Fundação Astrojildo Pereira

Em 1871, no decorrer das célebres Conferências Democráticas do Casino em Lisboa, programadas pola intelectualidade mais progressista na altura em Portugal, o poeta e político socialista Antero de Quental pronunciava o seu discurso sobre a “Causa da decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos”. Entre as causas que levaram os povos peninsulares a caírem nas garras do absolutismo monárquico e a decadência política, económica e social, Antelo insiste na reforma do catolicismo polo Concílio de Trento, na liquidaçom das liberdades municipais e os poderes locais, e numha economia improdutiva baseada na rapinha, o latrocínio colonial, e o trabalho escravo, descrevendo finalmente o tempo presente do autor como a “consequência moral” de sucessos e dinámicas históricas que arrancam no século XVI. Embora Antero de Quental nom fosse propriamente um autor anticolonialista, interessa-nos agora destacar a percepçom do tempo histórico como herança de que fai uso o poeta, “Gememos com o peso dos erros históricos, a nossa fatalidade é a nossa história”, diz a determinada altura do texto, e interessa-nos sobretudo a dimensom moral de tal herança.

A herança histórica

Os meios de comunicaçom corporativos, a esfera da política representativa, e o discurso público oficial explicam o ascenso da extrema direita em Portugal, que conta com repressentaçom no parlamento português, como a consequência lógica do auge do extremismo reacionário nos países ocidentais, aprofundando nas análises das suas dinâmicas políticas, do uso da tecnologia para fins propagandísticos, da financiaçom de grupos de poder, etc. Deste modo, ocultam a própria responsabilidade na apertura de espaços dominados por estas esferas para os discursos do ódio, como resultado dumha política de controlo social, que pretende a geralizaçom do medo como arma paralisante das transformaçons sociais. Mas esta leitura redutora está sendo posta em causa nos espaços onde se combate a onda xenófoba, racista e patriarcal, alumbrando assim o debate sobre a responsabilidade social e moral da herança histórica que arrastam as comunidades. Assim, contra o discurso negacionista do racismo e a xenofobia de boa parte da sociedade portuguesa, os agentes e os movimentos de transformaçom social tenhem confrontado Portugal com o reflexo da imagem projetada polo seu espelho histórico confirmando o racismo como parte estrutural da construçom da sua identidade nacional, um substrato que se mantem apesar, ou como consequência, das mudanças nas condiçons materiais e de vida na própria sociedade portuguesa. No centro do debate tem-se colocado como necessária e urgente a condena e as desculpas que o estado português deve render por 500 anos de colonialismo, e no caso concreto da escravatura, a reparaçom polos danos causados às vítimas. Portugal foi o responsável do comércio, até a sua proibiçom em 1836, de mais de seis milhons de homens e mulheres sequestradas nas colónias africanas, assim como das torturas, assassinatos e violaçons maciças de populaçom africana como consequência da sinistra empresa colonial. Aliás o tráfico de escravos continuou sendo rendível para a elite portuguesa implicada no comércio com o Brasil, apenas abolido em 1888. Após a aboliçom da escravidom, como também aconteceu noutras sociedade escravistas como a norte-americana, fórom compensados os proprietários de escravos. Porém, a proposta de compensaçom para com as vitimas da escravatura foi escarnecida no debate público, ou entom desacreditada por ser considerada quimérica, mas os seus detratores nom reparárom no facto de Portugal aprovar, em 2015, leis de reparaçom histórica ao conceder a nacionalidade portuguesa aos descendentes dos Judeus Sefarditas expulsos no século XV.

Portugal foi o responsável do comércio, até a sua proibiçom em 1836, de mais de seis milhons de homens e mulheres sequestradas nas colónias africanas, assim como das torturas, assassinatos e violaçons maciças de populaçom africana como consequência da sinistra empresa colonial.

