A diáspora galega em Portugal. O seu encobrimento e o seu descobrimento da mao de Fernando Assis Pacheco em “Trabalhos e Paixões de Benito Prada”

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“Sinto-me perdido nesta cidade onde ninguém pergunta quem sou”
Trabalhos e Paixões de Benito Prada. Fernando Assis Pacheco

O emigrante esquecido

Tanto do âmbito académico como do institucional, a emigraçom galega a Portugal foi amplamente ignorada como objeto de estudo para além de contadas excepçons. A diáspora galega às Américas que dá início em finais do século XIX e o seu reconhecimento como fenómeno central na construçom social e cultural do país, e o posterior encontro dumha bastíssima comunidade migratória com vultos significativos da intelectualidade empurradas para o exílio após o golpe fascista, viria ensombrecer a importância das vagas migratórias de galegos para Portugal que veio atingir o seu máximo apogeu com a mudança do século XVIII para o XIX. E no entanto, as dimensons colossais do êxodo americano nom parecem suficientes para justificar o esquecimento dum facto capital, como foi a emigraçom galega a Portugal, para compreender em toda a sua amplitude o fenómeno complexo que atravessa todas as esferas da vida social, cultural e económica da nossa naçom. Assim, a omissom pode ser vista também como resultado da estratégia dos poderes autonómicos que, desde a criaçom do estatuto e através dumha elite intelectual bem colocada nos organismos oficiais de elaboraçom do saber e nos médios generalistas da imprensa, teimárom na ocultaçom e a negaçom dos vínculos históricos, linguísticos e culturais dos povos galego e português. Promovido polos poderes públicos, o isolacionismo tem conseguido penetrar no seio da memória popular e os ecos da comunidade emigrante em Portugal parecem apagar-se do imaginário coletivo.

Os galegos no imaginário coletivo português

E no entanto, as fontes do outro lado do Minho que testemunham a deslocalizaçom massiva de galegos para Portugal som inúmeras. Assim nas colecçons de gravuras e estampas da vida urbana lisboeta características do século XIX, a imagem do galego aparece de modo recorrente em todas elas, “os galegos aparecem em todas estas coleções e em muitas outras, como elementos integrados e caracterizadores dos usos e costumes do povo da cidade, à par de outros tipos populares de igual modo pitorescos”, di-nos Carlos Consiglieri no prefácio do álbum satírico “Os Galegos”, obra de Rafael Bordalo Pinheiro pioneiro da caricatura no século XIX em Portugal. A escritora aristocrata descendente de Napoleom, Maria Rattazzi, escrevia em 1882 “em todas as esquinas das ruas de Lisboa deparam-se moços de fretes e recados e aguadeiros, oriundos da Galiza. Som montanheses robustos, pacientes, corajosos que não se recusam a nenhum trabalho penoso a troco de algumas moedas de cobre, aumentando assim o seu pequeno tesouro que vão mandando à sua terra natal”. Mais significativa ainda, da dimensom que alcançou a diáspora galega em Portugal, é a cita tirada da História de Portugal, obra do historiador e escritor Alexandre Herculano, figura essencial do romantismo português, ”a presença dos serviçais galegos tornou-se de tal forma indispensável que, quando em 1801, se pretendeu expulsar os galegos em razão da guerra, não se fez, porque o Intendente Geral da Polícia representou que, se se mandassem embora, não haveria quem servisse a cidade de Lisboa e Porto”.

Assim nas colecçons de gravuras e estampas da vida urbana lisboeta características do século XIX, a imagem do galego aparece de modo recorrente em todas elas, “os galegos aparecem em todas estas coleções e em muitas outras, como elementos integrados e caracterizadores dos usos e costumes do povo da cidade, à par de outros tipos populares de igual modo pitorescos”, di-nos Carlos Consiglieri no prefácio do álbum satírico “Os Galegos”, obra de Rafael Bordalo Pinheiro pioneiro da caricatura no século XIX em Portugal.

