Richard Wright, o filho rebelde do pai Tomás (“Uncle Tom”)

Partilhar

“Que ocorre com um sonho adiado?
Seca-se como umha uva passa ao sol?
Ou encrosta-se e granula
Como um doce em calda
Se calhar simplesmente pendura com umha carga pesada
Ou explode?

“Lenox Avenue Mural” do poeta Langston Hughes.

O Pai Tomás (Uncle Tom)

A escritora norteamericana branca Harriet Beecher Stowe foi a responsável da criaçom da personagem do pai Tomás, (Uncle Tom), no romance “A cabana do Pai Tomás”, ambientada na sociedade escravista norte-americana. O romance foi publicado em 1852 quando a escravidom era o fundamento de todas as relaçons do sistema no Sul norte-americano, e converteu-se, em poucos meses, no maior sucesso literário dos EEUU. O fenómeno é interessante na medida em que Harriet Beecher Stowe denunciava os horrores da escravatura, e o seu livro serviu como agitador de consciências para o movimento abolicionista branco. Mas sabemos, a experiência histórica demonstrou-no em todo tipo de contextos, que o abolicionismo nom exclui a consciência, mesmo interiorizada, do supremacismo. A figura do “pai Tomás” é neste sentido exemplar, e torna evidente aquilo que noutras situaçons pode parecer mais escuro. O romancista negro James Baldwin descreve com grande precisom este paradoxo: “o objetivo do romance de protesta é muito similar ao zelo daqueles missionários de alabastro enviados a África para cobrir a nudez dos nativos, apressá-los para chegar aos braços pálidos de Jesus, e polo tanto, à escravidom”.

Foi um supremacista declarado, Abraham Lincoln, quem liquidou o sistema da escravidom nos EEUU; o mesmo que, ante a presença de Harriet Beecher, exclama: “assim que foi você, a pequena mulher que escreveu o livro que provocou a grande guerra civil”. A aboliçom da escravatura é mais um capitulo da história dos brancos contada para e polos próprios brancos.

A aboliçom da escravatura é mais um capitulo da história dos brancos contada para e polos próprios brancos.

Foi Harriet Beecher quem construiu o arquétipo de mais sucesso na história da literatura universal, o pai Tomás, o “bom negro”, que sofre a humilhaçom, o espancamento, os tormentos, com abnegada resignaçom para com um destino apreendido como castigo divino. Já nos inícios do século XX, o pioneiro escritor e erudito negro, W.E.B. Du Bois, inaugura umha fecunda tradiçom de intelectuais negros empenhados em desterrar o mito dum povo sempre oscilante, na imaginaçom coletiva do branco, entre o arrebato selvagem e a disposiçom para a servidom. Du Bois servirá-se do magnífico legado herdado da tradiçom oral para reconstruir o caminho dum povo rebelde. Nos anos 60, Malcolm X, aplicará-se com dedicaçom na deconstruçom do arquétipo do “bom negro”, ligando a figura do pai Tomás com a do escravo doméstico, submisso e dócil com o amo: “se a casa do amo se incendiava, o preto doméstico lutava mais que o próprio amo para sufocar as lapas. Se o amo caía doente, o preto doméstico dizia: Que se passa, amo? Estamos doentes? Estamos doentes! Identificava-se com o amo mais do que o amo se identificava com ele mesmo”. Malcolm X contrapunha a atitude do escravo doméstico com a do escravo do campo, com o seu ódio indisimulado para com os brancos e a disposiçom para fugir à primeira oportunidade.

Já nos inícios do século XX, o pioneiro escritor e erudito negro, W.E.B. Du Bois, inaugura umha fecunda tradiçom de intelectuais negros empenhados em desterrar o mito dum povo sempre oscilante, na imaginaçom coletiva do branco, entre o arrebato selvagem e a disposiçom para a servidom.

Mas, entre as figuras de Du Bois que irrompe com o seu clássico “As almas do povo negro” em 1903, e os apelos revolucionários de Malcolm X nos princípios dos anos 60 do passado século, Richard Wright, um negro do campo, criado entre as plantaçons algodoeiras no Mississipi por descendentes de escravos submetidos à exploraçom e o racismo mais atroz, e com umha cultura e erudiçom autodidata, levantava ata de defunçom da figura do “Pai Tomás”, construindo ao mesmo tempo umha literatura descarnada e brilhante.

