Gosto muito de debates filosóficos onde se procura desesperadamente rebater uma teoria com um contra-argumento baseado numa situação fantástica ou inverosímil, mas plausível. Um desses guiões de ficção científica é a história da Terra Gémea de Hilary Putnam, filósofo da mente estadounidense. Suponhamos que existem dous planetas: A nossa Terra e a Terra Gémea. São idênticos em quase todos os aspectos, incluindo os seus habitantes, línguas e ambientes físicos, exceto por uma diferença fundamental: na Terra, a substância chamada “auga” é H₂O. Na Terra Gémea, a substância que tem o aspecto, o sabor e o comportamento da auga é constituída por um composto químico diferente, que represento com as letras XYZ. Apesar das diferenças, o XYZ tem as mesmas funções práticas na Terra Gémea que o H₂O tem na Terra, por exemplo, beber, limpar, etc. Dado este cenário, a palavra “auga” significa o mesmo nos dous planetas? Putnam argumenta que não têm o mesmo significado polo seguinte: A palavra “auga” na terra refere-se a H₂O porque a composição química da substância é parte do que determina a referência do termo, mesmo que algumas pessoas na Terra podam desconhecer este pormenor técnico. A palavra “auga” do terráqueo gémeo refere-se a XYZ pola mesma razão, mas tendo uma composição química diferente, a referência do termo é também diferente. A partir daí, Putnam conclui que o significado depende de factores externos e não apenas do estado mental da falante. Mesmo que o significado da palavra nos dous mundos dê lugar a estados psicológicos internamente idênticos (mesmos pensamentos, crenças, conotações, etc.), as duas palavras referem-se a substâncias diferentes devido a diferenças no ambiente externo. Para Putnam os significados não estão unicamente no cérebro da falante, pois o mundo externo também contribui para o significado das palavras.
O argumento da Terra Gémea apoia a abordagem filosófica chamada externalismo semântico, segundo a qual alguns aspetos do estado mental dum humano estão localizados no ambiente externo. O externalismo semântico é uma crítica de Putnam ao funcionalismo computacional ou internalismo, que o próprio Putnam elaborou nos anos sessenta do passado século. Adoro os/as cientistas que criticam e desbotam as suas próprias teorias. O funcionalismo computacional é uma teoria da mente que define os estados mentais polas suas funções, é dizer, polo output que produzem a partir do input que recebem, e não pola substância da que são feitos. De facto, um mesmo estado mental pode estar constituído de múltiplas maneiras, tanto por redes neuronais biológicas, como por chips de silício. O funcionalismo centra-se, portanto, nos estados mentais internos e não explica como os factores externos contribuem para o conteúdo mental. O externalismo semântico, no entanto, defende que os conteúdos dos estados mentais não são inteiramente determinados polo que está dentro da mente do indivíduo, mas também por factores externos, como o ambiente e o contexto social. Por exemplo, a palavra “auga” refere-se a H₂O devido às propriedades físicas da substância no mundo exterior, e não apenas devido a qualquer representação mental interna. O externalismo desafia assim a noção de que os estados mentais podem ser totalmente caracterizados por funções internas sem ter em conta factores externos. Um outro exemplo de Putnam é o significado que ele próprio atribui às palavras “olmo” e “faia”. Ele próprio admite que tem um profundo desconhecimento da botânica e das árvores. Estes dous termos referem-se, no seu estado mental interno, a um mesmo conceito impreciso: árvores de folhas caducas. No entanto, mesmo se as duas palavras dão lugar a dous estados mentais idênticos no seu cérebro, tem consciência de que os significados são diferentes porque confia em que os botânicos podam fornecer uma descrição que justifique a distinção referencial. Putnam rejeita, deste jeito, a teoria descritivista do significado de Frege e Russell como inadequada e adopta a designação rígida de Saul Kripke. Assim, o significado dos nomes próprios e os objetos naturais é fixado no acto de nomear e confiamos chegar a este acto baptismal de nomeação através duma cadeia de transmissão referencial entre falantes. Kripke propõe uma outra história de ficção, o argumento Feynman-Gellman, para explicar a sua teoria da designação rígida. Sugere que a maioria das pessoas não é especialista em física e desconhece as principais descobertas de Feynman, mas pode dizer: “Feynman foi um físico famoso”. No entanto, esta descrição empírica não é suficiente para distinguir o indivíduo ao que se refere Feynman doutro indivíduo, por exemplo, Gellman, que também é um físico famoso e de quem a maioria das pessoas não conhece mais nada. Kripke afirma que, mesmo nestas circunstâncias de extrema indefinição, atribuímos o nome de Feynman a um indivíduo diferente de Gellman, porque confiamos em que é possível chegar hipoteticamente, através duma cadeia de transmissão entre falantes, ao acto de nomeação original em que se ligou para sempre o nome ao referente. É precisamente este acto externo de nomeação, e não unicamente a descrição interna evocada polo nome, que é um estado mental vago e impreciso, o que configura o significado do nome próprio “Feynman”.