“em todas as esquinas das ruas de Lisboa deparam-se moços de fretes e recados e aguadeiros, oriundos da Galiza. Som montanheses robustos, pacientes, corajosos que não se recusam a nenhum trabalho penoso a troco de algumas moedas de cobre, aumentando assim o seu pequeno tesouro que vão mandando à sua terra natal”

No “Tableau de Lisbonne” de Nicolau Tolentino de Almeida editado em 1801 cifram-se para finais do século XVIII mais de 80000 galegos dos quais 60000 ficariam assentados em Lisboa, e dados mais atuais colocam até mais de 100000 galegos em Portugal no começo do século XIX. Esta leva de galegos respondia à demanda de mao de obra de Lisboa convertida em grande metrópole após a descoberta do ouro brasileiro. O crescimento da cidade registado no século XVIII exigiu resolver os problemas urbanísticos associados à sua expansom, tal como o abastecimento de água pois, embora o Aqueduto de Lisboa tivesse começado as suas obras no ano 1731, ainda tardaria mais de cem anos em garantir o subministro da água nos domicílios. Esta tarefa corresponderia assim aos aguadores, entre os quais a maior parte deles eram galegos que combinavam esta atividade com a de moço de fretes e em geral, todo tipo de trabalhos penosos e nom qualificados polos que recebiam rendas de miséria. Ainda encontramos também fontes documentais que dam conta da presença de trabalhadores galegos qualificados nas obras de reconstruçom da Lisboa arrasada polo grande terramoto de 1755 e dirigidas polo Marques de Pombal, que precisou do trabalho de canteiros e alvanéis vindos na sua maioria da província de Pontevedra. Porém, o retrato fixado por estas mesmas fontes nom fai diferenças quanto à construçom no imaginário coletivo português da identidade subalterna dos emigrantes galegos, que oscila, como é comum em todas as narrativas que justificam a dominaçom, entre o retrato amável e paternal que exalta as qualidades do galego como trabalhador abnegado e com disposiçom para a servidom, e o galego ruim, avarento e incivilizado, vindo constituir, em ambos casos, dous lados da mesma moeda. Ainda hoje, no Priberam, o dicionário português online mais consultado na Internet, numha das acepçons da palavra galego achamos esta definiçom: “homem grosseiro, malcriado e rude” , ultrapassando assim a consideraçom territorial ou de origens da identidade a que remite o próprio termo, assim explica Jorge Fernandes Albes a origem social do termo: “o galego constitui um tipo social em Portugal que ultrapassa uma identidade regional para se plasmar num estilo de vida – os galegos são homens do Norte, trabalhadores e dedicados à poupança, que raramente se radicam em definitivo nos lugares do sul e que mostram sempre ansiedade pelo regresso. Daí que, para a voz pública, os galegos de Lisboa não sejam só os originários da Galiza, mas também os da outra margem do Minho, de nacionalidade portuguesa, de acordo com representações colectivas muito disseminadas”

No “Tableau de Lisbonne” de Nicolau Tolentino de Almeida editado em 1801 cifram-se para finais do século XVIII mais de 80000 galegos dos quais 60000 ficariam assentados em Lisboa, e dados mais atuais colocam até mais de 100000 galegos em Portugal no começo do século XIX.

Mas, para além da construçom social da imagem de galego difundida polos sectores privilegiados da sociedade portuguesa, o certo é que a emigraçom galega, com os seus costumes e tradiçons comunitárias importadas da Terra, integrou-se com naturalidade na vida e o quotidiano das classes populares portuguesas incorporando práticas, hábitos e incluso léxico ao património cultural e popular português e cuja pegada ainda se pode rastejar na atualidade. É o caso da romaria de Santo Amaro, em Lisboa, da qual nos conta nas suas Memórias o conde de Mafra: “A 15 de Janeiro, dia de Santo Amaro, é que se fazia a festa e romaria dos galegos residentes em Lisboa, vinham aos grupos e à frente deles os tradicionais gaiteiros, os homens do tamboril, do redobrante e o do zambumba. Em todos os domingos de Janeiro começava logo a ouvir-se o zambumba acompanhado pelo tambor e pelo gaiteiro.”

Fernando Assis Pacheco. Poeta, jornalista, e portugalego

Se alguém houve com um conhecimento profundo da cultura popular portuguesa, esse foi Fernando Assis Pacheco, o poeta e jornalista nascido em Coimbra no ano 1937.

Se alguém houve com um conhecimento profundo da cultura popular portuguesa, esse foi Fernando Assis Pacheco, o poeta e jornalista nascido em Coimbra no ano 1937. Assis Pacheco exerceu com paixom como jornalista no Diário de Lisboa e no República, e para além de cultivar todos os géneros possíveis: desportos, crítica literária, sátira e humor, o Pacheco ganhou o reconhecimento no meio com as suas crónicas da vida quotidiana das classes populares lisboetas, indo à sua procura nos bairros mais humildes da cidade. Como bem di Nuno Costa Santos “as suas personagens não eram os homens públicos. Eram as pessoas de apelido simples e coração anónimo. Não as tratava à maneira heroica do neo-realismo. Fazia-as falar e respirar, consagrando-as jornalisticamente e dando-lhes desta forma a dignidade que achava merecem”. Das camadas populares tirou Assis Pacheco os seus gestos, os seus hábitos, as suas linguagens, as suas espectativas, mas também as suas misérias para plasmá-las nas suas instantâneas urbanas, às vezes em simples e breve notas de imprensa convertidas em golpes emocionais, como o relato do suicídio dum operário de 34 anos: “Morava ali mesmo e sucumbiu –dizem as autoridades sanitárias – a asfixia. Quis um sábado para morrer na extrema solidão de si próprio.”

