De mestres e liçons

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Em 1945, Castelao pintou em Bos Aires o óleo ‘A derradeira liçom do mestre’, e com a sua capacidade sintética e a sua força para produzir iconas, retratou todo o horror do golpe militar na Galiza. Mas a um tempo, alimentado pola visom cristá que animava a sua existência, quijo transmitir que umha raiola de luz podia abrir-se passo no mais obscuro daquele tempo. A ideia milenária do martírio virava entom parte do alimento moral do galeguismo, e por extensom da resistência à ditadura.

Para além da qualidade pictórica, o quadro transmitia umha imagem terrível que qualquer galego ou galega, for exilada, cidadao passivo, retaliado ou condenado ao ostracismo, podia identificar sem nenhum esforço: o do indivíduo desarmado morto como umha alimanha na beira dum caminho, e que utilizara como armas, na sua biografia, o livro e a palavra.

O fascismo nom ocultara as suas intençons de atentar massivamente contra este perfil de cidadao que, quando as circunstáncias históricas o permitírom, alcançou incidência social profunda através da escolarizaçom, a alfabetizaçom e a imprensa. Respondia ao modelo ilustrado de libertaçom através do saber, que, entre todos os movimentos populares, quiçá o anarquismo encarnou com mais fidelidade, com o seu pulo sistemático pola formaçom e o ateneísmo. Já em 1909, a reacçom espanhola anunciara já as suas intençons fuzilando o pedagogo libertário Ferrer i Guardia, acusado de promover mobilizaçons contra a guerra; três décadas mais tarde, o franquismo fazia este projeto massivo com o seu plano, eufemisticamente chamado, de ‘depuraçom do magistério.’

E é que, sem recorrermos a nenhum livro de história, bem podemos recordar nomes senlheiros que canalizárom grande parte das suas arelas de melhora social, ou de ruptura revolucionária, no exercício do magistério: Maria Barbeito nos projetos de reforma pedagógica abertos ao papel protagonista da mulher; Johám Vicente Biqueira ou Otero Pedraio na galeguizaçom do ensino; Manuel Garcia Barros ‘Kenkeirades’, na dignificaçom da escola rural; José Velo, na memória da comunidade galega emigrante ou exilada; Luís Soto ou Gómez Gaioso, no fomento do ensino para a classe obreira e a edificaçom do socialismo. Quem nom falecêrom antes da guerra, houvérom de abandonar o ensino pola perseguiçom policial, o exílio, a sançom administrativa, a purga ou o ostracismo. Alguns deles –caso de Soto– cambiárom a tarima das salas de aula polos comícios políticos antifascistas; outros –caso de Gaioso– cambiárom o lápis polo fuzil e integrárom-se na guerrilha.

Em tempos menos virulentos, mas nom por isso carentes de grandes iniciativas sociais e políticas, o magistério nom perdeu o seu potencial transformador: nas décadas de 70, 80 e 90, novas geraçons de professorado introduziam o galego nos centros de ensino, desafiavam o estreito currículo oficial, e abriam ao alunado o mundo escassamente conhecido do compromisso social e político. Sem esse contributo, que qualquer militante de hoje pode testemunhar com o seu particular trajecto biográfico com moreas de anedotas e vivências, a história do nacionalismo e do independentismo recentes seria bem distinta, e provavelmente mais pobre e mais precária.

Ora bem, Castelao nom apenas retratava alegoricamente o magistério galego no seu quadro, senom que recordava o seu amigo e irmao Alexandre Bóveda. Nom fora um mestre, nem sequer um pedagogo, senom um técnico especializado em Fazenda e com um alto perfil de organizador. Por que o ‘mestre’? Para além de docente, mestre é também quem alcança perícia e máxima competência numha disciplina; mas o mestre só pode sê-lo plenamente se, no exercício do seu trabalho, partilha o saber acumulado no espaço colectivo dum labor. Eis o sentido dos mestres artesaos na tradiçom gremial.

Nas décadas de 70, 80 e 90, novas geraçons de professorado introduziam o galego nos centros de ensino, desafiavam o estreito currículo oficial, e abriam ao alunado o mundo escassamente conhecido do compromisso social e político.

Se falarmos de espaços académicos, todas e todos tivemos o privilégio dum docente que nos marcou especialmente e assinalou caminhos da vida; se falarmos de espaços políticos, militantes, todas e todos tivemos mestres ou mestras, independentemente da sua qualificaçom académica ou do exercício profissional com que ganhassem a vida. Numha combinaçom mui valiosa entre experiência e capacidade pedagógica, de exigência e de paciência, de respeito pola tradiçom passada e compreensom das novas realidades do presente, actuárom como canais dum saber fazer que se lega cuidadosamente em mais dum século de movimento galego organizado.

Castelao nom apenas retratava alegoricamente o magistério galego no seu quadro, senom que recordava o seu amigo e irmao Alexandre Bóveda. Nom fora um mestre, nem sequer um pedagogo, senom um técnico especializado em Fazenda e com um alto perfil de organizador. Por que o ‘mestre’?

A revoluçom tecnológica pom nas nossas maos um leque de recursos formativos (incluídos os políticos), que nom sonharíamos décadas atrás, cobrindo muitos ocos da nossa ignorácia; e porém, tem diminuído aceleradamente os espaços do contacto humano. Nom apenas os rituais da política formal, com os seus ciclos de assembleias, organizaçons e protesto, senom os domínios da sociabilidade informal, onde germolava a relaçom entre distintas geraçons, e o saber se ia transmitindo de forma imperceptível. A crise da política –como em geral a crise da academia, e de todos os espaços de sociabilidade densa e perdurável– agrava-se polo predomínio dos espaços fugazes e intermitentes dos debates sem corpos, os compromissos sem experiências, e das ideias sem ideários. O saber bem pode (e por vezes deve) ser virtual, intelectual e impessoal; mas o conhecimento só é tal se parte dumha experiência com todo o corpo, construída nos desafios do convívio, e colectivamente partilhada.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]