Por regra geral, as ideias por si sós, nom significam grande cousa para mim. Eu tenho que ver.
É novembro de 1918 e o editor Max Eastman encontra-se numha rua de New York com John Reed, a quem mal reconhece polo seu aspeto desmazelado. Sem tempo para o editor pronunciar umha palavra, Reed já se perdia num labirinto de ruas depois de adverti-lo sobre o seu último projeto: “Por favor Max, nom lhe digas a ninguém onde estou. Escrevo a revoluçom russa num livro. Escrevo dia e noite. Trinta seis horas seguidas, e já tenho o título. Agora necessito café! Até logo, nom lho digas a ninguém”.
O título da obra é Dez dias que abalaram o mundo, o testemunho de Reed sobre a revoluçom russa, um clássico da literatura revolucionária e pioneira do jornalismo moderno. A anedota do encontro de Reed com o editor norte-americano exemplifica com precisom o carácter febril e apaixonado do jovem jornalista e revolucionário, que converteu o seu trabalho e compromisso num modo de vida espremido para além dos limites, se calhar intuindo a sua própria morte prematura, (morreu com 33 anos em Moscovo, onde foi sepultado polos bolcheviques recebendo honores de estado).
Mas Reed, antes de escrever a “epopeia da revoluçom russa” em palavras de Nadia Krúpskaya, já tinha transformado radicalmente o padrom literário do jornalismo, atacando todos os formalismos que se tinham convertido em norma obrigada para um ofício inteiramente transformado em indústria da comunicaçom e o entretenimento, e posto ao serviço dos interesses políticos e económicos da oligarquia financeira, aquela que tam bem representa o magnate William Randolf Herst, proprietário de 28 cabeçalhos de jornais diários, cuja figura foi imortalizada no cinema como Cidadao Kane por Orsom Wells. Quando em 1910 explode a revoluçom mexicana que pom fim à ditadura de Porfirio Diaz, a maquinária mediática norte-americana já esta bem engraxada para alertar a opiniom pública sobre o perigo que representa, para os seus interesses, a rebeliom mexicana; legitimando assim, sob o recurso do estereótipo racial e a xenofobia integral da elite branca norte-americana, a política intervencionista do presidente Wilsom em apoio dos federais, o exército regular mexicano baixo as ordens do General Huerta que restabeleceu a ditadura através dum golpe de Estado.
No coraçom do conflito
Três anos depois do estalido revolucionário, no ponto álgido da contenda, com o exército de Pancho Villa libertando o território dos herdeiros de Porfírio Diaz, o jovem John Reed atravessa o rio Bravo como repórter do Metropolitan Magazine, com o objetivo de acompanhar as tropas rebeldes na despiedada e desigual guerra que libravam contra a velha aristocracia colonial e latifundiária de origem espanhola, a casta mestiça funcionarial e os interesses das grandes companhias britânicas e norteamericanas. “México Insurgente” que reúne as crónicas de John Reed sobre a revoluçom mexicana para completar umha das mais emocionantes obras literárias, começa neste ponto. “Para a fronteira” é a introduçom de John Reed que abre o livro transportando-nos de cheio ao conflito, através da descriçom da paisagem fronteiriça e das personagens que a habitam em tempos de guerra, partindo do seu particular estilo definido polo emprego da primeira pessoa que é expressom da subjetividade da experiência antes do que introspeçom pessoal, um “eu” que se irá transformando num “nós” a medida que avança a obra. Neste cenário os soldados federais tentavam passar para Texas fugindo das temíveis ofensivas de Villa; “Nessa altura, eu já estava bem dentro de México, cavalgando através do deserto com umha centena de farrapentos soldados constitucionalistas caminho para o frente” .
A partir deste momento, nos sucessivos capítulos que constituem a obra, Reed mergulha-se na vida do exército rebelde, desde as tropas anárquicas e indisciplinadas compostas por ex-bandidos ao mando do General Urbina, até as forças de jornaleiros agrícolas encabeçadas por Pancho Villa, confundindo-se na massa de deserdados como um mais, passando as mesmas penalidades, partilhando as mesmas alegrias, correndo os mesmos riscos, para tirar da experiência o máximo rendimento possível como escritor e repórter, mas também como revolucionário.