De toda a diversidade cultural tecida polas camadas populares, com os seus distintos códigos e calons, nom passou por alto, Fernando Assis Pacheco, o fundo substrato galego na cultura popular lisboeta, e até porque ele próprio foi neto de emigrante estabelecido em Coimbra e casado com umha portuguesa. Estás ligaçons atrelaram–no de por vida à Galiza nom perdendo nunca a oportunidade de apresentar-se como “portugalego”, e conformam aliás, a base sobre a que se sustenta Trabalhos e Paixões de Benito Prada, a obra escrita de ficçom mais comovente sobre a emigraçom galega e umha cima da narrativa escrita em Português, que nom desmerece um lugar relevante no universo de livros que escolheram como protagonista a figura do emigrante na história da literatura universal. Publicada em 1994 a obra narra a sequência das peripécias de Benito Prada, desde o seu nascimento no seio dumha família pobre na aldeia fictícia de Casdemundo, localizada na província de Ourense no trânsito do século XIX para o convulso século XX, as primeiras incursons a Portugal fazendo parte da banda de crianças e adolescentes que atravessam a raia para mendigar e ladroar nas feiras, as penalidades e os sofrimentos da vida do emigrante, até o ascenso e a integraçom nas esferas “respeitáveis” da sociedade portuguesa, mas sempre arrastando a sombra que se abate sobre o emigrante, cuja condiçom se impom através da memória e o recordo, da família, dos amigos e da terra deixadas para atrás, terra consumida aliás, pola voragem militar provocada polo levantamento fascista.

Crónica dum emigrante

O título de Trabalhos e Paixões de Benito Prada vem acompanhado dumha legenda que acrescenta “Galego da província de Ourense, que veio a Portugal ganhar a vida”, revelando já desde o início a paixão jornalística de Assis Pacheco e umha vida dedicada com esmero a contar histórias em forma de crónica. A narraçom das peripécias de emigrante de Benito Prada coincide com a ordem natural dos tempos, mas da mao das experiências de Benito, Assis Pacheco desenha quadros sobre as mais diversas questons, o universo particular do mundo rural galego, a divisom social entre os futricas representados polas classes populares, e os doutores representados polos estudantes, académicos e altos funcionários do estado, e a sua correspondência com a estratificaçom urbana da cidade de Coimbra, a decadência e a morte de ofícios tradicionais como o de afiador, e mesmo perfis biográficos de personalidades políticas, como na passagem em que, com breves traços e um humor mordaz, ilustra a personalidade de Salazar a partir dumha descriçom dos seus anos de estudante: “Jorge Galo babava-se de gozo ao descrever-lhe os passeios a dois com o padre Cerejeira, lente de Letras, toucados ambos por grandes umbelas negras, indiferentes às saudações dos estudantes, hirtos, enfáticos, lutuosos, como se pertencessem a um mundo de estatutária encardida pela chuva e pelo vento; nenhum deles fora jamais visto a rir, ocultos que andavam sob as suas máscaras de pele curtida, lisa e sem rugas. Também se falava de uma estranha familiaridade com a governanta, que acompanharia o dr. Salazar em Lisboa até ao fim da sua capacidade terrena. Nesse entretanto, podendo as amizades o que tantas vezes não podem as preces mais ardidas, o padre chegara a cardeal. Estava garantida a dupla angélica para muito tempo.”

Mas estes quadros adquirem um sentido completo no tránsito que percorre Benito da Galiza, como criança no seio dumha comunidade empobrecida, para Portugal na procura de melhores condiçons de vida, e no sentido inverso, de Portugal como comerciante com loja própria, para a Galiza, mas sob a condiçom eterna de emigrado. Trabalhos e Paixões de Benito Prada é a vida do emigrante galego, mas é também a transformaçom dum mundo rural galego em declínio até ficar devastado pola violência fascista, assim como o convulso caminho de transiçom empreendido por Portugal dum liberalismo consolidado na proclamaçom da República de 1910 até desembocar num regime autoritário e de corte fascista.

