‘Code-switching’ carcerário

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Na última vez que me viu a dentista pudem cruzar toda a prisão: do módulo de isolamento (a “prisão de prisão” nesta matrioska penitenciária) à enfermaria. Como os presos isolados considerados especialmente perigosos, não podemos ir sem vigilância a lado nenhum, acompanhou-me um guarda. No caminho cruzamo-nos duas vezes, à ida e à volta, com um preso de 2º grau que estava a limpar o corredor principal. Nas duas ocasiões saudou-nos – na realidade o saúdo era só para o guarda – de uma maneira extremadamente amável e simpático, o homem mostrava-se encantador e mesmo fijo um par de brincadeiras sobre a chegada do inverno.

Cenas como esta produzem-se amiúde, e um observador externo ingénuo poderia interpretá-las como um signo de bom ambiente carcerário, como pode ser às vezes, mas sobretudo é um sintoma das relações de dominação que constituem o encerro.

A linguagem dos presos está saturada das prevenções simbólicas, circunlóquios, e rodeios linguísticos que Bourdieu detetava na fala dominada das mulheres num contexto de dominação masculina. [1] Todo sucede como se constantemente se estivesse a temer um castigo. Apenas há afirmações francas, as frases dos presos quando falam com os carcereiros estão cheias de condicionais, por vezes roçando o autoparódico: ” Perdone usted señor don funcionario, ¿podría usted, si no es mucha mulestia y puede, hacerme el favor de… ?”. A petição, embora seja de um direito, forma-se protegida por um bom colchão de amortecedores linguísticos, como pondo a venda antes da ferida.

Em qualquer intercámbio preso-carcereiro dá-se uma negociação linguística na qual entra em jogo a dignidade e a posição de cada um nessa relação de dominação. De partida, o tratamento de “você” é tacitamente obrigatório – norma que se explicita claramente se for transgredida -, e alguns presos, cada vez mais, incluem o tratamento de “Dom”diante do nome: “Buenos dias don Evaristo”. Contudo, dentro deste quadro geral há um amplo leque de estratégias comunicativas, que intentam conjugar diferentes graus de prevenção e de autoafirmação pessoal. Assim, quem prima a prevenção usa o referido “dom”, havendo, no entanto quem conjura esse rigor chamando o guarda com um simples “dom” (apúnteme para el médico, don), transformando uma fórmula quase reverencial numa sorte de expressão coloquial. Ainda, há quem abusa tanto do tratamento respeitoso que mais de um ficará com a dúvida de se não estará a ser burlado, e após ser tratado de alteza não lhe farão uma figa por trás.

Nestas negociações da identidade preso-guarda brilhou por méritos próprios um companheiro da Ginê-Equatorial, tido pelos guardas como um rapaz algo infantil mas dócil, que se dirigia a eles com uma surrealista fórmula que unia o “dom” a um diminutivo ou hipocorístico de “funcionário”: “¡Don Fu! Apúnteme para bajar al patio!”. Cada vez que chamava polos guardas, o resto dos presos fazíamos malabares para não rir diante deles que, segundo como se mire, foram subitamente transformados em desenho animado chinês.

O mais habitual entre os presos políticos é recorrermos a uma solução de compromisso: o asséptico “funcionário”, sem mais acompanhamentos. Não é demasiado estranho que entre tanto pessoal haja algum funcionário que empatiza com nós – por pura simpatia pessoal, algum resquício de consciência de classe ou, no caso dos galegos, por uma espécie de solidariedade pre-política ou étnica -. Com o tempo pode que se sintam incómodos nessa relação de dominação, e intentam conjurá-la propondo tutear-se. Não sei de nenhum preso político que aceitasse: o “você” permite uma distância de segurança, mais cómoda e habitável; evita as suspicácias de outros presos ou outros guardas – mais “vocacionais” – e não permite esquecer quem é quem.

 

[1]. Pierre Bourdieu, Ce que parler veut dire : L’économie des échanges linguistiques, Paris, Fayard, 1982