I) – 1981-2021: quarenta aniversário do primeiro Parlamento Galego. Há documentos que merecem ser resgatados da desmemória. A Proposición de Lei de normalización Lingüística de Galiza, apresentada por Camilo Nogueira no Parlamento Galego na data inaugural de 21-XII-1981 é um deles, tanto polo seu carácter precursor como polo facto de ter servido de antecedente à Lei de Normalización Lingüística de 1983, que vinha a confirmar as teses do Decreto Filgueira1, ainda em vigor.
A distáncia entre ambos textos legislativos, porém, é a vai de umha proposta de planificaçom linguística integradora e ambiciosa a umha norma minimalista, acomodada ao inveterado conservadorismo provinciano que acabará tutelando quatro ingloriosas décadas de política normalizadora. Quatro décadas de ritualidade artificiosa no uso político da língua, de divórcio impune com o mundo da comunicaçom e da empresa, de colapso no mecanismo de transmissom geracional da língua.
Convidamos o leitor interessado a baixar ao seu escritório antes de mais nada o pdf da Proposiçom,que encabeça este artigo comemorativo.
II) – 1981-1985: Primeira legislatura do Parlamento Galego, polarizaçom linguística e contexto político. Doze de dezembro de 1981, o Parlamento Galego estreia a sua primeira legislatura na Sala de Honra do Palácio de Gelmírez. Nesse mesmo ano, cristalizava também o dissenso irremediável sobre a orientaçom da política normalizadora que vai enfrentar o Instituto da Língua Galega (1971), defensor de umha normalizaçom de tendência coloquial e dialectológica com a AGAL, nascida em 1981 sob a presidência de Xavier Alcalá (1981-1982), que propugnava um enfoque alternativo, ancorado na história do idioma e o seu desenvolvimento em estreito diálogo com o português. Constantino García González, fundador do ILG, protagonizará a estratégia populista e dialectal, Ricardo Carvalho Calero o enfoque histórico e evolutivo conhecido como reintegracionismo. O primeiro esgrime o Atlas Linguístico Galego (1974-1977) como opus magnum da tese dialectal e ahistórica; o segundo, o valor irrenunciável do corpus medieval galego — mais de 12.500 documentos e nove milhons de palavras redigidas entre os séculos XII e XVI — e, sobre todo, o inescusável diálogo com o português como ingrediente essencial do processo normalizador.
Constantino García González, fundador do ILG, protagonizará a estratégia populista e dialectal, Ricardo Carvalho Calero o enfoque histórico e evolutivo conhecido como reintegracionismo. O primeiro esgrime o Atlas Linguístico Galego (1974-1977) como opus magnum da tese dialectal e ahistórica; o segundo, o valor irrenunciável do corpus medieval galego — mais de 12.500 documentos e nove milhons de palavras redigidas entre os séculos XII e XVI — e, sobre todo, o inescusável diálogo com o português como ingrediente essencial do processo normalizador.
Autonomia e língua formavam um binómio inseparável na primeira legislatura galega, com a normalizaçom linguística como tarefa inescusável. As circunstáncias políticas do momento distavam porém de ser propícias. O dia 29 de janeiro de 1981 demitia Adolfo Suárez e o 23 de fevereiro assistíamos a um golpe de Estado de incerto resultado e inegáveis cumplicidades nos círculos do poder. No 30 de junho desse mesmo ano, a UCD e o PSOE — a centralidade do poder naquele momento — aprovavam no Congresso a LOAPA, umha lei arquitectada para desactivar o Título VIII da Constituiçom e hibernar o processo autonómico, depois de ambos partidos terem tentado encirrar os agravos cantonalistas contra as singularidades nacionais reconhecidas na Constituiçom.
A atmosfera tóxica do 23-F pairava sobre a Galiza. Na fatídica noite do golpe, os companheiros do partido em que eu militava na altura, Esquerda Galega, decidiram encerrar-se nas sedes dos Concelhos onde alcançáramos representaçom como mensagem de firmeza cívica ante umha cidadania inerme. Quarenta anos depois daqueles acontecimentos nom é fácil transmitir a ominosa atmosfera do momento. Circulava naqueles dias umha lista delirante de 500 cidadaos objectivo2 de depuraçom patriótica sumária caso de o golpe triunfar. A trama negra do golpismo tinha contas pendentes e agentes activos em Galiza. Recomendo a leitura da listagem como exercício útil para compreender o nível de coragem cívica requerida naqueles tempos para o exercício da actividade política.