No entanto, o debate promovido polos agentes sociais que integram movimentos libertários, associaçons de imigrantes, locais sociais, imprensa popular, e outros coletivos, choca com a realidade do discurso político, público e académico, que promove ainda a visom mais ingénua da obra messiânica, evangelizadora e civilizadora da expansom colonial do império português, aquela que celebra as aventuras marinheiras e os grandes navegadores, mas que apenas dissimula o princípio legitimador do colonialismo, isto é, o supremacismo racial e cultural. Assim, no ano letivo passado, num livro de apoio à avaliaçom das provas de geografia e história do quinto ano, editado pola Porto editora ainda se podia ler: “No decorrer da construção do império os portugueses, com povos de diferentes raças e diferentes costumes em África, estabelecem contatos comerciais marcados por relações amigáveis e pacíficas” ou “Os portugueses encontraram vários povos de raça negra organizados em reinos rivais entre sim, e que os portugueses consideravam pouco desenvolvidos”. Outros livros de texto fam referência à mercantilizaçom de seres humanos incorporando-os sem pudor ao catálogo de matérias primas arrebatadas polos portugueses: “Os portugueses iam à procura de produtos tais como marfim, ouro, escravos, prata…”.

Crónica da rapinha

Finalmente, os livros de texto, com a sua intençom didática, acabam por dar a razom aos que, como o historiador brasileiro Mario Maestri, acreditam como Antero no peso da história, “num processo que se assemelha a um ponto que avança para alcançar um mesmo plano horizontal, mas em um segmento superior de uma espiral, o racismo gerado sobretudo durante a exploração escravista do africano em Portugal, consolidado com a dominação colonial, consubstancia-se sob outras formas, no forte racismo contra o operário negro-africano, mão de obra super-explorada no Portugal atual”:

O historiador e militante marxista Mario Maestri é autor de “Zurara: Crónica de Guiné e os primórdios do racismo anti-negro”, onde se indaga, através da “Crónica dos feitos da Guiné” de Gomes Eanes de Zurara, cronista ao serviço da alta nobreza portuguesa que narrou no século XV a conquista da Guiné e os inícios do incipiente mercado negreiro, acerca da construçom da imagem do colonizado como pretexto e legitimaçom para dominá-lo. O livro de Eanes é a crónica da rapinha e a crueldade dos colonizadores que antecipa a “Brevísima relación de la destrucción de las Indias de Bartolomé de las Casas”, mas se este último tinha vocaçom de denúncia, em Zurara, as razias portuguesas contra as pequenas comunidades de pescadores da Guiné convertem-se em atos enobrecidos de heroísmo, ”eis a nossa pressa está ante nossos olhos, pero está tão descoberta, que de necessidade seremos vistos antes que a ela cheguemos; e porque me não parece tamanha que possa ter gente com que nós não possamos, cada um corra o mais que poder, e assim rijamente vamos a eles, e se não pudermos tomar os mancebos, tomaremos os velhos e mulheres e moços pequenos; e qualquer que se intrometer de defesa, sem nenhuma piedade seja morto, e os outros prendei como poderdes”. Mas, para Mario Maestri, mais do que os factos relatados importa a dimensom ideológica do texto, em cuja narrativa se regista pormenorizadamente as descriçons e classificaçons das cores da pele, de traços físicos, de rasgos culturais da populaçom africana, que explicam a superioridade racial do homem branco, adiantando-se Eanes, às teorias raciais que procuravam argumentos científicos que provassem as teses supremacistas.

Mas a teoria que sustenta a missom civilizadora do Império português foi-se adequando às necessidades específicas do tempo histórico que atravessa a metrópole até chegar ao seu topo de refinamento, coincidindo com a consolidaçom do Estado Novo que mantinha as possessons coloniais contra a marcha dos tempos, aplicando ora umha política de repressom brutal, ora um paternalismo indulgente e piedoso. O intelectual brasileiro Gilberto Freyre forneceria, sob o patrocínio de Salazar, toda umha filosofia política, social e antropológica com a que readaptar a missom civilizadora do colonialismo português, fundamentada na da harmonia racial e cultural promovida pola expansom do império, “depois de Christo ninguém tinha contribuido mais que o português para a fraternidade dos homens”, deixou dito. Freyre exalta no seu “O mundo que o português criou”, a capacidade do génio português para se misturar com outras raças e culturas inferiores, enobrecidas e dignificadas pola obra evangelizadora do Império. A mestiçagem e a capacidade adaptativa seriam para ele as bases constituintes do Império, e o Brasil o território onde os portugueses levantárom a nova sociedade nascida do encontro de africanos e europeus, denominada por ele mesmo como “democracia racial”. Freyre é também o responsável do conceito de luso-tropicalismo, através do qual estudou o processo de colonizaçom africana à luz da sua teoria de miscigenaçom no Brasil, contribuindo assim para fixar o mito, ainda hoje persistente, dumha comunidade global, multiétnica e multicultural, cuja harmonia vinha ditada pola missom civilizadora empreendida por Portugal. O facto de o escravismo e o seu comércio se converterem na força propulsora da expansom evangelizadora nom supujo elemento de contradiçom nenhum para o intelectual brasileiro: ”Com o português e o descendente de português, a escravidão foi no Brasil escola de cristianização e europeização de pretos e pardos; e não apenas sistema de exploração dos pretos e pardos pelos brancos como entre outros europeus e outros descendentes de europeus. O explorado ganhou oportunidades de ascensão, dentro do novo complexo social de que se tornou membro, por efeito das inevitáveis consequências do contato de europeus em expansão -mas pouco numerosas- com multidões de africanos militar e tecnicamente retardados; de europeus reduzidos em número e africanos numerosíssimos: ventres geradores não só de novos escravos como de novos portugueses. Da escravidão, assim socialmente dinâmica, resultou que, através da miscigenação e da assimilação, indivíduos de cor pudessem subir até os brancos: mesmo até os brancos mais alto”.

