A etimologia de minhoca

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Neste breve artigo, não vou propor nenhuma hipótese etimológica para a origem da palavra minhoca. Só vou tentar desbotar as hipóteses que propõem alguns filólogos portugueses e brasileiros.

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Antes de começar a ler o interessante livro de Fernando Venâncio, Assim nasceu uma língua, não sabia que a palavra minhoca era de origem desconhecida (ou “obscura”, tal e como di o dicionário Priberam). Venâncio cita o gramático brasileiro Marcos Bagno para introduzir uma das explicações mais populares entre os lusitanistas. Assim, minhoca viria de nhoka (também escrito nioka), termo do quicongo, língua banta angolenha, que significa ‘cobra, verme’. Uma explicação quase idêntica aparece no primeiro livro de Renato Mendonça, A Influência Africana no Português do Brasil, publicado em 1933. No seu vocabulário final, o autor considera que minhoca vem de mu+nhoka, termo do quimbundo, uma outra língua banta angolenha, onde o prefixo flexivo mu, que representa o plural, contém o u átono-pretônico que mudou em i. Outras fontes consideram que minhoca pode derivar do termo mi-nhogá, da língua tupi falada no Brasil, e que significa verme extraído da terra.

As coincidências são impressionantes, mas os galegos sabemos que não é essa a origem do termo. A palavra minhoca está no nosso código genético-linguístico e empregamo-la mesmo quando falamos castelhano. É um vocábulo patrimonial e, como todos eles, nasceu ou chegou bem antes de que o castelhano se convertesse na nossa única fonte lexical, lá por volta dos séculos XV e XVI. Não é preciso ser filólogo para sabermos que desde esse período todos os empréstimos do galego têm origem no castelhano. Portanto, minhoca, não pode chegar através do português uma vez influenciado polo léxico africano (ou americano) a partir do século XVI. Existem casos estranhos e excepcionais, como milho, que se refere ao milho americano chegado no século XVII a Galiza cujo nome em castelhano é maíz (do taino mahis). Neste caso concreto, há uma transferência lexical por analogia com o milho-miúdo (ou painço), mui popular na agricultura galega durante a Idade Média e mui semelhante com o milho americano. É portanto uma evolução lexical interna do galego alhea ao castelhano. Também o caso de pataca, que explico aqui, é uma excepção à dominação linguística castelhana. São dous casos estranhos mas nenhum deles é um empréstimo do português pós-medieval.

“Os filólogos portugueses e brasileiros também têm dúvidas sobre a possível origem afro-americana do termo minhoca”

Ora bem, os filólogos portugueses e brasileiros também têm dúvidas sobre a possível origem afro-americana do termo minhoca. Estas dúvidas não estão relacionadas com o caso galego, que desconhecem, mas com a datação das primeiras ocorrências do termo em textos escritos. Segundo Marcos Bagno, este vocábulo aparece recolhido por primeira vez no dicionário Houaiss, em 1560, o que seria demasiado cedo para que um termo banto tenha entrado no português. Segundo Venâncio, a primeira aparição do termo é ainda anterior, dum auto de Gil Vicente de 1522. E como bem di o autor, isto “torna deveras problemática uma proveniência africana”.

Mas o que desbota completamente a hipótese afro-americana é a presença deste termo no Livro da Montaria, documento português redigido na Baixa Idade Média, entre 1415 e 1433. Reproduzo parte do parágrafo onde o termo aparece 5 vezes com o sentido que todas conhecemos:

Acontesce ainda que o porco, no tempo do inverno, demays quando os invernos son muyto chuivosos e o porco passa per alguns lugares que son lenteyros, e nestes tempos e en taaes lugares as minhocas saem mays ameude sobre a terra e fazem aquelle sinal per que os homes conhescem que jazem alli.  E assi, quando o porco por alli passa, tan toste en como passa e crece o dia, logo as minhocas saem [ ] E portanto leixam os monteyros que muyto non sabem, posto que lhes o seu cam cheire bem, de irem per elle porque cuydam que non he da manham e atal cousa non a devem os monteyros a cuydar nem dar authoridade a tal sinal, ca, en como quer que de razom está en no assi cuydarem porque o porco que fosse da manham non devia a teer o sinal das minhocas dentro no rastro. Mays, en como quer que assi seja en razom, todavia algumas vezes se acontesce pello contrayro, ca, ainda que o porco entre na manham tam toste que o dia vem, non leixa de parecer atal sinal en no rastro como este que dissemos das minhocas. [ ] Mais empero por sair de tal duvida pare mentes à talhadura do rastro, non embargando o sinal das minhocas que en elle pareça.  Livro da Monteria, séc XV.

Encontrei o documento mergulhando entre os textos do corpus CARVALHO, de José Ramom Pichel. A presença do termo num documento ainda medieval é uma evidência irrefutável contra a hipótese afro-americana (aliás, as línguas bantas e ameríndias poderiam ter emprestado o termo do português) pois o período é anterior às navegações portuguesas e à abertura de novas rotas comerciais nos continentes africano e americano. A etimologia de minhoca continua a ser escura, mas agora sabemos que não é um empréstimo pós-medieval. De facto, a evidência achada na documentação medieval só servirá para convencer portugueses e brasileiros. Os galegos já o sabíamos, não por sermos bons filólogos, mas porque lidamos com questões socio-linguísticas cada dia e temos esses problemas gravados a ferro e fogo na mente. Somos peritos em observar e interpretar a realidade linguística de jeito mui pormenorizado. E essa interpretação está certa. Não precisa de mais evidências.