Foi naquele cenário agoirento onde Camilo apresentava o seu Projecto de Lei, concebido para reactivar o uso incondicionado do galego depois da longuíssima invernia de quarenta anos. O deputado nom era um neófito na política e já tinha sofrido perda de trabalho e tortura policial na revolta viguesa de 1972. O partido por ele liderado, Esquerda Galega, reunia na altura umha animosa equipa de sindicalistas e profissionais empenhados em promover umha Galiza democrática, moderna e desinibida, depurada de hipóteses messiánicas e acorde com os tempos. Contamos afortunadamente com o documento descritivo daquele ambicioso empenho, o Programa de governo e reivindicativo. Agora Galicia3; quase trezentas páginas de texto que admiram ainda pola amplitude do propósito e o rigor analítico. Optimismo da vontade para dotar de contido um Estatuto confiado à direita tardo franquista.
A composiçom do primeiro Parlamento autonómico evidencia a dificuldade da tarefa. Dos 71 eleitos que configuravam o hemiciclo, 26 obedeciam o fraguismo sem desbravar, da primeira fornada, e 22 deputados mais ao cauteloso oportunismo adventício dos adscritos à UCD. Na esquerda formavam 16 deputados de um PSdeG de aluviom, colorido com um discreto suplemento galeguista aderido ao calor da oportunidade eleitoral junto com os 5 deputados do Grupo Misto, procedentes três deles do BNPG, coligado na ocasiom com o PSG, mais o deputado de Esquerda Galega e outro mais do Partido Comunista de Galícia.
O início da legislatura ia ver-se desluzido com a despossessom da sua condiçom de deputados de Bautista Álvarez (Presidente da UPG), Lois Dieguez (UPG) e Claudio López Garrido (PSG), confirmada em seguida com a sua expulsom da Cámara em 23 de novembro de 19824. O motivo invocado foi a negativa dos deputados a acatarem retroactivamente a Constituiçom de 1978 por vindicar, num prurido extemporâneo, umhas quiméricas Bases Constitucionais redigidas em 1977 como alternativa ao Estatuto de Autonomia em vigor. A voz e o voto de Camilo Nogueira alçárom-se contra a extrema sançom mas, o BNPG viu-se condenado à marginalidade extraparlamentar durante um quadriénio decisivo que acabará desembocando na sua refundaçom como BNG em 1982. Acompassar os relatos fundacionais às exigências do tempo histórico, constatamos, é um preceito inexorável da tarefa política.
O início da legislatura ia ver-se desluzido com a despossessom da sua condiçom de deputados de Bautista Álvarez (Presidente da UPG), Lois Dieguez (UPG) e Claudio López Garrido (PSG), confirmada em seguida com a sua expulsom da Cámara em 23 de novembro de 1982. O motivo invocado foi a negativa dos deputados a acatarem retroactivamente a Constituiçom de 1978 por vindicar, num prurido extemporâneo, umhas quiméricas Bases Constitucionais redigidas em 1977 como alternativa ao Estatuto de Autonomia em vigor.
III) – Da Proposiçom de Lei de 21/XII/1981 à Lei de Normalización Lingüística de 15/VI/1983. A Proposiçom de Lei de Camilo Nogueira desafiava abertamente o cauteloso regionalismo linguístico que inspirava a facçom galeguista de Realidade Galega incrustada nas filas do PSdeG; umha improvisada plataforma eleitoral capitaneada por Ramón Piñeiro, com Carlos Casares no papel de delfim e com Alfredo Conde e Benjamin Casal de tripulaçom ocasional. Piñeiro e Casares, convém sublinhá-lo, eram membros da RAG desde 1967 e 1978 respectivamente, com Domingo Garcia Sabell na presidência da instituiçom desde 1977. Realidade Galega operava de facto como ponta de lança da óptica normalizadora da RAG, completada em seguida com a incorporaçom de Constantino Garcia à RAG em 1982. A perspectiva linguística que inspirava o grupo era congruente com o populismo dialectológico e solipsista defendido por Constantino Garcia e executado polo ILG desde a sua fundaçom em 1971.
