“Amar a verdade, praticar o bem”. Lembrança de Leiras Pulpeiro

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leiraspulpeiro-1No mundo céltico houvo um tempo que a voz dos poetas tinha enorme valor político para as comunidades submetidas. Recorda-o o estudioso Robert Graves a propósito de Gales. O rei inglês Henrique IV advertia no século XV : ‘para se evitarem muitas doenças e males que sobrevinhérom antes de agora no país de Gales por causa de muitos disipadores, versificadores, cantores ambulantes e outros vagabundos, ordena-se e manda-se que a nenhum disipador, versificador, cantor ambulante nem vagamundo se lhe permitirá de nenhum modo fazer commorthies ou assembleias da plebe.’ O objecto dos juntoiros literários era, a olhos dos anglosaxons, reunir homens em número suficiente para fazer umha insurrecçom. Graves também diferencia o juglar, escritor assalariado encarregado da distraçom e o lazer dos poderosos, do bardo -em irlandês ‘fili’- um poeta visionário que herda o saber dos velhos bardos e anuncia o porvir do povo.

Seiscentos anos depois, um dos líderes do alçamento de Páscoa era o poeta Padraic O’Pearse à frente do batalhom de rebeldes irlandeses que, ante a burla de parte do povo e do conjunto da imprensa británica, tomava a central de correios de Dublin. O seu martírio iniciou o ciclo arredista da causa irlandesa. Provavelmente O’Pearse nunca lera Pondal, mas seguia o espírito do nosso bergantinhao, também de inspiraçom bárdica : ‘com luita e duro ferro/ assi, assi é como se vence’.

Desde que nos últimos 50 anos o culturalismo galego foi umha rémora para a libertaçom nacional, e a literatura, em tantos casos, umha pobre substituiçom do ca gaombate político, é tentador cair numha condena sumária do mundo cultural. Mas enganariamos-nos se aplicamos as ideias do presente à análise histórica, porque em dúzias de casos o pulo das letras foi o complemento do pulo cívico e de grandes energias políticas. Dito de outro modo: a força das palavras, se sinceras e escritas desde as entranhas, desaguou em movimentos populares de funda dimensom.

Desde que nos últimos 50 anos o culturalismo galego foi umha rémora para a libertaçom nacional, e a literatura, em tantos casos, umha pobre substituiçom do combate político, é tentador cair numha condena sumária do mundo cultural.

Rosalia nom se salvou nem se promocionou com os seus versos, senom que se condenou à censura social como mulher e como galega. No prólogo de ‘Follas Novas’ relata com amargura a resposta que recebeu da sua atitude moral e literária. Nos mesmos tempos lamentava-se Curros -processado polo bispo de Ourense- ‘do silêncio indigno com o que me trata a imprensa galega’. Tratava-se dumha decisom política; a grande patrona cultural galego-espanhola, Pardo Bazán, advertia contra a fácil deriva nacional das nossas letras: ‘o separatismo é a forma aguda do regionalismo lírico.’ Cem anos mais tarde, o vate Celso Emílio Ferreiro confessava que abandonava a Terra pola sensaçom de abafo que tolhia a sua consciência galega: ‘sentia-me afogado numha espécie de cousa viscosa feita de incúria, menosprezo, coacçom e deslealdade de muita gente.’ Ainda está por escrever umha história do ostracismo na Galiza, e da condena silenciosa ao exílio interior ou à emigraçom de tantas e tantos compatriotas dignos e valiosos.

No momento mais esforçado da nossa literatura pugeram-se em pé os símbolos, os nomes, as memórias e os mitos da nossa afirmaçom. Entre outros contributos, sobrancea o de Manuel Leiras Pulpeiro, o poeta e médico republicano do norte da Galiza que tendemos a esquecer injustificadamente. Mindoniense, viviu de adolescente os anos do Sexénio Democrático e a efémera experiência republicana. O tramo principal da sua vida decorre na Iª Restauraçom borbónica, um regime que recorda muito ao vigente a dia de hoje. Daquele moderantismo liberal os galegos recebemos a democracia oligárquica, o desprezo e esquecimento do país, a corrupçom endémica e a guarda civil, os direitos permanentemente encolhidos, o diálogo impossível com uns poderosos empenhados na tirania. Leiras escreveu em galego apenas quatro décadas de ter desaparecido o Antigo Reino, e apenas vinte anos depois da Revoluçom de 1846. Analisava recentemente César Caramês como se recordavam os feitos de Abril em 1890, se atendermos à imprensa da época, e o próprio Otero Pedraio afirma que no momento de fundaçom das Irmandades ainda se tinha presente a insurrecçom. Portanto, e sem a menor dúvida, os escritores do Rexurdimento escrevem baixo a sombra dos ‘8000 homens que se levantaram pola independência da Galiza.’

