Os celtas vêm do ocidente?

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Castro de Baronha
Castro de Baronha

No meu anterior artigo, onde tratei o conceito do nacionalismo, comecei uma série de breves trabalhos sobre temas controversos duma perspectiva o mais científica possível, pondo de relevo modelos teóricos inovadores que estão a ser discutidos em publicações científicas com grande impacto internacional. O celtismo, o segundo tema da série, é um fenómeno do que sempre gostei, do que costumo falar em contextos informais, mas do que, reconheço já aqui, não tenho nenguma formação académica nem científica. Mesmo assim, vou tentar descrever e organizar o mapa de ideias que estão a ser debatidas na atualidade sobre este tema, tão nosso e tão controverso.

Podem-se distinguir três grandes aproximações teóricas em relação à origem da cultura celta: (1) o modelo tradicional, (2) o modelo atlantista, conhecido também como Celtic from the West (O celta vem do ocidente), e (3) a corrente crítica e céptica, com autores como John Collins, que critica as construções identitárias baseadas no mito celta, pois não reconhece a existência duma cultura céltica homogénea que mereça ser referida inequivocamente por um único conceito. Não irei abordar estas questões míticas e identitárias no presente artigo, para focar-me sobretudo no segundo modelo e a sua relação com o tradicional.

Podem-se distinguir três grandes aproximações teóricas em relação à origem da cultura celta: (1) o modelo tradicional, (2) o modelo atlantista, conhecido também como Celtic from the West (O celta vem do ocidente), e (3) a corrente crítica e céptica, com autores como John Collins, que critica as construções identitárias baseadas no mito celta.

“O celta vem do ocidente” é um modelo científico apresentado na última década polo arqueólogo Barry Cunliffe, professor emérito da Universidade de Oxford e pelo linguista da Universidade de Gales, John Koch, e defendido por muitos cientistas, entre os que destaca o arqueólogo Colin Renfrew. Para dar só uma ideia do impacto científico destes autores, o primeiro tem 10.607 citas e índice h = 46, e o último, do que falarei também mais abaixo, recebeu 40.663 citas e tem um índice h = 92. Este índice quantifica a produtividade e o impacto tomando em conta os artigos mais citados dum/a investigador/a. Para pôr em perspectiva estes dados, dous arqueólogos galegos de renome e grande impacto no nosso país, Francisco Calo Lourido e Felipe Arias Vilas, têm 395 e 352 citas, respectivamente, ambos os dous com índice h = 10 (dados obtidos de Google Scholar a partir do programa Publish Or Perish). Em linhas gerais, o modelo “O celta vem do ocidente”, desenvolvido por arqueólogas/os, geneticistas e linguistas, coloca a origem temporal do celtismo na Idade do Bronze (há mais de 4/5 mil anos) e a origem espacial nas regiões atlânticas. É chamado também de modelo ou teoria atlantista, com precursores nos anos noventa do século passado, como o catedrático de Prehistória, Martín Almagro-Gorbea, quem, a partir dos seus estudos dos povos celtas da Ibéria, considerou que o substrato indo-europeu do ocidente atlântico peninsular é muito arcaico e bem anterior às culturas célticas identificadas na Alemanha e na França. Ora bem, dadas as características arqueológicas e conexões com os povos europeus do Atlântico norte, este autor sugere que a cultura do ocidente peninsular tem que ser considerada proto celta.

Em linhas gerais, o modelo “O celta vem do ocidente”, desenvolvido por arqueólogas/os, geneticistas e linguistas, coloca a origem temporal do celtismo na Idade do Bronze (há mais de 4/5 mil anos) e a origem espacial nas regiões atlânticas. É chamado também de modelo ou teoria atlantista.

