Ó sol, imortal sol, do meu país do sul*

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Depois de quase três anos de ausência, voltei ao Algarve. Do outro lado da janela do trem vejo a intensidade da cor avermelhada da terra e os campos de laranjeiras à volta da cidade de Silves. Posso adivinhar o docíssimo arrecendo a flor de laranjeira no ar. Uma das variadas leituras que conheci nos dez anos em que cá morei foi a do rei e poeta Al-Mutamid, que passou em Silves a sua adolescência. O mapa político, linguístico e cultural da Península Ibérica era bem diferente no seu tempo. A vida de Al-Mutamid está marcada pelas turbulências políticas derivadas da decomposição do califado de Córdova. Chegou a ser monarca do reino de taifa de Sevilha e morreu no desterro, nos arredores de Marraquexe, em 1095. As suas vivências juvenis no al-Gharb al-Andalus, são evocadas numa série de poemas cheios de saudades pelos tempos idos e de sensitivas imagens duma terra guardada como paraíso da alma, onde se entrecruzam nos mesmos versos as lembranças das calmas curvas do rio Arade e o louvor dos corpos das amantes perdidas. Conta a lenda que o vizir de Al-Mutamid, o também poeta Ibn Ammar, jogou uma partida de xadrez com o rei cristão Afonso VI para decidir o destino da cidade de Sevilha. Ibn Ammar ganhou a partida e Afonso VI levantou o cerco da cidade. Embora a historiografia moderna tenha uma versão mais prosaica para este episódio histórico, que teria mais a ver com o pago de tributos, a lenda é por si só sinal do jogo de poderes que decidiu a divisão política de estes territórios ibéricos que habitamos. O destino deste Algarve foi decidido no Tratado de Badajoz assinado entre Afonso III de Portugal e Afonso X de Castela, que converteu o rio Guadiana em fronteira entre Portugal e Castela. Embora de facto o Algarve nunca mais tivesse instituições políticas próprias, os reis de Portugal se denominaram até ao fim da monarquia como “reis de Portugal e do Algarve”.

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Os anos que morei no sul mudaram a minha maneira de olhar para a Península Ibérica. As subtis marcas das vidas que se cruzaram no território algarvio fazem-me pensar nas histórias e destinos que neste cabo do mundo se teceram, por alianças políticas, por trocas comerciais, pela construção dos impérios ibéricos ou, simplesmente, por esse contínuo fluxo de povos migrantes que passaram e passam pela Península. Contemplar o edifício do que se considera o primeiro mercado na Europa de escravos trazidos da costa ocidental africana, em Lagos, faz com que me pergunte, em inverso movimento, onde é que hoje se decide o meu destino e o de todos. Também me traz ao pensamento perguntas sem resolver sobre as genealogias que a todos nos tecem a estas alturas da história. Como não há história que comece do completo início, reconheço que a paixão que como estudante tive pela literatura medieval peninsular é um precedente na minha memória para tomar este outro fim da terra atlântico como ângulo de visão para contar a história coletiva. De entre esses testemunhos literários medievais que dão sentido ao meu mapa cultural da Península ecoa em mim a literatura amorosa aqui escrita. Algo na genealogia do estado português está atado àquele tempo que na história da literatura se costuma conhecer como aetas ovidiana, em que tanto se filosofou sobre a natureza do eros. Como diz Cunqueiro num artigo, chegou o tempo em que “o amor calou em Portugal”, e em toda a Península a meu ver, e a razão do estado ganhou à razão do amor. Triunfou a leitura materialista e degradante do amor do livro do Arcipreste de Hita, não a confiança na entrega à amante do Colar da pomba de Ibn Hazim de Córdova, que também frequentou a corte de Al-Mutamid, nem a dança à volta das avelaneiras floridas das amigas que amavam amigo das nossas cantigas.