Analisava recentemente César Caramês como se recordavam os feitos de Abril em 1890, se atendermos à imprensa da época, e o próprio Otero Pedraio afirma que no momento de fundaçom das Irmandades ainda se tinha presente a insurrecçom. Portanto, e sem a menor dúvida, os escritores do Rexurdimento escrevem baixo a sombra dos ‘8000 homens que se levantaram pola independência da Galiza.’

leiras3Graças ao seu biógrafo, Lence Santar, Leiras passou à posteridade como um grande gramático apaixonado pola língua. Os especialistas situam-no com um dos maiores conhecedores do galego popular da sua época. Bebeu da fala que escuitava diariamente. Num caderno de hule apontava centos de expressons que tomava da vizinhança da Terra de Miranda, e ao cabo da sua vida acumulou um monte de refráns e fraseologia. Nos anos universitários já escrevia em galego, idioma que nunca abandonou. Hoje sabemos mais do que nos diz Lence, e graças à recente recompilaçom de estudos publicada no centenário da sua morte (‘Manuel Leiras Pulpeiro (1854-1912). O poeta e o cidadán ao cabo dun século’) podemos conhecer polo miúdo a sua paixom política. Aproveitou a fala mindoniense e os tipos populares para apregoar a independência pessoal, a liberdade de critério contra os caciques e o anticlericalismo. A ele deve-se a recuperaçom da figura de Pardo de Cela e a estória do cerco da Frouseira, que tanta fortuna fará em poucos anos. Leiras foi umha presença marcante para Cabanilhas e os irmaos Vilar Ponte que, através do verso, do drama e da prosa política, converterám o marechal numha figura central da mitologia nacionalista.

Aproveitou a fala mindoniense e os tipos populares para apregoar a independência pessoal, a liberdade de critério contra os caciques e o anticlericalismo. A ele deve-se a recuperaçom da figura de Pardo de Cela e a estória do cerco da Frouseira, que tanta fortuna fará em poucos anos. Leiras foi umha presença marcante para Cabanilhas e os irmaos Vilar Ponte que, através do verso, do drama e da prosa política, converterám o marechal numha figura central da mitologia nacionalista.

Reimundo Noreña salienta que, inspirado em formas da tradiçom oral comarcal e apriori sem vocaçom de poeta comercial, conseguiu enorme popularidade. Isto deve-se certamente ao familiar que resultavam o seu tom e a sua linguagem para o povo. Também à incursom em certos temas tabu nas classes cultivadas da época, como um erotismo de raiz rural no que Galiza, de novo, se emparenta com outras culturas do occidente céltico. Nalguns poemas de Leiras recria-se a prática do ‘moceo de cama’, um costume que alarmava a Igreja e que a antropologia tem registado. González Reboredo diz que está documentado, além da Galiza, na Ilha de Man, Inglaterra, Gales, e também Escandinávia.

Com toda certeza, a vizinhança nom quijo arredar o escritor da pessoa, e Leiras Pulpeiro era também o médico rural que chegava a assistir pessoas desfavorecidas sem cobrar, e percorria a cabalo as serras para atender doentes nas aldeias, ou um dos doutores que leva a termo em 1906 das primeiras campanhas de vacinaçom na nossa Terra.

Livre pensamento, republicanismo e ostracismo

leiras-pulpeiroLeiras Pulpeiro aderiu intensamente ao ideal republicano. É-nos doado conceber o que supunha tal tomada de partida na Galiza da altura. Podemos estabelecer um paralelismo rigoroso entre as condiçons que afrontava a luita antimonárquica na Restauraçom e as que na actualidade afronta o independentismo. Como aponta Xosé Ramón Veiga, especialista no estudo da implantaçom do liberalismo na Galiza, amossar publicamente a bandeira republicana ‘raiou por anos no puro e simples delito.’ A Igreja tencionava também impor um cordom sanitário arredor dos dissidentes, blocando a sua relaçom social. Em artigo de imprensa, de Alonso Montero resgatou um fragmento de ‘Las dominicales del libre pensamiento’, no que se dizia: ‘no púlpito, no confessionário, na rua e em toda parte, os da sotana nom faziam nem fam mais do que desafiar com a excomunhom e com o inferno…os que se relacionarem com o senhor Leiras e os doentes que se consultarem com ele e precisarem dos seus auxílios.’ De 74 a 31, afirma o de novo o historiador Veiga, os republicanos leais atravessam umha autêntica travessia no deserto. Fam-no em muitas ocasions imbrincados na massonaria e em grupos esperantistas, e aturando a condena ao ostracismo, nomeadamente nas pequenas vilas. Leiras foi também um masom com o nome simbólico de‘Lúculo’ e constituiu um grupo pró-esperanto numha das capitais do catolicismo ultramontano da Galiza.

