Águas Caldas

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Lilaila

Tinha as costas apoiadas contra a parede da piscina, os braços estendidos sobre a barra de aço que percorria o bordo. Sentia como as bolhas lhe subiam desde os pés até as coxas, proporcionando-lhe uma imensa sensação de prazer. Deixou a cabeça recostar brandamente e fechou os olhos para concentrar-se nos seus sentidos físicos. A touca bloqueava os seus ouvidos, os olhos fechados não deixavam que qualquer distração luminosa interrompesse os seus sentidos e tentou mesmo deixar a mente em branco para se concentrar naquela grata sensação que lhe percorria a pele.

Tinha um aceno case beatífico.

A cara redonda e gordinha aparecia um pouco inchada por efeito da pressão da touca. Nada fora do comum entre aquela grei em que se encontrava:

Mulheres na casa dos 70 anos, descontraídas e ruidosas que mostravam as gorduras ganhas em muitos anos de se esquecerem de sim próprias para cuidar dos outros : membros da família e achegados, que sempre havia alguém a precisar da atenção das mulheres da casa.

Hoje a Rosaura descansa. Descansa e pensa, enquanto o seu corpo é acariciado lenemente pelas bolhas que percorrem toda a sua pele. A água está morna, da mesma temperatura que o seu corpo.

Água calda como a que sai da poça do Alhigal, como a que havia dantes no rio Caldo. Antes que as cascalheiras da Terra Chã obstruíram o seu curso furando e furando na terra em busca daquele seixo que levavam para a ferro-atlântica.

Ainda lembra como ia lá com as suas vizinhas, lavar as tripas na auga morna, em tempos da matança.

Agora já não se pode, e , também nem há já costume.

As minas que todo o podiam: furar as terras, apagar um rio, tirar-lhe as propriedades aos vizinhos, e abusar das moças por médio de capatazes sem escrúpulos.

Mas ela hoje estava ali, ausente de todo, alheia a todo sofrimento e a qualquer preocupação .O alcaide amanhara para os velhos poderem ir tomar banho nas águas caldas por pouco dinheiro.

Queria que a água prendesse toda a sua atenção. A mente branca como uma parede de cal. Mas os neurônios são malandros e ceivam correntes que se mexem por entre as células e saltam as sinapses e formam correntes de pensamentos ocupando o branco limpo como cal da mente da Rosaura para lho pintar de verde ou de azul. Ainda de preto. Mais forte, menos forte, quase cinzento, que deixa passar alguma luz entre os fios do pensamento.

E vê-se a discutir com o Federico, que quer casar a filha mais nova com aquele indiano vindo do Brasil com muito dinheiro, que parece que a vende. Diz que é o seu melhor amigo. O melhor para ele era sempre quem tinha mais dinheiro ou mais tempo para o acompanhar na taberna, pagar-lhe um copo hoje, um neto ontem ou uma garrafa de vinho manhã .

 -Dei a minha palavra e a minha palavra é sagrada, que sempre cumpro o que prometo. E a pequena há de se casar com o meu amigo que lho prometi, e ele gosta muito dela .

Madia leva não gostar. A Marinela é bonita como uma flor. Ainda é boa estudante, que assim mo disse a mestra quando ia lá à escola, à procura da rapariga . Queria que me ajudasse para tornar as ovelhas que estavam na veiga longa. Que a Marinela é mui jeitosa para tratar do gando, melhor do que qualquer outro dos nossos filhos.

A mestra dona Olaia aconselhara-me a pedir uma bolsa de estudos para a pequena poder ir estudar a Lugo, interna num colégio que iria custar pouco, e que poderia mesmo, acabar sendo mestra como ela. Eu tenho o anelo de que a minha filha acabe estudando e saiba mais do que sei eu, que sou mui burrinha, que bem o sei . Ela pode e eu quero.

Pois não e não, que ela já está em idade de casar e nada anda a fazer por Lugo adiante. Lá há muitos moços e senhoritos que andam às moças que eu bem os vi quando lá estive no São Froilão. Como olhavam para ela com olhos de gulosos, que pouco lhes faltava para pedir ir para a cama com ela. A Marinela é demasiado bonita para ter tranquilidade, eu bem cho sei . E sempre vão andar os homens à sua volta.

Mas eu , agora, entretanto, vou deixar que as bolhas escorramm pola minha pele e já pensarei em como lhe vou contar ao meu homem onde é que está agora a nossa nena.

Sempre caladinha enquanto nos discutíamos. As vezes aos berros, outras levando eu alguma que outra labaçada.

Que pensaria a nossa Marinela de todas estas laretadas que nos tínhamos? Ela alguma cousa deveu ouvir. Seria isso o que a fez fugir da casa , da aldeia e da miséria da família.

Vai para um ano que falta .

Na carta que recolhi esta manhã na de Pacita, a tenda onde deixa o carteiro

as cartas da aldeia, explicava-mo: está em Londres.

Um senhor que conhecera em Lugo ofereceu-lhe pagar a passagem com a condição de trabalhar para ele até a dívida ficar paga. Foram ela e mais a Lucita, a sua amiga mais íntima. Bonita como ela, esperta e com muito “estilo” como a minha Marinela. Do seu trabalho não diz muito. Só que quase não sai da casa em que vivem e trabalham. Apenas pôde ir um dia deitar esta carta no correio aproveitando que ia fazer um mandado para o Homem. No sobrescrito escreveu, debaixo do remetente:

 -Um bico forte, mãe. Pude hoje sair para che enviar esta carta. Tão logo como eu puder enviarei mais novas.

NOTA: relato ganhador do primeiro Prémio do Certame Literário Terras de Chamoso 2014