A teoria atlantista opõe-se ao modelo tradicional e predominante durante o século XX, que defende a migração ou invasão de populações celtas de centro-europa para o ocidente durante a Idade do Ferro, é dizer, durante o primeiro milénio a.C, uma data muito mais tardia que a proposta polo modelo atlantista. Estas invasões da Idade do Ferro permitiriam a transmissão da cultura Hallstatt-La Tène, de raiz céltica e localizada em pontos de Alemanha e França, cara a fachada atlântica produzindo a chamada celtização do ocidente europeu. Frente a este movimento leste-oeste, o modelo atlantista propõe a migração e transmissão cultural inversas, de oeste para leste, junto com uma contínua interação de povos celtas ao longo da costa atlântica durante vários milénios, baseando-se em vários tipos de evidências: linguísticas, arqueológicas e genéticas.

Desde o ponto de vista linguístico, o estudo dos topónimos permite identificar uma forte densidade de povos de línguas celtas na Europa atlântica. Uma vez que os topónimos são unidades linguísticas que evoluem e mudam muito lentamente, a sua presença maciça na fachada atlântica sugere que existe uma longa continuidade temporal com características culturais e linguísticas de origem celta nessa zona de Europa, e desde muito antes que no centro e leste europeus, onde existe uma menor densidade de topónimos celtas. Também a distância linguística é interpretada como um fator relevante. A grande distância linguística entre as diferentes línguas celtas, tanto entre as atuais (galês e gaélico, por exemplo), como entre estas e as já desaparecidas mas registadas em diferentes partes de Europa, incluindo a Península Ibérica, é uma indicação de que foi há muito tempo, talvez vários milénios, que o proto celta se dividiu nessas famílias linguísticas tão distantes. Ainda desde a perspetiva linguística, o modelo tradicional não pode explicar a descoberta de inscrições em Ibéria no 800-600 a.C e escritas em línguas célticas com traços linguísticos muito mais arcaicos dos que se encontram nas línguas celtas centro-europeias, supostamente anteriores no tempo. No entanto, no modelo atlantista isto é o esperável.

Desde a perspetiva linguística, o modelo tradicional não pode explicar a descoberta de inscrições em Ibéria no 800-600 a.C e escritas em línguas célticas com traços linguísticos muito mais arcaicos dos que se encontram nas línguas celtas centro-europeias, supostamente anteriores no tempo. No entanto, no modelo atlantista isto é o esperável.

Desde a investigação arqueológica, também há evidências que apoiam este modelo. A cultura do vaso campaniforme (Bell-Beaker), que se desenvolveu há 4/5 mil anos tem uma distribuição que correlaciona com os lugares onde se falou ou se falam línguas célticas. Considera-se que o campaniforme é mais uma evidência da conetividade cultural entre as regiões atlânticas e poderia ter causado um processo de homogeneização linguística, pois a sua expansão teria precisado dalgum tipo de língua comum: o proto celta.

A investigação genética em relação ao celtismo só tem sido, de momento, explorada em grande escala no Reino Unido e na Irlanda. Em ambos os países, o estudo do ADN do cromossoma Y e mitocondrial foi utilizado para reconstruir a evolução histórica da população. Não há indicações claras que apoiem a teoria atlantista, mas esta encaixa melhor com a evidência genética actual do que o modelo tradicional. Em termos gerais, estes estudos genéticos consideram que não há provas de invasões maciças e de mudanças radicais na população das ilhas durante a Idade de Ferro. Há continuidade genética (além de arqueológica) ao longo desse período, o que contrasta com o modelo de migrações tardias (primeiro milénio a.C) da teoria tradicional.

