes localidades do município, Pedralba de la Pradería e Lobeznos, na atualidade só se fala castelhano com alguns traços leonesizantes.
Visitamos Calabor junto com um alegre grupo dos seus moradores, chefeados por María Montecino. Uma mulher simpática e extrovertida, de olhar vivaz, que nunca tinha visitado a Galiza e que converteu com as suas explicações e ocorrências o passeio polas ruas de Calabor numa espontânea festa popular.
Entrevistamos também o popular José del Campo del Río e o socialista Pedro Rodríguez Chimeno, que na altura da gravação4 eram, respetivamente, presidente da Câmara Municipal e chefe da oposição, ambos calaboreses de origem e fala. Pedro Rodríguez ao ser interrogado sobre a origem do dialeto calaborês, com grande agudeza e algumas leituras, remeteu para uma geografia e uma história que confrateniza com o vizinho Portugal. Falamos ainda com o antigo Presidente da Câmara, José Chimeno, um nonagenário, por enquanto lúcido, que, fiel a Manuel Fraga, passou da Ditadura à Monarquia sem mudar nem de ideais, nem de cargo. Calabor, apesar de não ser a capital municipal, sempre deveu ter um grande peso político no concelho.
2.2. Descrição e origem da variedade linguística
Dos escassos habitantes do lugar, só os de maior idade empregam para se comunicarem uma fala portuguesa bastante castelhanizada, ainda que com uma fonética mais próxima da portuguesa do que a galega maioritária. Assim, por exemplo, há distinção entre sibilantes surdas e sonoras, tanto fricativas alveolares como palatais. Mesmo assim, para alguém de fora da localidade, o léxico, o sotaque e a prosódia desta fala tem mais relação com as falas galegas do que com as portuguesas. Sem dúvida, é a hibridação com o castelhano que dá este feitio ao calaborês. Fruto da influência da fonética castelhana há certa presença da “gheada”.
Esta fala ademais possui traços asturianos, como a perda do /d/ intervocálico5 e alguns dialetalismos vocabulares próprios6.
Embora a nível popular tenhamos encontrado a lenda de a aldeia de Calabor ter sido trocada pola localidade portuguesa da Moimenta, faltam documentos que corroborem o facto7. No entanto, sim parece existir documentação histórica que vincula Calabor ao Condado Portucalense ou ao Reino de Portugal. Em 1118 um tratado assinado entre Dona Tareija e a sua irmã Dona Urraca indica que, entre outras terras, terão formado parte do Condado Portucalense o sul das regiões da Seabra (Calabor) e das Portelas (Ermesende, Teixeira e S. Cibrão). Segundo Luís Seixas, Calabor ainda seria português em 12118, mas outras informações parecem contradizer essa opinião, pois em 1142, o conde Ponce de Cabrera pede ao rei Afonso VII da Galiza e de Leão que lhe faça mercê do “villarem desertum nomine Calabor inter Senabriam et Breganciam situm”, com a qual recompensa o seu cavaleiro Pero Ponce Rodríguez; a petição foi concedida três anos mais tarde9. Conforme a opinião de Martín Viso, pode-se deduzir deste documento que a localidade não estava sujeita nem a Bragança, nem à Seabra e daí o emprego do termo desertum, de significado, provavelmente, político e não demográfico10. Calabor era de grande importância estratégica para o controle das terras da Seabra e de Bragança, numa época em que nesta parte da Raia se deu um entrecruzamento de senhorios laicos leoneses e portugueses11.
Mas para darmos com uma explicação convincente, baste talvez com reparar no mapa:
– Por um lado, mesmo que nos dias de hoje Calabor não mantenha contacto territorial com as restantes povoações samoranas lusófonas 12, o que separa Calabor da mais próxima delas, a Teixeira, é apenas território português. A Teixeira está situada a uns escassos 10 km em linha reta de Calabor.
– Aliás, é claro que a situação geográfica de Calabor terá reforçado a sobrevivência da língua lusa nesta localidade. Portelo, a aldeia portuguesa mais próxima encontra-se a 4,1 km, enquanto a espanhola Santa Cruz de Abranes fica a 10,6 km de complexa orografia. Assim, os matrimónios mistos e as relações comerciais de todo o tipo foram mais intensas com os vizinhos do sul que com os do norte, dos quais estão isolados geograficamente. Os apelidos dos calaboreses falam em uma marcada endogamia: são poucos e alguns, como Montecino, repetem-se em quase todas as famílias. Montecino, obviando a sua castelhanização, remete para a vizinha localidade portuguesa de Montesinho, antigamente grafada Montezinho. Poderia ser este apelido consequência de uma deslocação populacional portuguesa?
2.3. Análise sociolinguística
Os calaboreses chamam à sua fala “chapurrau” ou, em todo o caso, “calaborês” e a maioria veem-na mais parecida com as falas galegas do que com as portuguesas. Ora bem, a intercompreensão com os vizinhos lusos mantém-se.