Podemos estabelecer um paralelismo rigoroso entre as condiçons que afrontava a luita antimonárquica na Restauraçom e as que na actualidade afronta o independentismo. Como aponta Xosé Ramón Veiga, especialista no estudo da implantaçom do liberalismo na Galiza, amossar publicamente a bandeira republicana ‘raiou por anos no puro e simples delito.’ A Igreja tencionava também impor um cordom sanitário arredor dos dissidentes, blocando a sua relaçom social.

Na altura, a Igreja funciona como umha verdadeira audiência nacional responsabilizada de impor os limites do expressável: o que se pode dizer e o que nom, os temas susceptíveis de serem abordados, e os condenados ao silêncio. Citamos o Curros enfrentado ao bispo de Ourense, mas também podemos lembrar o republicano lucense, Castro López, que lisca às Américas por perseguiçom eclesiástica; a Alfredo Vicenti, excomulgado polo arcebispo espanhol Payá i Rico; ou os redactores de ‘El Fomento’, obrigado a fechar logo de excomunhom. Mondonhedo era um distrito enfeudado, submetido ao cacicato familiar do liberal Montero Villegas (filho de Montero Ríos). Leiras e os seus desafiam este monopólio do poder fundando o Comité Republicano Federal de Vallibria e lançando o jornal ‘El Baluarte’.

Um santo laico?

O enterro civil de Leiras Pulpeiro congregou por volta de 2000 pessoas, numha mostra inequívoca de afecto popular. Apesar de que as autoridades locais impedem que a cerimónia se transforme em acto político, as resonáncias do acto som evidentes. Leiras é conduzido ao cemitério dos ‘dissidentes’, e mesmo o semanário tradicionalista ‘El Cruzado’ reconhece que o médico e poeta acordava simpatias em toda parte. Acodem a despedi-lo, segundo a imprensa da época, representantes de todas as classes sociais da Marinha, e algumha fatoria local mesmo detém a jornada laboral para os obreiros poderem assistir. Fora um homem entregado e modesto, duas virtudes que nom sempre congeniam. Renunciou à entrada na Real Academia Galega por considerar que nom o merecia, e sem embargo entregou à instituiçom umha completa colecçom de vozes e refráns recolhidos em ‘La Correspondencia Gallega.’ Só um ano antes de morrer, ao que parece por pressom dos seus amigos, aceita a publicaçom da sua poesia dispersa, que se reúne com o título ‘Cantares Gallegos’.

O enterro civil de Leiras Pulpeiro congregou por volta de 2000 pessoas, numha mostra inequívoca de afecto popular. Apesar de que as autoridades locais impedem que a cerimónia se transforme em acto político, as resonáncias do acto som evidentes. Acodem a despedi-lo, segundo a imprensa da época, representantes de todas as classes sociais da Marinha, e algumha fatoria local mesmo detém a jornada laboral para os obreiros poderem assistir.

Tempo depois, Álvaro Cunqueiro, ética e politicamente nas antípodas do doutor republicano, definia Leiras como um ‘santo laico’. O poeta fora muito amigo do seu pai, e possivelmente Cunqueiro viu naquele o exemplo de coragem cívica que a ele lhe faltou nos anos da barbárie.

Para quem teme a idealizaçom simplória das pessoas e os panteons laicos, podemos dizer que o nosso homem, como qualquer de nós, seria umha pessoa com luzes e sombras, fé e dúvidas, equívocos e firmezas. Sem ir mais longe, ao participar no Projecto de Constituiçom para o Futuro Estado Galego em 1887, redigido por Moreno Bárcia, adere às teses dos ponentes contrários ao voto feminino. Frente Aureliano Pereira, que defendia o sufrágio das mulheres, Leiras argumenta que até a República Federal tiver quatro anos de vida as mulheres nom deveriam votar, pois estavam demasiado submetidas à influência clerical. Este argumento esquerdista contra a feminizaçom da política, e particularmente contra o sufrágio universal, sobreviviu até a IIª República com grandes apoios.

Para quem teme a idealizaçom simplória das pessoas e os panteons laicos, podemos dizer que o nosso homem, como qualquer de nós, seria umha pessoa com luzes e sombras (…) Sem ir mais longe, ao participar no Projecto de Constituiçom para o Futuro Estado Galego em 1887, redigido por Moreno Bárcia, adere às teses dos ponentes contrários ao voto feminino.

Contradiçons como estas ajudam a entender também as pessoas de grande altura, a humanizá-las, e ao cabo a aproximá-las a todos nós. Nesta distáncia mais curta é onde podemos entender mais cabalmente a sua grandeza. ‘Amou a verdade e praticou o bem’, eis a sentença que ainda hoje podemos contemplar na lápida de Leiras Pulpeiro no Cemitério Velho de Mondonhedo, sufragada na década dos 20 pola emigraçom mindoniense. Umha divisa tam singela como difícil de assumir, um mandato para todos ao que mui poucas pessoas conseguem ser leais.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]