Emílio González López dizia que a história da Galiza estava mal contada, por não partir da identidade que lhe dá a sua posição geográfica como país atlântico, no meio dos caminhos do oceano. Creio que também faltam à tão fragmentada história dos galegos mais reflexões sobre estes movimentos de norte para sul, mais sentidos para além da frase que lemos em tantos manuais sobre a história medieval da Galiza, a deslocação de poder de norte para sul após a conquista da Andaluzia como causa da nossa marginalidade na Península. Fragmentos de fios narrativos perdidos que nos trazem a história de personagens ambiciosos e conquistadores, participando como protagonistas na primeira linha das intrigas políticas, da sede de dinheiro e poder que fazem do mundo, em particular da nossa Península Ibérica, o que é, como os muitos nobres galegos que a historiografia romântica portuguesa retrata como ambiciosos amantes de rainhas, os mais conhecidos em Portugal do que na Galiza Fernão Peres de Trava ou João de Andeiro. Também poetas como Paio Gomes Charinho, que participou como navegante na tomada de Sevilha ou  Macias o Namorado, aquele “cativo da sua tristura”, soterrado em Jaén. Mas não só de batalhas no Al-Andalus se fez o movimento de norte a sul. Foi sobretudo esse fluxo constante, nunca quantificado, de uma secularmente superpovoada Galiza para os reinos de Portugal e Castela até tempos bem recentes. Para contar esta história, como disse Carlos Pazos, professor da Universidade do Minho, numa recente palestra em Lisboa sobre a comunidade galega nesta cidade, confrontamo-nos com a assimetria dum estado construído de norte para sul e um discurso nacionalista projetado de sul para norte na relação entre a Galiza e o estado português e de centro continental para periferia atlântica na relação com o espanhol, o qual muito limita os marcos do conhecimento académico e está na raiz de tantos desentendimentos na interpretação do património cultural que nos é comum, também a língua.

O que me preocupa para o momento presente não é recuperar alguns referentes históricos e culturais. Não me interessa reinventar a nossa genealogia. Preocupa-me que as assimétricas relações ibéricas em que assenta essa fronteira do sul no nosso imaginário e na construção da nossa identidade cultural nos tiram chaves próprias para nos guiar em este século XXI de fronteiras abertas. O discurso sobre a identidade galega, tão predominante na nossa vida social e cultural, também tem precisado dos seus “outros”. Penso, por exemplo, no “orientalismo” da Romaria de Gelmires de Outeiro Pedralho, com a personagem do rei Afonso VI que em Toledo recebe ao bispo de Compostela, querendo fazer um difícil equilíbrio entre o norte a representar a força e a vocação transcendental e o oriental a representar a sensualidade e os prazeres dos banhos e as roupas brancas. Se a fronteira com o nosso outro espanhol é mais fácil pela diferença da língua, do lado português a ideia tópica de Portugal como extensão da Galiza ou como Galiza livre e o tópico português de Portugal como estado uniforme  sobrepõe-se ao conhecimento de uma construção cultural e social mais complexa neste extremo atlântico. Este espaço galaico-português que chega ao mar do sul bem vale este exercício de ver para além das nossas influências.

Também no Algarve me encontro na minha casa atlântica, na minha margem oceânica, e sinto a “massa do país que se cumpre às minhas costas”, como diz o verso de Luisa Villalta. Precisamos deste ângulo de visão não só sobre a Península mas sobre o espaço de circulações contínuas no triângulo Europa-África-América. Temos assente o papel da Galiza como elo de ligação entre a Península Ibérica e a Europa, pelo caminho de Santiago e sobretudo pela rede de ligações com os povos da fachada atlântica europeia. Na mesma lógica precisamos do resto da Península para perceber essa ligação com o Mediterrâneo como espaço de comunidade e com o Atlântico africano, até para compreender a nossa migração à América. A riqueza das fontes árabes para o estudo do reino da Galiza medieval são um exemplo de como o conhecimento, a perceção e a análise que fazemos da vida da nossa cultura e da nossa sociedade não se esgota nas fontes próprias. São peças para decidirmos por nós próprios o nosso lugar neste mundo que se demanda cada vez menos eurocêntrico. Até porque nós sabemos que a Europa conta outra história e que a compreensão de muitas sociedades europeias também passa pela marginalização das identidades “outras” na construção dos estados-nação depois transformados nos impérios atlânticos. A história mundial, global ou transnacional, a história conectada, e, em geral, todo esse esforço por incluir o “outro” na recente historiografia dão-nos marcos de pensamento e métodos muito necessários para a nossa sociedade. Por outro lado a crise do estado-nação também abrange a nossa conceitualização como nação sem estado na que tanto se esforçaram os nacionalistas históricos. A nossa história conta-se pela continuidade do território do país dos mil rios, mas também pelo movimento incessante dos galegos.