Perguntados pola sua origem referem-se de forma pouco clara a invasões antigas de portugueses, à já referida troca pola Moimenta ou mesmo a tratar-se de um castelhano antigo.
Atualmente, o calaborês só é usado como língua de comunicação habitual entre as pessoas idosas e/ou com menor nível de estudos… Um sentimento de inferioridade leva-os a mudarem de língua espontaneamente quando falam com forasteiros ou quando num grupo alguém fala em castelhano, mesmo que esta pessoa seja calaboresa e perceba perfeitamente. A sua é uma língua estritamente oral, ágrafa e carente de qualquer uso culto.
Atualmente, o calaborês só é usado como língua de comunicação habitual entre as pessoas idosas e/ou com menor nível de estudos… Um sentimento de inferioridade leva-os a mudarem de língua espontaneamente quando falam com forasteiros ou quando num grupo alguém fala em castelhano, mesmo que esta pessoa seja calaboresa e perceba perfeitamente. A sua é uma língua estritamente oral, ágrafa e carente de qualquer uso culto.
A escolarização e os média foram e são determinantes no processo de substituição linguística que se vive em Calabor, processo hoje praticamente concluído, pois já não existe transmissão da língua de pais a filhos. A Igreja e a emigração também contribuíram para o processo de castelhanização. Como é natural, para todos os calaboreses a língua teito é o castelhano, mesmo que falem a língua própria.
Esta variedade linguística não tem qualquer reconhecimento oficial ou proteção legal por parte das administrações públicas. Há que assinalar que mesmo os políticos entrevistados, falantes de calaborês, carecem, como o resto de moradores, de qualquer tipo de consciência linguística. Tampouco foram lançadas iniciativas sociais com o intuito de recuperar o dialeto e a cultura locais.
O português de Calabor não tem futuro. Não existem dados que permitam albergar esperanças e numa geração esta fala estará praticamente extinta.
(Continuará)
1 Quer dizer, ao território samorano de língua asturiana, o dialeto do latim nascido em boa parte do território do antigo Conventus Asturicensis galaico, o que tinha por capital Asturica Augusta, a atual Astorga ou Estorga.
2 É por este mesmo motivo que preferimos a denominação de fala asturiana á de fala asturo-leonesa.
3 González Ferrero Juan C. (2008) “Sobre la supervivencia actual del leonés en Zamora”, em El Filandar/ O Fiadeiro. Publicación de Cultura Tradicional, nº 18: 6.
4 Ano 2008.
5 P. ex. palavras como “peneu”, em vez de “penedo”.
6 P. ex. palavras como “eichi” (= “aqui”) ou “domíndio” (= “domingo”).
7 Existem referências vagas a uma posse leonesa na Idade Média, ainda que “das Inquirições de D. Afonso III”, de 1258, parece poder concluir-se que Moimenta terá pertencido de sempre ao Reino de Portugal” (http://moimenta.com/historia.php).
8 http://historiasdaraia.blogspot.com.es/2011/01/fronteiras-guadramilriomanzanas.html
9 Barton, Simon (1992) “Two Catalan Magnates in the Courts of the Kings of León-Castile: The Careers of Ponce de Cabrera and Ponce de Minerva Re-Examined”, Journal of Medieval History, 18, pág. 243.
10 Martín Viso, Iñaki (2002) “La formación de la frontera con Portugal y su impacto en el Occidente Zamorano (siglos XII-XIII)”, Studia Zamorensia, nº 6, pág. 16.
11 Beceiro Pita, Isabel, “Los Poderes Señoriales en los Territórios Fronterizos al Norte del Duero” (Siglos XIII-Inícios del XIV), in “IV Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval”, As Relações de Fronteira no Século de Alcanices, Actas, Porto, Universidade do Porto, 1998, vol. II, pág. 1085-1100.
12 Referimo-nos a Ermesende (oficialmente Hermisende) e outras duas aldeias do mesmo concelho, São Cibrão (oficialmente San Ciprián) e Teixeira (oficialmente La Tejera). É comummente aceite que estas três povoações pertenceram ao Reino de Portugal até a Guerra da Restauração da Independência de 1640 (http://www.hermisende.com/dialecto.htm), mas o abade de Baçal mostra num documento que já não eram portuguesas no último quartel do século XVI (http://historiasdaraia.blogspot.com.es/2011/01/fronteiras-guadramilriomanzanas.html). Assinalemos que quando Leite de Vasconcelos visita Ermesende em 1884 conclui “que a lingoagem de Hermisende é fundamentalmente portuguesa”. Leite de Vasconcellos J. (1902) “Linguagens Fronteiriças de Portugal e Hespanha”, em Revista Lusitana, vol. VII: 145.