Trabalhos e Paixões de Benito Prada é a vida do emigrante galego, mas é também a transformaçom dum mundo rural galego em declínio até ficar devastado pola violência fascista, assim como o convulso caminho de transiçom empreendido por Portugal dum liberalismo consolidado na proclamaçom da República de 1910 até desembocar num regime autoritário e de corte fascista.

Em todo romance sai a reluzir o temperamento jornalístico de Assis, no rigoroso trabalho documental, na presença omnipresente da imprensa, “Benito Prada soube do levantamento por Jorge Galo, que lhe leu ao telefone a novidade estampada no Diário de Coimbra”, ou no relato detalhado dos pormenores, prestando atençom aos nomes particulares dos estabelecimentos e das ruas que pisa Benito, das prendas que vestem as personagens, dos distintos sotaques e linguagens desde o português requintado dos doutores em Coimbra até o calom dos afiadores… Mençom à parte merece a descriçom detalhada de cada prato e cada garrafa de vinho identificada pola sua marca ou origem, tema recorrente que se repete no decurso de toda a trama e que emparenta Trabalhos e Paixões com as literaturas onde a fame se impom no decurso da narraçom. Deste modo, as refeiçons cumprem aqui um papel significativo dentro do livro, onde a posiçom social do emigrante se materializa na mesa do jantar, mas também como plasmaçom da diversidade e riqueza cultural dos povos: “O galego almoçava a frio de um tacho que trazia do quarto em Santa Clara, fechando a porta do estabelecimento por não ser surpreendido. Como levasse a poupança ao exagero, as sobras serviam-lhe de ceia. De tempos a tempos, um domingo por outro, metia-se no elétrico e subia até Santo António dos Olivais, onde ia enganar a solidão de emigrante ao Agostinho, cuja especialidade era a chanfana de cabra velha cozinhada em vinho carrascão. Fome e mau comer tinham-no perseguido desde a Galiza e fora da Galiza, e só no tempo de feirante ganhou o gosto pelas refeições a horas, bem regadas, não raro em companhia do Grego, que era sócio com o dr. António Santiago de uma marinha que estava a peixe e nunca se esqueceu de partilhar com ele as canastras de enguias, mandadas fritar em alho e pimentão à moda dos almocreves”.

Trabalhos e Paixões

Mas nom nos deixemos enganar pola querência profissional de Assis Pacheco, Trabalhos e Paixões nom é jornalismo literário ao estilo Truman Capote em A sangue frio, no romance convivem tradiçons narrativas vindas de longe no tempo como a picaresca, ou a influência do estilo muito pessoal dentro do romantismo português de Camilo Castelo Branco, de facto como em muitas obras do clássico português, Assis recorre aos géneros para brincar com eles, hibridando estilos, enfrentando a sátira com o costumbrismo, o realismo com o lirismo, alentado por um humor afiado que pode tornar o cómico em trágico e o trágico em hilariante. Este jogo constante percebe-se já no início, sendo a apertura de Trabalhos e Paixões de Benito Prada um dos começos mais impactantes na história da literatura lusófona, onde o motivo escabroso vira numha cena paródica que remite e troça com o tremendismo castiço bem representado por “La família de Pascual Duarte” de Camilo José Cela, onde a pulsom atávica governa os atos brutais de personagens predestinadas polo determinismo social a umha vida de violência quase gratuita:

“Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de San Bartolomé. O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao morto. O Padeiro Velho amanhou-o e depois chamuscou-o bem chamuscado. Às duas da manhã untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado. «Caramba», disse o irmão do meio, que admirava todas as invenções do mais velho, «é à segoviana!» «Mas não lhe pões o dente», cortou o outro. Entretanto o mais novo, regressado já do Pereiro, aonde fora avisar o Padre Mestre, manifestou desejos de capar Manolo Cabra. O do meio olhou muito sério para o Padeiro Velho. Este cuspiu enojado e decretou: «É tudo para os cães. E agora tragam-me lá a roupa do fiel defunto, que já não tem préstimo senão no inferno»”

O jogo e o desfrute na escrita de Assis Pacheco atenua a gravidade dos factos, desterrando a seriedade académica e as tentaçons épicas das que Assis Pacheco foge como do diabo, ganhando assim o texto, paradoxalmente, em profundidade emocional. Assim se pronuncia a personagem do dr. Maia Júnior, amigo do Benito Prada, grande conhecedor da obra do Padre Feijóo e de ascendência aristocrática mas que renuncia à sua cátedra como desafio ao regime do Estado Novo, censurando a retórica do próprio narrador, “Mas não pensava nisso. Tinha desde há semanas um pressentimento como um óleo viscoso na garganta, um pisar imperceptível de patas de aranha, qualquer coisa que ameaçava golpeá-lo a todo o instante. Se perguntasse ao velho professor de Propedêutica, este responderia talvez: «Gasta-se muita literatura a falar do medo».”