Piñeiro e Casares, convém sublinhá-lo, eram membros da RAG desde 1967 e 1978 respectivamente, com Domingo Garcia Sabell na presidência da instituiçom desde 1977. Realidade Galega operava de facto como ponta de lança da óptica normalizadora da RAG, completada em seguida com a incorporaçom de Constantino Garcia à RAG em 1982. A perspectiva linguística que inspirava o grupo era congruente com o populismo dialectológico e solipsista defendido por Constantino Garcia e executado polo ILG desde a sua fundaçom em 1971.
O contido programático da Proposiçom de Lei 21-XII-1981 ia ser submetido a um radical processo de devaluaçom na sua tramitaçom parlamentar para acabar ressurgindo como Lei de Normalización Lingüística5 3/1983, de 15 de Junho vigente até hoje. A manifesta vontade restritiva do texto resultante reflecte claramente a vontade do legislador de adaptar o texto aos limites estabelecidos na LOAPA original, antes de a lei ser revisada polo Tribunal Constitucional — Lei 12/1983, de 14 de Outubro — para derrogar os seus artigos mais lesivos a denúncia da Generalitat e do Governo Basco6. De pouco valeu a timorata cautela com que foi redigida a Lei de Normalización Lingüística de 1983; umha sentença posterior do Tribunal Constitucional — 84/1986 de 26 de Junho — obrigou a eliminar ainda a obriga de conhecer o idioma próprio, qualificaçom esta que, nom obstante, subsistiria na lei como exemplo de incongruência ou talvez de má consciência do Tribunal Constitucional. Afinal resultou que os galegos íamos ter reconhecida por lei a posse de um idioma próprio, desprovido porém da correspondente obriga de apreendê-lo. Para completar a história, é inevitável lembrar que a sentença degradante do Tribunal Constitucional fora ditada a requerimento de dom Domingo Garcia Sabell, Delegado do Governo em Galiza, Presidente da RAG e impulsor de Realidade Galega. A voz de Camilo Nogueira volveu alçar-se7 para denunciar a tropelia e exigir a imediata demissom do indecoroso mestre-de-cerimónias da agressom institucional à cultura galega.
Umha sentença do Tribunal Constitucional — 84/1986 de 26 de Junho — obrigou a eliminar ainda a obriga de conhecer o idioma próprio, qualificaçom esta que, nom obstante, subsistiria na lei como exemplo de incongruência ou talvez de má consciência do Tribunal Constitucional.
IV) – A Proposiçom de Camilo Nogueira, breve esquema introdutório. A Proposiçom abre com umha ponderada Exposiçom de Motivos concebida para enquadrar o galego no seu contexto histórico e social: o uso milenário, a pertença á poderosa linhagem galaico-luso-brasileira, o florescimento pretérito e hodierno esmorecimento dialectal, a ameaça de extinçom; arrematada com o corolário da tarefa pendente: reconduzir o idioma estagnado e estigmatizado à sua plena funcionalidade social.
Segue, logo após, um Título Limiar destinado a fundamentar as exigências que comporta o facto de o galego ser a língua própria da Galiza, e seis Títulos articulados em 38 artigos, dedicados, o primeiro, [T1] a formular os direitos linguísticos da cidadania, o segundo, [T2] a desenvolver o ámbito de uso oficial e administrativo — Capítulo 1 — e a delimitar o seu uso no ámbito público — Capítulo 2 — o terceiro, [T3], a regular o ámbito de usos no ensino, o quarto, [T4] ao uso do galego nos meios de comunicaçom social, o quinto, [T5] ao impulso institucional requerido para o objectivo normalizador e, finalmente, o sexto, [T6] dedicado a esboçar a política linguística a desenvolver nas comunidades de emigrantes.