Nos últimos anos estamos a viver uma revolução científica no campo da análise do ADN antigo e a sua aplicação a estudos arqueológicos e linguísticos. Uma das principais conquistas dos recentes estudos genéticos baseados no ADN antigo é fornecer evidências irrefutáveis para a demonstração duma das hipóteses sobre as origens das línguas indo-europeias. Até há alguns anos atrás a arqueologia estava a debater donde vinham os povos Indo-Europeus. Duas hipóteses ofereceram argumentos sólidos. A primeira sustentava que as línguas indo-europeias começaram a espalhar-se ao mesmo tempo que a agricultura partindo da Anatólia (atual Turquia) durante o Neolítico há por volta de 9 mil anos. Esta tese foi defendida por Colin Renfrew, autor que, como já mencionei acima, também defende a hipótese atlantista do celtismo. A segunda hipótese, conhecida como teoria Curgã (“mámoa” em russo), sugere que o espalhamento do indo-europeu começou com a migração em massa de pastores nómadas (os Yamna) das Estepes Euroasiáticas (atual Ucrânia e sul da Rússia) durante a Idade do Bronze. Esta migração começou 5.000 anos atrás para a Europa, oeste, e para a Ásia, leste, e está ligada, não só à origem do proto indo-europeu, mas também à transmissão dum interessante pacote tecnológico e cultural: a domesticação do cavalo, uso de carroças, desenvolvimento da roda, cerámica cordada e túmulos individuais. A sua principal defensora é a arqueóloga lituana Marija Gimbutas (1921-1994). Além destas duas teorias sobre a origem do indo-europeu, merece especial atenção uma terceira, conhecida como o Paradigma da Continuidade Paleolítica, do linguista Mario Alinei, que vai contra as teorias de migração no continente europeu e sugere que todas as línguas indo-europeias atuais se encontram no mesmo lugar desde o Paleolítico. Segundo os defensores deste paradigma, há uma continuidade arqueológica e genética desde há mais de 10 mil anos devido a que não houvo grandes alterações nas populações europeias desde o Paleolítico. De facto, com base nesta ideia de continuidade, Alinei sugere que a cultura celta é uma evolução natural do megalitismo da Europa ocidental atlântica. 

Nos últimos anos, vários estudos genéticos baseados no ADN antigo e levados a cabo por grupos de investigação europeus e estadounidenses interdisciplinares deram apoio à teoria Curgã de Marija Gimbutas. A difusão das línguas indo-europeias teria se dado a partir das estepes russas, ao norte do Mar Negro, durante o início da Idade do Bronze, mediante a migração maciça e a grande escala dos povos Yamna (ou Yamnaya) para Europa e Asia. Estes trabalhos, realizados em paralelo por diferentes grupos, e que deram lugar a artigos publicados em revistas como Nature e Science, chegam todos à mesma conclusão: o proto indo-europeu começou a espalhar-se da estepe russa há 5.000 anos, na Idade do Bronze, tal e como defendeu Gimbutas, e não da Anatólia há 9.000 anos, no início do Neolítico, tal e como foi formulado por Renfrew. Ora bem, estes estudos genéticos mostram, como bem defendeu Renfrew, que também houvo migração da Anatólia cara a Europa no início do neolítico e que estas populações migrantes espalharam a agricultura por todo o continente, misturando-se também com os povos cazadores-colectores que moravam em Europa desde o Paleolítico, provenientes de África. Nomeadamente, estes estudos demonstram que a agricultura não foi uma revolução unicamente cognitiva causada pola transmissão duma tecnologia e dum conhecimento sem necessidade de migrações nem misturas genéticas. Foi o resultado de movimentos de população a grande escala, como a expansão do indo-europeu. Os estudos recentes em genética de populações, comparando o ADN antigo com o das populações modernas, conseguem caracterizar dum jeito muito preciso o mapa genético europeu, que é muito similar de norte a sul e de leste a oeste. A população europeia está caracterizada, em diferentes proporções segundo a zona, por três grandes grupos: os antigos povos coletores-cazadores do Paleolítico, os povos agricultores de Anatólia e os pastores (neste caso, sim, a maioria homens) da estepe russa e falantes do proto indo-europeu. Todas as gentes de Europa, sejam suecas, checas ou portuguesas, falem ou não línguas indo-europeias (como em Euskadi, Finlândia, Estónia ou Hungria), todas elas têm, em maior ou menor proporção, pegada genética destes três grupos de pessoas que constituem o nosso passado comum.