Assis Pacheco pom na voz do dr Maia Júnior a sua antipatia e aversom polo mundo estudantil e académico de Coimbra com o humor que o caracteriza, “«Posso bem com a universidade, as baratas das estantes é que me enervam»”

A língua e as falas

Impelido por este espírito revoltoso e lúdico, mas também comprometido na exaltaçom da diversidade cultural e linguística aprendida da observaçom das classes populares, Assis Pacheco nom hesita em hibridar a língua portuguesa literária e culta, absorvida compulsivamente na sua voracidade leitora, com o galego, o baralhete que é o calom dos afiadores galegos, coloquialismos brejeiros, expressons sacrílegas… fazendo de Trabalhos e Paixões umha sinfonia de vozes e músicas que mostram umha riqueza desarmadora frente aos prejuízos e a uniformidade do formalismo literário. Ele mesmo explica numha entrevista este facto: “ Nas notas preparativas da empreitada estavam duas intenções: escrever um romance camiliano no ambiente e fazer uso de uma língua impura, portuguesa, mas ‘corrompida’ pelo galego – o ‘galego de andar por casa, o galego urbano, e o galego rural da aldeia do avô”. “A alegria podia ser Benito Prada, que falava três línguas numa só” di-nos a certa altura do romance o narrador. No que di respeito das referências constantes da língua galega no texto é importante destacar o esclarecimento que sobre o seu uso fai o professor Elias Torres, “O galego de Casdemundo circula por Portugal com um (mal) português, mas sempre que se informa (em muitas ocasions) da sua maneira de falar alude-se ao seu sotaque, ou entom ao seu ‘falar ourensano’, nunca o galego aparecendo como língua diferente da portuguesa”.

“O galego de Casdemundo circula por Portugal com um (mal) português, mas sempre que se informa (em muitas ocasions) da sua maneira de falar alude-se ao seu sotaque, ou entom ao seu ‘falar ourensano’, nunca o galego aparecendo como língua diferente da portuguesa”.

 

Trabalhos e Paixões de Benito Prada funde, portanto, o rigor documental e o estilo jornalístico com a tradiçom literária e o exercício narrativo, mesturando com esmero e gozo ingredientes muitas vezes incompatíveis, sem afectar porém, à naturalidade e à sensaçom de espontaneidade do percurso narrativo, a resposta ao segredo da equaçom haveria que procurá-la no carácter do próprio autor que responde assim à pergunta banal dumha entrevista concedida em 1978:

-Consideras-te deprimido, introvertido, extrovertido, calmo, fogoso? A que signo pertences? Dás-lhe importância?

– A partir do fim: Sou aquário, mas não ligo peva. Sou todos os adjetivos da pergunta, mas também inteligente, esquizoide, reinadio, arrebatado, ponderado e extravagante, embora à vez, para não chatear o indígena.

Benito Prada, um nome para o emigrante

Assis Pacheco apenas se aventuraria mais nos meandros do romance, mas nom esqueceu para este livro o princípio que regeu o seu trabalho desde os seus anos moços no Diário de Lisboa, e que repetia para qualquer jovem que quiser andar no ofício, “nunca se esquecer de que, antes de qualquer texto, devia estar implícita a expressão, -escrevi para te dizer que-. O importante é ter sempre presente que o objetivo é contar alguma coisa a alguém”.

Finalmente, e depois de todo o dito, o livro de Assis Pacheco deixa-se ler como a história dum emigrante galego, cujas penalidades, aventuras e amores fam acelerar o coraçom até “dar um nó nas tripas do leitor”, como bem assinalou o escritor brasileiro Jorge Amado. Ficam também para a lembrança um punhado de personagens inesquecíveis, como o nomeado doutor Maia Júnior, ou o Padre Oyarbide, desterrado polo arcebispado de Euskadi, e que fornece a Benito umha mínima instruçom, fuzilado finalmente polo regime fascista, ou o Padre Mestre, tio vadio de Benito e o único na família que sabe juntar algumha letra, privilégio que o coloca numha posiçom avantajada, próxima da categoria de cacique, e tantos outros e outras que escarnecidas ou nom polo talento satírico de Assis, som merecedores da ternura e a dedicaçom do seu autor. E sempre e finalmente Benito Prada, o emigrante galego, ao qual, num exercício de justiça histórica, o escritor lhe concede um nome, umha história, para restaurar a dignidade do emigrante tantas vezes maltratada.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]