Do outro lado de este mar ao sul está o continente africano, como do outro lado do mar ao norte da minha Crunha estava a Irlanda. Não é hábito dos nossos contadores de História falar das ligações que a história dos galegos tem com a dos africanos, quando de facto elas existem, nem que seja pela nossa ligação com o outro vértice do triângulo, esse complexo cenário das Caraíbas e a ilha de Cuba que os galegos foram “branquear”. Um bom contador veria o fio de causalidades que une a revolta dos escravos de 1794 da colónia francesa de Saint Domingue que levou à proclamação da independência do Haiti e o fluxo de emigrantes galegos a partir de meados do século XIX. Para a sua narração teria de falar do medo aos negros e à africanização das Caraíbas, da expansão da indústria da cana de açúcar na ainda colónia espanhola de Cuba, das teorias científicas sobre as raças e as suas explicações sobre as equivalências entre categorias biológicas e categorias sociais, da “Junta de población blanca” fundada na Havana em 1818 para planificar a colonização da ilha por trabalhadores livres europeus que fossem substituir a mão de obra escrava, das medidas higienistas para favorecer a aclimatação dos europeus. E aí entram na história os restos do extinto reino da Galiza, devastado pela catastrófica crise de subsistência que dizimou a população galega em 1853. O contador teria de falar desse tão lucrativo negócio que foi e é o tráfico de pessoas e da “Compañía patriótica mercantil” de Urbano Feijóo Sotomayor, galego que hoje entraria na categoria de “empreendedor”, como alguns recorrentes nos meios de comunicação galegos atuais, personagem que oferecia salvar aos galegos da miséria com contratos que eram, de facto, de escravatura, com sujeição a castigos físicos incluída. A história teria um tom bem dramático no pleito sobre estes “escravos galegos” que nas cortes espanholas tiveram Urbano Feijóo e Ramón de la Sagra, tambén galego e responsável pela primeira publicação anarquista da História, El Porvenir, que veu a luz em Compostela em 1845. É neste clima, na contestação à propaganda migratória, que se entende bem melhor a série de poemas “As viúvas dos vivos e dos mortos” de Folhas novas.

Caminhando de norte para sul pergunto-me se afinal é esta a história que contam os heróis solares que viajavam para além da linha do horizonte, como aquele do farol da minha cidade que navegou até à ilha de Irlanda, partir à procura da renovação, vendo para além do que nos é próprio, dos lares nativos, do conhecido. Esse olhar, verbo que tanto identifico poeticamente com o sul, esse amar o outro e em ele conhecer-nos, vivendo o que a Galiza seja na teia das relações dos galegos. Penso que a viragem que Manuel Murguia deu à historiografia galega, fazendo do povo galego o protagonista da narrativa e procurando fontes para documentar a história lá onde elas se encontrassem, ainda tem plena utilidade no século XXI. Como esse povo é disperso, como se relacionou e se relaciona com as sociedades que o acolheu, é um conhecimento valiosíssimo do que nós somos como parte da humanidade, útil para tomarmos consciência de nós e decidirmos o que que queremos ser, para termos uma moral histórica muito mais necessária que uma história panegírica se queremos dar continuidade a essa vocação de paz e fraternidade do galeguismo como o movimento humanista que ele é. Pois se a vida coletiva existe nos verbos ser e estar, muito mais plena ela é no verbo amar.

*Verso do poema “O meu Algarve”, do poeta João Lúcio (Olhão, 1880-1918).

Máis de Maria Dovigo