Lusofonia 

Os princípios da teoria de Gilberto Freyre resistírom a queda do fascismo português provocada polas guerras de independência nas colónias africanas, os propósitos de democratizaçom, desenvolvimento e descolonizaçom propugnados polo MFA no transcurso da revoluçom de Abril dérom passo à institucionalizaçom dumha narrativa oficial que herdou muitos dos mitos consagrados polo salazarismo, perpetuando assim o fatalismo histórico ao que Antelo de Quental fai referência nas conferências do Casino.

Gilberto Freyre na África

Nom seria até os anos 90 em que se criam a CPLP, e o instituto Camões, que oferecem a possibilidade aos estudantes dos países lusófonos, assim como aos descendentes dos retornados das colónias, de completar os seus estudos em Portugal, que surgem narrativas críticas e alternativas ao sistema colonial português da mao dos descendentes das vítimas do Império. É nesta década que o conceito de lusofonia toma corpo como comunidade conformada pola sua identidade linguística, mas fai-no de forma ambivalente. A lusofonia cede um espaço que possibilita o surgimento de narrativas marginadas que elaboram um discurso crítico com a colonizaçom, mas como tem referido António Tomás, historiador angolano que procede dessa geraçom que se destacou nos noventa, e que tem escrito a maior biografia publicada sobre Amílcar Cabral, também nom se deve esquecer que “a lusofonia surge como modelo de explicação da resiliência do português nos trópicos. A língua portuguesa, unindo através de um passado comum pessoas de vários continentes, torna-se a prótese de reminiscências imperiais em torno das quais o passado se reatualiza, através de congressos, comemorações e outros gestos saudosistas. A lusofonia organiza-se em primeiro lugar para o exterior, já que, em nome deste passado, se pretende justificar um espaço que transforma Portugal e as suas colónias em parceiros económicos privilegiados. No interior, a língua portuguesa servia de discurso explicativo do multiculturalismo. Ou seja, a lusofonia transformava o passado colonial em presente multirracial. Lisboa pelo facto de nela habitarem representantes de todas as comunidades do espaço da língua portuguesa, era a prova atualizada do universalismo português”.

Finalmente, as galegas, como parte integrante da comunidade lusófona nom podemos ficar a margem dum debate que também nos concerne, ainda que seja pola nossa condiçom de naçom submetida a um estado herdeiro do império que acometeu o maior genocídio da história contra os povos originários da América. Se parte da nossa tarefa é resgatar como próprio o legado cultural do nosso país vizinho eu sugiro alinharmos com o anti-colonialismo precoce de Camilo Castelo Branco que, em pleno século XIX, dedica estes versos ao império:

Verdugo, que esmagaste a Índia aos pés…
Eis aqui, Portugal, o que tu foste!
Repulsivo morfético d`Aoste…
Eis aqui, Portugal, o que tu és!
Os Gamas, Albuquerques e Sodrés,
Alçando a Cruz em sanguinoso poste,
Brandam ser Cristo o general da hoste,
Se os povos sangra o ferro português.
Terrível vai mostrar-se a Providência,
Arrancando das mãos da prepotência
A levantina raça acorrentada.
Índia, escrava gentil, espera um pouco…
Lá vem sobre Marrocos um rei louco…
Eis Alcácer Quibir! estás vingada.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]