Os filhos do pai Tomás

Som os anos trinta do século XX e no Sul dos EEUU a segregaçom racial, o linchamento e o assassinato conformam a paisagem dum dia qualquer para o povo negro. Neste contexto, Richard Wright publica em 1938 o conjunto de relatos “Os filhos do Pai Tomás”, ambientados na paisagem de fundo da sociedade sulista dos EEUU. A referência no título ao (uncle Tom) de Stowe nom é gratuita; como em “A cabana do Pai Tomás”, a violência é o fio condutor que liga os contos entre si. Nos contos de Richard Wright, o tormento, o calvário, e a tortura mais selvagem que sofrem os protagonistas negros polos brancos som expostos com detalhe mas, se a autora norte-americana esconde o sangue baixo a saia do puritanismo moral da sociedade branca, Richard Wright converte o sangue em tinta para defender-se do sentimentalismo, confiando nos sentidos a tarefa para provocar a emoçom, “o seu dorso repousava sobre um leito de fogo, as folhas e a erva marcavam-se como ferro em brasa, pondo-lhe a carne em ebuliçom”.

Som os anos trinta do século XX e no Sul dos EEUU a segregaçom racial, o linchamento e o assassinato conformam a paisagem dum dia qualquer para o povo negro. Neste contexto, Richard Wright publica em 1938 o conjunto de relatos “Os filhos do Pai Tomás”, ambientados na paisagem de fundo da sociedade sulista dos EEUU.

Ao contrário do que acontecia na literatura que James Baldwin chamava de protesto, o recurso da violência nos relatos de Wright nom procuram o compadecimento nem a compreensom dos brancos, nom procura a vitimizaçom dos seus protagonistas através da chantagem emocional que reduz aos oprimidos a umha categoria inferior. O tratamento da violência na obra de Wright confirma a contemporaneidade da mesma; o ar inquietante e desafiante da obra, mas ao mesmo tempo revelador, permanece hoje vigente. A sua leitura continua a ser incómoda numha sociedade que enfrenta a violência como espectadora através dum ecram. A violência ocorre aos outros, que som cifras estadísticas que se acumulam no jornal, espetáculo televisado de acontecimentos sem história, e quando o sangue salfire na porta, entom sobrecolhemo-nos polas forças insondáveis do mal. Contra esta concepçom da violência, expressada socialmente como medo patológico, campo sobre o que florescem a opressom e o fascismo, levanta-se “Os filhos do pai Tomás”, onde a violência atinge umha dimensom redentora, umha funçom catalisadora no caminho para a consciência política. Os seus relatos tomam a forma do canto espiritual, do gospel, da oraçom que contempla num verso o sofrimento de séculos de opresom, mas acaba derivando numha posta em acçom e, finalmente, numa tomada de posiçom.

Contra esta concepçom da violência, expressada socialmente como medo patológico, campo sobre o que florescem a opressom e o fascismo, levanta-se “Os filhos do pai Tomás”, onde a violência atinge umha dimensom redentora, umha funçom catalisadora no caminho para a consciência política.

Os cinco relatos de Os filhos do pai Tomás” descrevem o árduo caminho empreendido polo povo negro na adquisiçom dumha consciência política num contexto de violência extrema quotidiana, mas este caminho nom é percorrido mediante o percurso cronológico, senom através das vidas e experiências dos seus protagonistas expostos à violência racial.

Nos primeiros relatos, Wright aborda a luita pola própria sobrevivência às armadilhas que esconde o sistema racial. Em “Big Boy parte da casa”, texto que abre a compilaçom de contos, o encontro fatal entre o jovem Big Boy e os seus amigos com umha rapariga branca, leva Big Boy a umha odisseia para salvar a vida. Wright retrata aqui a paisagem de fundo da sociedade racista que anos depois tam bem caracterizou o escritor caribenho Frantz Fanon em “ Os condenados da terra” para o contexto da opressom colonial: “O colonizado está sempre alerta, decifrando dificilmente os múltiplos signos do mundo colonial, nunca sabe se passou ou nom do limite. Frente ao mundo determinado polo colonialista, o colonizado sempre se presume culpável, (espécie de maldiçom)”. Eis a terra que pisam os filhos do pai Tomas, se no mundo da escravidom os limites eram claros e os roles definidos, nos anos 30, o azar, a casualidade, podia fazer com que a cabeça dum negro pendura-se dumha árvore, ou o seu corpo servisse de combustível para prender umha enorme fogueira.