A população europeia está caracterizada, em diferentes proporções segundo a zona, por três grandes grupos: os antigos povos coletores-cazadores do Paleolítico, os povos agricultores de Anatólia e os pastores (neste caso, sim, a maioria homens) da estepe russa e falantes do proto indo-europeu. Todas as gentes de Europa, sejam suecas, checas ou portuguesas, falem ou não línguas indo-europeias (como em Euskadi, Finlândia, Estónia ou Hungria), todas elas têm, em maior ou menor proporção, pegada genética destes três grupos de pessoas que constituem o nosso passado comum.

Tudo o que acabei de descrever não são simples hipóteses, são estudos endossados pola comunidade científica e em breve, acredito eu, aparecerão como narrativas oficiais da nossa história nos livros de texto escolares. O próprio Renfrew, numa demonstração de honestidade intelectual, já reconhece que a teoria Curgã da estepe russa, e não a sua própria da Anatólia, é a correcta para explicar a origem do indo-europeu. No caso das hipóteses sobre as origens do proto celta, os estudos baseados no ADN antigo ainda não demonstraram nenguma das duas teorias introduzidas acima: a tradicional e a atlantista. Ora bem, esta última condiz bem com a narrativa das migrações indo-europeias durante a Idade do Bronze. Segundo Cunliffe, um dos principais defensores do modelo atlantista, o proto celta, junto com a sua cultura associada, teria a sua origem na Ibéria após a migração de povos indo-europeus através do mediterrâneo na Idade de Bronze. De aí, esta cultura espalhar-se-ia ao longo de toda a costa atlântica, criando-se conexões culturais fortes entre as regiões atlânticas, tal e como se reflecte durante o período campaniforme, antes de espalhar-se cara ao centro e leste de Europa num processo de celtização. Como afirmei mais acima, esta narrativa vê-se reforçada com evidências linguísticas e arqueológicas. As análises do ADN antigo, no entanto, ainda não permitem confirmar ou refutar nengum dos modelos em litígio. Existem estudos interdisciplinares muito interessantes desenvolvidos por arqueólogos e geneticistas internacionais que mostram como a cultura campaniforme se espalhou de Ibéria cara ao norte e centro-europa sem indícios de qualquer exportação genética, considerando-se que foi, pola primeira vez na história, uma disseminação cultural realizada mediante troca de ideias sem necessidade de grandes migrações. Este tipo de estudos é mais uma peça que vai ajudar a conhecer a origem do proto celta, mas ainda estamos longe do consenso científico.

Do mesmo jeito que a constituição de grupos de investigação interdisciplinares muito ambiciosos, com ajuda do ADN antigo, conseguiram resolver um dos grandes enigmas dos últimos dous séculos, a origem do proto indo-europeu, eu acredito que grupos semelhantes e com investigações análogas conseguirão em poucos anos descobrir a origem do proto celta. Gostava de ver formar-se aqui, na Galiza, equipas de arqueólogas, linguistas e geneticistas trabalhando com as técnicas recentes do ADN antigo aplicadas a todos os restos humanos recuperados no nosso território, e em colaboração com outros grupos doutros países, mesmo se os membros destas parcerias não partilhem as mesmas hipóteses teóricas de partida. Neste sentido, o exemplo de Marija Gimbutas e Colin Renfrew é comovente. Vários anos após a morte da primeira e depois de muitos anos defendendo modelos diferentes, celebrou-se um congresso de honra a Gimbutas onde, por um lado, Renfrew reconheceu que a teoria da sua oponente intelectual é a correta e, por outro, os amigos dela denunciaram o tratamento misógino que sofreu durante décadas nas universidades estadounidenses. Tarde, mas foi feita justiça. Gostava que o celtismo académico, muitas vezes diluído em disputas estéreis, aprendesse as lições que aqui nos deixa o indo-europeismo.