Reed mergulha-se na vida do exército rebelde, desde as tropas anárquicas e indisciplinadas compostas por ex-bandidos ao mando do General Urbina, até as forças de jornaleiros agrícolas encabeçadas por Pancho Villa, confundindo-se na massa de deserdados como um mais.
Esta capacidade de Reed para empapar-se da experiência das próprias vivências irá conformando o seu caráter que, finalmente, se corresponderá com um estilo estético e de vida, assim como umha arma para o seu ofício jornalístico; algo parecido com a vocaçom da jornalista Marta Rojas, a quem dedicamos o primeiro texto desta série do “livro de estilo”; de facto, a pegada de Reed fica bem marcada no extraordinário O Julgamento da Moncada. Na sua estadia no bairro de Greenwich Village em Manhattan, Reed cultivou a amizade com notáveis das letras como o dramaturgo Eugene O´Neill, o escritor socialista Upton Sinclair, ou com a revolucionária anarquista Emma Goldman entre outras. Reed viveu tempos de ecleticismo no desairado cenário da intelectualidade dissidente norte-americana de começos do século XX, e esta influência heterodoxa ficará impressa no seu repertório particular: dedicaçom e rigor para o trabalho, extraordinária qualidade literária, espírito libertário e crítico, compromisso comunista (durante a sua breve mas intensa vida, deu com os seu ossos em prissons americanas em mais de vinte ocasions, participando também na criaçom do primeiro partido comunista nos EEUU).
Na sua estadia no bairro de Greenwich Village em Manhattan, Reed cultivou a amizade com notáveis das letras como o dramaturgo Eugene O´Neill, o escritor socialista Upton Sinclair, ou com a revolucionária anarquista Emma Goldman entre outras.
Mas o ambiente de boémia do Greenwich Village ficava reduzido demais para um Reed em disposiçom permanente de passar a açom, e o céu aberto do deserto mexicano deu-lhe a oportunidade de exprimir todos os recursos que o converteriam em pioneiro da narrativa jornalística moderna. “Andávamos umha terra silenciosa, encantada, que parecia um reino submarino. Era umha terra para amar-se –este México- umha terra para luitar por ela. Amo México, e amo os Mexicanos”.
O certo é que Reed, em México Insurgente, pateou com sanha as leiçons aprendidas na universidade de Harvard ao involucrar-se de cheio no conflito, nom apenas ideologicamente mas também emocionalmente, tecendo amizades sólidas com os farrapentos jornaleiros rebeldes. A sua imersom pessoal no conflito coloca o leitor no interior mesmo da guerra relatada com todos os detalhes; é a suma dos episódios, das crónicas de distintas jornadas, que fornece umha panorâmica global da revoluçom. Neste caminho, que transcorre através de instantes recolhidos no momento em que se sucedem, a natureza verdadeira do conflito irá tomando corpo, e durante este percurso Reed fai emprego de todos os recursos para manifestar, em toda a sua profundidade, a luita dos deserdados pola possessom plena da terra.
Um estilo próprio para dinamitar as convençons académicas
Embora a época dourada do cinema ficasse ainda longe, é fácil reconhecer na escrita de John Reed o facto de este, ter intuído a importância das técnicas narrativas cinematográficas na construçom dumha nova categoria cultural de modernidade. Alguns dos seus achádegos na escrita podem ser vistos como manifestaçons características do cinema: a estrutura fragmentada das suas crónicas; a narraçom de marcado estilo impressionista e sensorial: “De súbito descobrim que tinha ouvido tiros desde havia já um bocado. O som parecia vir de muito longe, muito parecido com o Tic Tac dumha máquina de escrever, ao concentrarmos a atençom pareceu aumentar. O pequeno e trivial ruído cresceu até se converter em cousa séria. Já era quase contínuo no frente, como o incessante redobrar dum tambor de guerra”; os planos sequência trepidantes e os frequentes impactos sonoros e visuais nom fam senom corroborar esta impressom fílmica: “ Podíamos vê-los agora; centenares de pequenas figuras montadas, através do mato; o deserto formiguejava delas, até nós chegavam os seus alaridos de índios selvagens. Umha bala zumbou sobre nós, depois outra; a seguir umha direta, viva, e depois toda umha bateria delas que soavam terroríficas, voavam os pedaços de barro das paredes de adobe tocadas polas balas. Os jornaleiros e as mulheres corriam de casa em casa aturdidos polo medo. Um soldado com a cara enegrecida pola pólvora, o rancor assassino pintado nela assim como o terror, passou ao galope e berrou que todo estava perdido”.