No mesmo parágrafo d’”Os condenados da Terra” Fanon exprime: “A primeira cousa que aprende o indígena é a pôr-se no seu lugar , a nom passar dos seus limites. Por isto os seus sonhos som sonhos musculares, sonhos de acçom, sonhos agressivos. Sonho que salto, que corro, que brinco. Sonho que sorrio às gargalhadas, que atravesso o rio dum salto”. Se literatura de Wright se pode considerar como o reflexo dos sonhos dos oprimidos, as palavras de Fanom justificariam esta afirmaçom; as personagens dos filhos do pai Tomás sonham com a acçom: Big Boy arrancou outra folha e mastigou-na. Se o pai lhe tivesse deixado trazer a espingarda! Ele podia liquidar toda a turba com umha espingarda! Olhou para baixo como se tivesse umha arma nas maos. Entom apontou-na a um home branco que avançava. Buuuuuum!… Entom toda a turba girava à sua volta, e ele disparava ao acaso, abatendo o maior número possível. Eles apanharam-no; mas Céus, ele teria feito também o seu trabalhinho. E os jornais diriam: antes de ser linchado um negro mata doze pessoas de entre a multidom!… sorriu ligeiramente. Nom seria mau de todo, pois nom? Afastando o jornal para longe, deitou de novo umha olhadela polos campos”; mas as personagens de Wright finalmente entram em acçom, enquanto a narraçom do escritor se volta ágil, nervosa e tensa, e como nas melhores páginas de suspense, a acçom precipita o rumo duns acontecimentos que já nom se podem parar. E no entanto, Wright é um escritor realista, a sua escrita apela para umha realidade sensível com o frio, o calor, a fome… “a sua frente sentiu o rio como umha mao fria no seu rosto”.

A luita pola sobrevivência é umha constante dos primeiros relatos, a violência nom se apresenta como um conflito ético, mas como a consequência dum fato em sim mesmo, mata-se para nom morrer e morre-se por nom matar. Também se mata e se morre pola dignidade e a honra mas aqui, dignidade e honra nom som entendidas como categorias morais em virtude dum novo arquétipo do “bom negro”, senom como o reflexo da realidade histórica e social que deve enfrentar o povo negro. Aquela realidade que vive o negro Silas, que ambiciona conquistar o mesmo status do branco, sacrificando a sua vida de trabalho orientada apenas para este fim. Silas acabará por imolar-se num tiroteio contra os brancos depois de a sua companheira confessar ter-se deitado com um branco, vendo assi destruída a ensonhaçom dumha respeitável vida de branco para ele. Sara, a companheira de Silas, que foi golpeada por ele e deitada fora da casa, exprime o fatalismo e a impotência para deter a vaga de violência mas também, a confusom que lhe provoca o sonho dumha boa vida: Sim, os brancos continuavam a matar negros e os negros continuavam a matar brancos, a pesar da esperança dos dias cintilantes, do desejo de noites escuras, da longa alegria dos campos de milho verde no Verao, e do sonho profundos dos céus grisalhos de Inverno… Ele seguia também essa longa enxurrada de sangue. Ele nom queria morrer. Sabia bem como detestava morrer pola maneira em que falara nisso. E, no entanto, ele seguia a antiga torrente de sangue, sabendo que ela nom tinha o mínimo significado. Seguia praguejando e lastimando-se. Mas, seguia-a. Com o olhar ausente, ela fitava a erva seca empoeirada. Fosse como fosse, homens brancos e negros, a terra e as casas, os campos de milho verde e os céus nublados, a alegria e os sonhos, todo isso fazia parte daquilo que tornava a vida bela. Sim, de umha maneira ou de outra, todas as coisas eram como os raios dumha roda de carroça lançada a toda a velocidade. Ela sentia isso profundamente. Sentia-o quando respirava e tinha a certeza quando olhava a volta. Mas nom sabia dizer por quê; nom podia identificar essa sensaçom e quando tentava pensar nisso todo se mesclava como o leite agitado com força, ou se lhe enrolava na garganta ou no peito como umha bola dura, dolorosa, como a que naquele momento sentia.”

Esta rebeliom individual, impulsiva e espontânea, vai desembocar no quarto relato, “Fogo e neblina”, para a tomada de consciência coletiva. A necessidade da libertaçom do povo negro é exprimida na voz do reverendo Taylor. O clérigo hesita da sua funçom como pastor na organizaçom dumha manifestaçom exigindo alimento para a populaçom negra esfomeada; a sua atitude está condicionada polo seu posicionamento de mediador entre os fieis negros e a autoridade branca, mas as circunstâncias obrigam ao reverendo tomar partido. A sua decisom de encabeçar a marcha só chega após ser linchado polos supremacistas, que procuram desta forma a retirada do campo de batalha do clérigo. No relato, Wright exprime já com claridade está funçom catalisadora da violência, paga pena ouvir o que o pastor dize a sua congregaçom minutos antes da marcha: “-Irmaos e Irmás , o motivo porque nada digem é que nom sabia que dizer. E se agora vos falo é porque já sei . Sei o que é preciso fazer! … Irmaos e irmás, eles chicotearam-me é fizeram-me invocar o nome de Deus em vam. Obrigárom-me a dizer as minhas oraçons, depois bateram-me e troçaram de mim! Bateram-me até que deixei de me lembrar de todo! Toda a noite passada estive deitado com as costas em sangue. E toda a madrugada me arrastei ao longo das ruas dos brancos. Irmaos, irmás, agora eu sei! Vi o sinal! Temos de marchar todos unidos! Conheço a vossa vida. Senti-a! É como o fogo que ontem à noite me queimou! É o sofrimento e o inferno! E nom podo suportar este fogo sozinho! Agora sei que devemos fazer! Deus enviou-me o Seu sinal! Agora é a nossa vez de agir!”. O reverendo Taylor encabeça finalmente a exitosa marcha e, no seu pensamento, ecoa umha oraçom, “a liberdade pertence aos fortes”.

