Boris se llamaba Lola

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Se fueron los buenos tiempos
la juventud ya se escapó.
Papá ha muerto arruinado
el dinero se esfumó.

Los Suaves. Dolores se llamaba Lola

Eu, sem ser grande fã do Boris, gosto do seu caráter provocador. Gosto de como se mofava subtilmente nas suas obras desses mesmos existencialistas com os que depois iria tomar-lhe um vinho a ritmo de jazz nas caves de Saint-Germain-des-Prés.

arrache_coeurO Boris era um tipo ocorrente. Não um grande escritor, mas um tipo ocorrente. Tinha apenas nove anos quanto a Grande Depressão do 29 deixou bastante tocada a fortuna familiar. Nunca levou bem o ter que prescindir do seu chofer pessoal nem o de arrendar aos Menuhin a grande mansão familiar para ir morar eles na casinha do jardineiro. A sua saúde começou a se degradar progressivamente e o sobreprotegido pequeno foi virando um ser escuro e amargurado. Estudou engenharia mas aginha se precatou de que o frio trabalho de escritório nem saciava o seu ego nem satisfazia a sua vaidade. Assim que decidiu ser escritor.

L’Écume des Jours, o seu romance mais pop e hoje muito na moda entre a geração twilight, a da crise de 2008, reflete de maneira muito gráfica essa degradação vital, essa ruína do corpo e do espaço da que falávamos acima. Também tem muito de autobiográfica a sua obra mais galega, a que hoje nos ocupa, o romance derradeiro L’Arrache-cœur (1953).

Ser, é um delirante tratado sobre o sentimento de culpa. Sem saber-se como, o psiquiatra Jacquemort aterra num vilarejo da França profunda com o ambicioso objetivo de levar a termo a psicanálise total dum indivíduo. Mas o vilarejo em questão foi muito mal escolhido. Os paisanos que nele habitam estão desprovidos de qualquer sentimento de culpa. Deitam os seus pecados e as suas misérias ao rio onde são apanhados com a boca por um curioso, e muito bem pago, personagem que mora corrente abaixo, La Gloire. La Gloire, que acumula em si próprio todo o sentimento de culpa da aldeia, será, de facto, o único indivíduo psicanalisável do lugar, para além do gato e da enloquecida Clémentine. Burguesa esta em cuja casa o nosso psiquiatra mora, e em quem o misógino Vian projeta características da sua própria mãe, mas que não resultará abordável por causa duma profunda misandria puérpera.

Tudo isto está muito bem, mas, se calhar o paciente leitor estará a se perguntar que tem esta obra de galega. Pois a galeguice acha-se precisamente nesses paisanos não psicanalisáveis do vilarejo. Sim, pois o utilitarismo radical imposto pela vida labrega vê-se nesta aldeia imaginária exacerbado pela carência de culpa, o que faz com que estes homens e mulheres se comportem com o que Jacquemort achará ser uma crueldade atroz. Porém, a estampa não resultará tão chocante para quem conheça o rural galego de há não muitas décadas e compreenda que esse espartano utilitarismo e essa, nos olhos do pequeno-burguês urbanita, crueldade, são as roupagens com que a sobrevivência se veste nas condições mais difíceis. Desde o seu altar intelectual, Vian-Jacquemort não entende que esses paisanos são como têm de ser e, se não fossem assim, simplesmente, não seriam. Estariam extintos.

O contra-ponto cómico do utilitarismo paisano põe-o a frivolidade do crego do lugar. O crego tem o poder, real, resultante da sua relação privilegiada com a divindade, de fazer chover. Milagre que é demandada com insistência após cada missa pela comunidade agrícola. Porém, o sacerdote tem autêntico nojo do utilitarismo. Para ele, Deus representa tudo aquilo que é supérfluo. É a espiritualidade, são as alfaias e as roupagens formosas, ou, por suas próprias palavras “Deus é um luxo”. Em consequência, acha absolutamente denigratório e humilhante, tanto para a divindade quanto para ele próprio seu servidor, serem constringidos a levar a cabo atos com qualquer utilidade prática.

Com a fim de driblar as iras da vizinhança, o padre vê-se na obriga de organizar tudo tipo de espetáculos lúdicos, como pode ser um combate de boxe amanhado onde ele próprio, como não podia ser doutro jeito, é o paladino de Deus, enquanto o seu sofrido sacristão faz as vezes do próprio dianho. O espetáculo pugilista de previsível desenlace entretém a audiência durante uns minutos mas, finalmente, a necessidade vital começa a virar violência nas bancadas e o crego tem de baixar as orelhas e fazer chover.

A diferença entre os galos da aldeia da Gloire e os galegos e que estes últimos são os que costumam baixar as orelhas e dizer que chove. Ainda que não chova.