Reed servia-se dum amplo leque de técnicas que combinava com a perícia da montagem fílmica dum Eisestein, ou do western crepuscular de John Ford, antecipando assim umha nova forma de expressom, que recorria à dialética do plano contra plano para capturar a complexidade do real. O estilo rompedor de Reed permite-lhe transitar da atençom ao detalhe para a panorâmica global; representar as aspiraçons coletivas e as condiçons miseráveis de vida do povo mexicano e ao mesmo tempo retratar jornaleiros e soldados a partir dos seus gestos particulares e as suas personalidades únicas; transcrever o horror da guerra e, à sua vez, mostrar o fascínio e a beleza da rebeliom; denunciar a situaçom de submissom da mulher na cultura mexicana: “O símbolo do norte de México é umha caravana interminável de mulheres aguadoras”, e ao mesmo tempo revelar os interesses particulares de mulheres rebeldes em tempos de guerra: “Beatriz saltando da mesa começou a dançar puxando dos cabelos aos comensais. –Olá gringo condenado, que estás a fazer aqui? Vais ser o recipiente dumha bala se nom tomas conta! Um jovem mexicano de muito mal humor, já um bocado ébrio, dirigiu-se furioso para ela. –Nom lhe fales, percebes?, Direi-lhe a Trinidade que convidaste o gringo para almorçar, e fará com que te fuzilem. Beatriz deitou a cabeça para trás e riu às gargalhadas. –Ouvirom o que está a dizer, porque estivo umha vez em Juarez comigo acha que som da sua propriedade. –Olha Beatriz, interpelei-na, poida que a cousa nom acabe bem. Que farias se nos capturassem? –Quem eu? Exclamou, acho que nom tardaria em fazer amigos entre os federais!, som muito boa para fazer misturas!”; os magníficos retratos de Pancho Villa e Venustiano Carranza descrevem também as contradiçons do México revolucionário. O primeiro simbolizando a heroicidade e aspiraçons de jornaleiros e indígenas: “ -Quando se estabeleça a nova república nom haverá mais exército em México. Os exércitos som os mais grandes valedores da ditadura. Nom pode haver ditador sem exército” ; e o segundo como representante das elites de estado envolvidas no processo revolucionário em defesa dos seus interesses particulares de classe, “Ao acostumar-se os nossos olhos à luz, vimos a gigantesca figura, vestida de uniforme, de Venustiano Carranza, sentado no seu grande cadeirom. Havia algo estranho no modo em que ele estava, como se alguém o tivesse colocado lá advertindo para ele nom mover-se. Parecia nom pensar, nem ter estado trabalhando, nom podia imaginá-lo a trabalhar naquela mesa. Dava a impressom dum corpo imenso, inerte: umha estátua!” .
Reed servia-se dum amplo leque de técnicas que combinava com a perícia da montagem fílmica dum Eisestein, ou do western crepuscular de John Ford, antecipando assim umha nova forma de expressom, que recorria à dialética do plano contra plano para capturar a complexidade do real. O estilo rompedor de Reed permite-lhe transitar da atençom ao detalhe para a panorâmica global
A qualidade literária de Reed consegue finalmente integrar todo este arsenal dialético de forma natural, sem artifícios, deitando fora da equaçom qualquer exibiçom virtuosa, fazendo conviver umha narrativa ágil e fluida, e também crua e dura, com o alento poético que atravessa toda a obra, mas que alcança o seu apogeu nas passagens contemplativas da natureza, como trânsito da calma para a açom: “O sol luminoso ocultou-se por trás das dentadas montanhas purpúreas frente a nós, estendendo o seu fulgor, por uns momentos, como um leque de luz oscilante no arco celeste do puríssimo firmamento. Os pássaros davam sinais de vida nas árvores; as folhas murmuravam a sua eterna cançom. A terra fecunda exalava um nevoeiro perlado. Umha dúzia de soldados farrapentos, que jaziam tendidos, juntos, começárom a improvisar a música e a letra dumha cançom sobre a toma de Torreom; nascia um novo corrido… Chegavam até nós, com o tranquilo e frio crepúsculo, os ecos doutras cançons. Eu sentia todo o meu ser conquistado por aquelas gentes aprazíveis, jornaleiros singelos que eram tam amáveis.”
