Andrómenas

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Na nossa língua existe a palavra, pensamos que mui dificilmente traduzível, ‘andrómenas’. No dicionário Estraviz define-se como ‘conto mal feito ou acabado’, e também como ‘enredo, embuste com o que se quer enganar a alguém’.

KANDINSKY, Wassily_Sin título, 1922_607 (1974.50)
KANDINSKY, Wassily_Sem título, 1922_607 (1974.50)

O dicionário da Real Academia Galega diz-se que umha andrómena é ‘aquilo que se inventa ou se discorre para enganar ou despistar alguém’, e também umha ‘desculpa ou evasiva.’Em geral, na linguagem popular as andrómenas entendem-se como planos fantasiosos e ideias sem apoiatura, por vezes formuladas com intençons avessas, por vezes produto do infantilismo e da falta de siso.

Os pobres pensam pouco em utopias -nom sendo em sonhos – porque sobreviver absorve muita energia; o galego, um povo opulento do primeiro mundo, mas empobrecido e insultado, fijo historicamente gala do ‘sentidinho’ do sobrevivinte, e eis o êxito do conservadorismo e do espírito funcionarial entre nosoutros. Na sua acepçom mais pragmática, a política é ‘a arte do possível’, e quando o pragmatismo degenera para se fazer puro possibilismo, falamos da política como ‘gestom eficiente do público’, quer dizer, como manexo hábil e harmonioso do que já existe. É por isso que todos os defensores do statu quo contraponhem política a ‘utopia’, ‘messianismo’, ‘ensonhaçom’ e também, dito em versom coloquial a ‘andrómena’. Quando um ideário tem pouco apoio social e se enfrenta aliás a inimigos gigantescos, deixa de ser ideologia para se considerar andrómena. Andrómena eram, há mais de trescentos anos, a democracia parlamentar, a declaraçom universal de direitos humanos, o sufrágio universal, as férias pagas ou o feminismo, por nom falarmos das premoniçons tecnológicas de Leonardo da Vinci ou Jules Verne. No dia de hoje, em pleno 2022, podemos considerar o independentismo galego como umha modalidade no catálogo de andrómenas.

Andrómena eram, há mais de trescentos anos, a democracia parlamentar, a declaraçom universal de direitos humanos, o sufrágio universal, as férias pagas ou o feminismo, por nom falarmos das premoniçons tecnológicas de Leonardo da Vinci ou Jules Verne.

Repetindo um erro mui comum do género neoliberal da auto-ajuda, a esquerda revolucionária apostou muitas vezes em embelecer a aspereza da sua aposta com a ideia de que todo está, se quigermos, ao alcanço da nossa mao. ‘Faga-se próspero com umha estrita planificaçom do seu tempo’, diz um conhecido coach da internet; outros animam-nos em chaves semelhantes: ‘a felicidade é questom de atitude’; o estoicismo, que agora renasce para nos preparar ante o que se avizinha, diz-nos nas redes ‘tu e só tu és o dono dos teus pensamentos, e decides se queres sofrer’. Se passarmos do género da salvaçom pessoal ao da salvaçom colectiva, comprovaremos como muitas vezes temos envolvido a nossa proposta com os envoltórios sedutores do ‘todo é possível’. ‘A revoluçom é inevitável’, dizia-se numha legenda de há nom tantas décadas; e ainda que os últimos tempos atemperárom aquele optimismo, continua vigente a ideia de que organizaçom, atitude e linha correcta levariam ao sucesso polo si ou polo nom. Assim como muitas vezes os planos irrealistas da autoajuda deixam trás de si um ronsel de decepçons e abandonos pessoais, assim também as promessas revolucionárias sem cálculo e noçom dos cenários engrossárom a lista inacabável dos frustrados.

Para inverter os termos da ingenuidade, nom é má ideia começar as cousas polo extremo contrário, o do realismo mais cru. A nossa modesta utopia chama-se República galega, e, segundo os cálculos mais optimistas, mereceria a simpatia dum 20% da populaçom; ainda, parte dessa percentagem guarda o seu ideário em certa clandestinidade vergonzante, e oculta programa, simbologia e querências em ambientes hostis; outra parte importante desse sector social, atrapada por umha autolimitaçom crónica no galeguismo, reclui o arredismo na recriaçom da cultura e das letras, alheia a qualquer organizaçom político-social e dinámica de rua; para além disso, a nossa utopia é ilegal e, como os dirigentes espanhóis reconhecem nestes dias, é legítimo submetê-la a programas de espionagem à margem de todo controlo legislativo; quando chegar o momento dumha afirmaçom galega decisiva, o Estado espanhol recorrerá sem dúvida a acçons violentas, umhas amparadas em forças policiais e militares, e outras exercidas polo numeroso lumpem ultradireitista que apoia o Reino de Espanha em todos os seus momentos de crise. Poderia-se dizer, alumando um panorama sombrio, que a nossa ideia de República se apoia numha terra milenária, compacta, fértil e habitável, e nesse sentido nom tem nada de ideia vaporosa; ainda, como é sabido a maioria das terras férteis do nosso País estám a ser acaparadas polas multinacionais energéticas e florestais, virando desertos verdes.

A nossa modesta utopia chama-se República galega, e, segundo os cálculos mais optimistas, mereceria a simpatia dum 20% da populaçom; ainda, parte dessa percentagem guarda o seu ideário em certa clandestinidade vergonzante, e oculta programa, simbologia e querências em ambientes hostis.

O panorama semelha desalentador, e parece animar-nos a abraçar um maior realismo. Mas que realismo? Se a esperança reside em confiar nas possibilidades que a chamada democracia dá aos movimentos populares, apoiando-nos em processos eleitorais, praticamente todas as vozes coincidem em que os regimes que habitamos em occidente recurtam as margens de acçom mais e mais, e que os grandes negadores de direitos estám perto de chegar ao poder executivo, paradoxalmente, através das urnas; se a ilusom está em manter umha certa igualdade social baseada num Estado providência que favoreça mais e mais o aumento do poder de consumo, a crise energética mundial, já reconhecida oficialmente, fala de contracçom sem precedentes e penúrias que só as geraçons mais velhas conhecem entre nós; e finalmente, em termos mais gerais, se se pensa que a dinámica institucional e económica das últimas décadas pode continuar na mesma num mundo no que se rachou de vez o equilíbrio climático, entom si se vive numha andrómena maiúscula com consequências terríveis.

Nom, a nossa utopia nom é doada, nem segura, nem tam sequer gloriosa (nom promete um paraíso celestial); mas é puro realismo: um pequeno refúgio, modestíssimo se o compararmos com os palácios que nos tem prometido a fantasia capitalista, e a palavrada de feirantes da política eleitoral; mas é o melhor refúgio que tem concebido o nosso movimento popular, se quigermos viver com os nossos próprios recursos, num mundo nas portas do caos climático e a carência, onde estamos literalmente em perigo.

Nom, a nossa utopia nom é doada, nem segura, nem tam sequer gloriosa (nom promete um paraíso celestial); mas é puro realismo: um pequeno refúgio, modestíssimo se o compararmos com os palácios que nos tem prometido a fantasia capitalista

Precisamos superar o dó desse modelo que morreu, no que fomos educadas desonestamente já várias geraçons, e reencontrar-nos com a Terra, com a austeridade, e com os nossos congéneres numha relaçom nom mediada pola violência, as pressas, a propaganda e a ansiedade. A pior andrómena, a loucura já caducada da felicidade consumista e todas as suas ficçons democráticas.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.org]