Existem na filosofia de mente outras histórias de ficção criadas para rebater o funcionalismo computacional. A mais conhecida é Quarto Chinês de John Searle. elaborada em 1980. O principal argumento desta história de fantasia, que não vou detalhar aqui em pormenor, sugere que um programa informático de tradução de chinês só segue regras para manipular símbolos e não compreende o significado desses símbolos, apenas os processa mecanicamente. Assim, Searle conclui que o funcionalismo computacional não pode explicar a consciência ou o entendimento genuíno, pois um estado computacional interno que siga regras puramente formais não equivale a possuir a capacidade intencional de compreensão do mundo externo. Muito mais recentemente, a linguista computacional, Emily Bender, elaborou o argumento fictício do Polvo Superinteligente para demonstrar que os modelos da linguagem da Inteligência Artificial atual (ChatGPT e companhia) não compreendem o significado linguístico, pois operam com padrões estatísticos de palavras sem acesso ao mundo real externo ou à experiência. Tampouco não vou entrar em pormenores sobre esta história fictícia, mas devo salientar que o argumento que defende não deixou indiferente à comunidade científica, porque nas últimas tendências da Inteligência Artificial esta-se a tentar reverter este excesso de internalismo semântico. Deste jeito, as novas arquiteturas da IA procuram enriquecer os estados mentais internos dos modelos da linguagem com processos externalistas, por exemplo, adicionando dispositivos externos, como fontes de conhecimento enciclopédico, que põem os modelos da linguagem em contacto com referentes fiáveis do mundo exterior. O argumento do polvo superinteligente é um dos últimos que conheço, mas as histórias de ficção criadas para expor as fraquezas das teorias hegemónicas são inúmeras. O próprio Putnam criou uma das mais engraçadas que conheço: a dos superespartanos, que desmonta a teoria behaviorista do conhecimento. Porém, não vou continuar por aqui para não me desviar do tema central deste artigo.7
As novas arquiteturas da IA procuram enriquecer os estados mentais internos dos modelos da linguagem com processos externalistas, por exemplo, adicionando dispositivos externos, como fontes de conhecimento enciclopédico, que põem os modelos da linguagem em contacto com referentes fiáveis do mundo exterior.
No resto do artigo, vou-me centrar na introdução do eterno conflito entre isolacionismo e reintegracionismo neste contexto filosófico. Devo confesar que sofro do viés cognitivo de Baader-Meinhof e vejo o conflito isolacionismo-reintegracionismo em tudo o que leio. Para seguir a tradição dos filósofos da mente, vou inventar um novo cenário de ficção que me permita introduzir o nosso velho conflito linguístico no contexto do funcionalismo versus externalismo. Pensemos em duas gémeas galegas totalmente idênticas, Ugia e Uxía, que receberam os mesmos inputs linguísticos ao longo da suas vidas e que produzem os mesmo outputs. Em consequência, além de serem fisicamente iguais, falam do mesmo jeito, com a mesma pronuncia, com as mesmas palavras e com a mesma combinatória sintática. A única diferença que existe entre elas é o significado que atribuem à palavra “galego” em referência à língua que falam. Ugia pensa que É PORTUGUÊS E Uxía que NÃO É PORTUGUÊS.