O compromisso com a verdade
Mas o que reslumbra em Reed e no México insurgente, vai para além do seu modernismo estético, ou mais bem, parelho a ele. A paisagem natural está sempre presente, nom apenas como cenário onde se desenvolve a revoluçom, aliás como organismo vivo onde se fundem os corpos e os ânimos do povo mexicano, “é impossível imaginar o perto que vivem da natureza os jornaleiros nessas grandes fazendas. As suas próprias casas estám construídas da terra que pisam, calcinada polo sol. O seu alimento é o milho que cultivam, o que bebem é a água que corre polo rio que se esgota, transportada dolorosamente sobre as suas cabeças; as roupas que usam, tecidas de lá, e os seus huaraches, de pele de novelo recém sacrificado. Os animais som os seus constantes companheiros, familiares nas suas casas. A luz e a oscuridom som o seu dia e a noite”. Esta compreensom da natureza como o centro da cultura tradicional e coletiva das classes populares mexicanas permite a Reed olhar a revoluçom à luz dos ideais do povo, superando os preconceitos para com umha sociedade maioritariamente analfabeta, restituindo no relato a dignidade dos deserdados da terra. Assim, México Insurgente fai-se eco do potencial revolucionário da cultura popular transmitida de forma oral através dos corridos e as músicas cujas letras sarapintam a narraçom de Reed, das observaçons sobre o quotidiano, do humor espontâneo, etc. para oferecer-nos o relato do povo exprimindo-se através das suas próprias manifestaçons culturais.
Embora podamos ler México Insurgente como um desafio, ou mesmo como um interrogante sobre os limites que encerra o género jornalístico, porém, Reed leva a sério o compromisso jornalístico com a verdade, e por cima da sua inquestionável qualidade literária, nom abandona nunca a sua teima para dar conta, no instante em que se sucede, do verdadeiro motivo revolucionário, interrogando e dando voz, em todo momento, aos atores principais do drama, invisíveis para as narrativas contemporâneas: “O velho tiritou de frio e aproximou o seu gastado corpo mais perto do lume. –Pensei com frequência –dixosuavemente- porque os ricos tendo tanto querem mais. Os pobres que nom tenhem nada, querem só tam pouco! Apenas umhas cabras…”
Embora podamos ler México Insurgente como um desafio, ou mesmo como um interrogante sobre os limites que encerra o género jornalístico, porém, Reed leva a sério o compromisso jornalístico com a verdade.
Uns anos depois da publicaçom das crónicas mexicanas para o Metropolitan Magazine, Reed, sem abandonar o seu particular estilo, incorporaria no seu registo um obsessivo labor documental, um maior rigor cronológico, assim como umha maior atençom metódica, para escrever a sua obra definitiva sobre a Revoluçom de Outubro, “Dez dias que abalaram o mundo”, e no entanto, México Insurgente, continua a brilhar como o primeiro dia após a sua ediçom, como o livro iniciático que fijo abalar os pressupostos académicos sobre o jornalismo, que hoje seguem a ser inculcados nas faculdades. No centenário da sua morte, em plena era tecnológica onde o jornalista se tem convertido num mercenário ao serviço da maquinária totalitária que produz a informaçom, dos meios independentes e alternativos de comunicaçom convém-nos redescobrir e divulgar a obra do jornalista revolucionário John Silas Reed. “Todas as pessoas que, em troca de muito pouco ou de nada, trabalham por propósitos nom egoístas, som incompreensíveis para aquelas que nunca trabalham de balde, e por isto mesmo, podem ser contratados para trabalhar em favor de qualquer cousa”, deixou dito pouco antes de morrer, como se profetizasse a nossa época.
[Este artigo foi publicado originariamente no Nós Diario]