Remata a Proposiçom com cinco Disposiçons Transitórias das quais merece especial atençom a quinta e última, dedicada especificamente ao problema da normativizaçom do idioma, na qual se defende explicitamente a necessidade de promover umha norma culta e diferenciada, digna da condiçom nacional do idioma galego e da sua condiçom de membro nato do romance peninsular ocidental projectada no complexo linguístico galaico-luso-brasileiro. Esta quinta disposiçom final recupera o princípio de receptividade social, enunciado por Carvalho Calero como cláusula cautelar necessária para acompanhar um processo normalizador rigoroso e dinâmico orientado a reconciliar o galego com a sua família de pertença e destino.
V) – Ponto e seguido. Anos depois, instalado no Grupo dos Verdes – Aliança Livre Europeia do Parlamento Europeu — 1999 a 2004 — Camilo Nogueira iria servir-se dos serviços de traduçom de português da Cámara para projectar naquele foro supranacional a irrenunciável dimensom internacional do galego teimosamente negada no país.
Anos depois, instalado no Grupo dos Verdes – Aliança Livre Europeia do Parlamento Europeu — 1999 a 2004 — Camilo Nogueira iria servir-se dos serviços de traduçom de português da Cámara para projectar naquele foro supranacional a irrenunciável dimensom internacional do galego teimosamente negada no país.
Teremos que aguardar até 2014 para ver promulgada a Lei 1/2014, do 24 de março, para o aproveitamento da língua portuguesa e vínculos com a lusofonia8, um serôdio trasacordo parlamentar dirigido a subverter o insensato modelo solipsista de um idioma sem passado nem futuro condenado à esterilidade. Deem-lhe umha vista de olhos á Lei de 2014, nada falta nela; desde a mesma Exposiçom de motivos pode ser lida como umha simples glosa à Transitória quinta do Projecto de Lei de 1981 de Camilo Nogueira abortada trinta e três anos atrás.
A esperança no futuro do idioma, veículo da nossa identidade diferenciada, reside agora nas novas geraçons, na rede digital, na firme teimosia dos falantes convictos e no associativismo cultural como baluarte consciente frente ao desleixo social. Há já tempo que as redes sociais praticam, sem passar por aduana, os vínculos com a lusofonia que a Lei 1/2014 vem confirmar. As raízes da Lei assentam, escusado recordá-lo, na Iniciativa Legislativa Popular que sob o nome de Valentim Paz Andrade, chegava à Cámara galega em 2012, avalizada por 17.000 assinaturas. Um clamor contra o desleixo institucional.
Agora, em 2021, quarenta anos passados daquele ano inaugural de 1981, a assanhada batalha polo controlo da processo normalizador parece ter deixado passo a um resignado panorama de vítimas sem vencedor. Incapaz de aprontar remédios para atalhar a aguda crise em que se debate um idioma coloquial e desvalorizado, o obstinado controlo glotopolítico da RAG-ILG persiste apenas como mecanismo auto-referencial, mero artefacto de cooptaçom de afins.
Incapaz de aprontar remédios para atalhar a aguda crise em que se debate um idioma coloquial e desvalorizado, o obstinado controlo glotopolítico da RAG-ILG persiste apenas como mecanismo auto-referencial, mero artefacto de cooptaçom de afins.
Um galego em código aberto, partilhando aulas com o português desde o ensino primário, consciente do seu glorioso passado e da sua dimensom internacional; velai a perspectiva de futuro que ninguém tem direito a estragar depois de tantos anos de autismo sistémico que a Lei 1/2014 visa agora reverter.
1 Decreto 173/1982, do 17 de novembro, sobre a Normativizaçom da Língua Galega, http://www.axl.cefan.ulaval.ca/EtatsNsouverains/galice-decret-173-1982.htm
2 https://www.nosdiario.gal/media/nosdiario/files/2016/02/22/listaxe-persoas-no-albo-dos-golpistas-do-23f.pdf
3 Agora Galicia, programa de goberno e reivindicativo, Esquerda Galega, Obradoiro de Artes Gráficas Galicia, S.A. 278 páginas. Vigo, 28 setembro 1981
8 LEI 1/2014, do 24 de março, para o aproveitamento da língua portuguesa e vínculos com a lusofonia: https://www.xunta.gal/dog/Publicados/2014/20140408/AnuncioC3B0-310314-0001_gl.html
proposicom-de-lei-21-xii-1981