Devemos inferir que Ugia e Uxía falam línguas diferentes, mesmo se o output linguístico que produzem é idêntico? ou bem devemos deduzir que falam a mesma língua? Um/a funcionalista ortodoxo/a diria que as duas falam a mesma língua porque os seus estados mentais são idênticos: produzem o mesmo output a partir do mesmo input. No funcionalismo computacional a semântica não se toma em conta: só se valoram, para definir um estado mental interno, os elementos observáveis, é dizer, padrões de combinações de sons e palavras. Ora bem, a partir do externalismo semântico, pode-se defender que as gémeas falam cousas diferentes porque há um factor externo de natureza sócio-cultural e política que fai com que o significado duma das palavras do seu código linguístico tenha elementos referenciais diferentes: o “galego” É PORTUGUÊS ou NÃO É PORTUGUÊS.
Podemos concluir, a partir deste exemplo fictício, que a atribuição duma língua concreta a uma variedade ou ideolecto não se baseia em critérios internos de natureza puramente linguística, mas numa externalização. Este factor externo deriva, em última análise, dum acto social original em que se atribuiu convencionalmente um nome a um objeto. Do ponto de vista sociolinguístico, não estou a dizer nada de novo; simplesmente, estou a contextualizar no âmbito da Filosofia da Mente a conhecida frase: uma língua é um dialeto com um exército e uma armada, atribuída a Max Weinreich. A história fictícia das gémeas é só uma tentativa de situar o carácter convencional e externo do conceito de língua no terreno da discussão filosófica entre funcionalismo/internalismo e externalismo. E é curioso notar como o isolacionalismo argumenta muitas vezes em termos de internalismo, enquanto o reintegracionismo argumenta em termos de externalismo social do estado mental. No isolacionismo, o galego tem as suas próprias caraterísticas linguísticas internas e o rótulo NAÕ É PORTUGUÊS deriva mecanicamente dessas caraterísticas. Ele é visto como uma propriedade interna do código, dedutível de acordo com as regras do sistema e considerado uma verdade científica. No externalismo, no entanto, o rótulo É PORTUGUÊS nasce dum acto comunitário de batismo e deriva duma vontade política de identificação cultural e agrupamento social que envolve o mundo lusófono.
Do ponto de vista reintegracionista, o externalismo social do estado mental frente ao internalismo abre portas ao mundo e procura soluções a esses velhos problemas historicamente enraizados numa teimosia crónica. Permitide-me terminar a história de Ugia e Uxía como se fosse um conto de fadas. A certa altura das suas vidas, Ugia e Uxía separam-se para exercerem atividades profissionais diferentes. Uxía arranja emprego como normalizadora da língua galega no Concelho de Vigo e promove um concurso literário para crianças em que participam os filhos e filhas doutras pessoas empenhadas genuinamente no uso do galego. Ugia, pola sua vez, chega a ser eurodiputada e fomenta uma norma para a euro-região Galiza-Norte de Portugal na que se regulamenta que o estudantado galego obterá o C1 de português ao finalizar o ensino obrigatório na Galiza e após um curso de três meses de adaptação, enquanto o estudantado português poderá obter o C1 de Galego (Celga 4) no fim dos estudos obrigatórios nos centros de ensino do norte de Portugal juntamente com um curso de adaptação de três meses. A regulamentação exigirá a incorporação progressiva do conhecimento do padrão português de Portugal nas escolas galegas, a fim de evitar a necessidade de cursos de adaptação no futuro e de implementar no médio prazo um único nível C2 galego-português reconhecido em toda a euro-região e expansível para toda a lusofonia.
Por vezes, nomear um estado mental como sendo A, em vez de não A, pode ajudar a desenvolver planos estratégicos que favoreçam toda uma comunidade de pessoas em territórios diversos. Se o nosso estado mental activa o rôtulo É PORTUGUÊS, temos um grande abano de atividades a promover, mas se ainda ficamos no estado NÃO É PORTUGUÊS, talvez continuemos a reduzir em boucle a comunidade de utentes e activistas linguísticos num contexto minorizado, onde o estado mental geral na Galiza É (e será cada vez mais) CASTELHANO.