Em “Estrela luminosa da manhá”, relato que fecha “Os filhos do pai Tomás“, Wright explora até o limite a ideia da redençom para o povo negro como consequência da nova atitude militante das novas geraçons. A protagonista, umha mulher negra criada num ambiente de resignaçom cristá, abandona a sua fe religiosa trocando-a pola fe na luita, inspirada no amor polos seus filhos: “Entom a mágoa baixou-lhe ao coraçom quando Johnny Boy e Sug avançaram pedindo as suas vidas. Ela procurara encher os olhos deles com a sua visom, mas eles passaram indiferentes. E ela chorou quando eles começaram a jactar-se da força que lhes era dada por umha nova e terrível visom. Mas ela tinha-os amado, tal como os amava hoje; sangrando, o seu coraçom seguiu-nos. E dia após dia, os filhos tinham apagado dos seus olhos sobressaltados a velha visom, e imagem por imagem tinham-lha substituído por outra, diferente, mas grande e bastante forte para a arrastar para a luz de outra graça. Os agravos e sofrimentos dos homens negros tomaram o lugar dele pregado na Cruz; e o ódio dos que queriam destruir a sua nova fe tinham-lhe estimulado um desejo de sentir quam profundamente a nova força que chegava”.

Richard Wright | Photo by Carl Van Vechten

Umha nova fe posta a prova a cada momento, mas renovada em cada desafio: “Algumha cousa dói dentro de si e lhe fazia sentir a intensidade do seu orgulho e liberdade; o seu coraçom virou-se para as horas mais amargas da sua vida, com palavras que os fizeram sentir que ela suportaria todo e ainda cerraria mais os dentes. A sua fe irrompera tam fortemente que a cegara”. Umha fe que leva a Tia Sue ser consequente até o final, “sorvida na sua força e na sua paz, nom sentia a sua carne arrefecer, arrefecer como a chuva que caía do céu invisível sobre a condenaçom da vida e sobre a morte que nunca morre”

Richard Wright

O próprio Richard Wright encarnou em vida os valores desta fe que renascia nos anos 30 da mao dumha nova geraçom do povo negro. Num outro romance clássico do autor, “Black Boy”, um texto autobiográfico no que explora a sua infância, publicado anos depois dos filhos do pai Tomás, exprime de modo exemplar a sensibilidade que nascia nestas novas geraçons negras: “Os brancos do Sul diziam que conheciam os negros, e eu era o que os brancos do sul chamavam negro. Bem, os brancos do Sul nunca me tinham conhecido, nunca tinham sabido o que eu pensava, o que eu sentia. Nunca cheguei a pensar que eu fosse um ser inferior em nenhum aspeto. E nem umha só palavra que tivesse ouvido nos lábios dos homens brancos do Sul teria feito hesitar realmente do valor da minha própria humanidade”.

Nos inícios dos anos 30 Wright afiliou-se ao Partido Comunista pois entendia a luita do povo negro como solidária com a luita de classes, mas no seu percurso militante sofreu marginalizaçom e ataques de militantes brancos (Wright foi atacado e quase linchado por trabalhadores brancos quando tentava participar numha mobilizaçom do 1º de Maio); estas agressons nom figérom recuar a sua determinaçom na defesa do movimento nacionalista negro. Finalmente, em finais dos anos 40 decide abandonar o P.C. em favor da luita polos direitos do povo negro e decepcionado polo racismo latente na organizaçom.

A acossa ao que foi submetido Richard Wright nom foi apenas por ser negro, também porque para a inteligência do Partido Comunista era inconcebível que um negro do campo, e quase sem estudos, escrevera algumhas das melhores páginas da literatura norte-americana. O racismo hoje, segue constituindo um alicerce do estado norte-americano, e explica a exclusom de Wright do seu canom literário, um canom que foi consagrando incluso os filhos mais irreverentes da naçom, mas nom tem um lugar para um negro do campo.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]