Livro de estilo (I) “O julgamento da Moncada” de Marta Rojas

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Que crimes tam horríveis terá cometido este regime que tanto temia a voz dum acusado?” (Fidel Castro).

Quem melhor acertou na definiçom das dissemelhanças entre a narrativa jornalística e o romance foi Ernest Hemingway quando, acreditado como jornalista, tivo oportunidade de testemunhar ao vivo o desembarco de Normandia na segunda Grande Guerra. Hemingway admitiu publicamente que alguns dos jornalistas de ofício ali presentes destacavam, por cima dele, em rapidez de observaçom e em poder de síntese, eles serám os melhores romancistas deste acontecimento, reconhecia Hemingway. A sua afirmaçom tem o duplo valor por ser umha descoberta fundada na própria experiência mais do que no estudo académico e teórico.

Entom, se aceitamos como Hemingway que, rapidez de observaçom e capacidade de síntese som umha boa medida para calibrar o valor dumha obra jornalística, podemos considerar o livro da jornalista cubana O julgamento do Moncada como um referente do género.

O julgamento do Moncada é a crónica do processo que seguiu à tentativa de assalto ao quartel Moncada em Santiago de Cuba em 1953, protagonizada polos jovens revolucionários da Geraçom do Centenário encabeçados por Fidel Castro, que procuravam, com esta acçom, um levantamento popular para derrocar o governo de Batista. Marta Rojas narra, nesta obra, o transcurso do processo dumha posiçom de observadora direta, sendo umha das poucas jornalistas que assistiu ao total das sessons da causa 37, incluído o processo a Fidel, que foi apartado dos seus companheiros revolucionários para ser julgado num processo separado, na tentativa infrutuosa, por parte do Estado, de rachar a resistência inquebrantável dos jovens que sobrevivérom ao calvário e as torturas às que foram submetidos. Foi neste processo onde Fidel, fazendo uso da palavra como advogado da sua própria defesa, pronunciaria o seu imprescindível alegato, que finaliza com a famosa sentença: “A história absolverá-me”

Um acontecimento histórico

Marta Rojas descreve com precisom minuciosa o desenvolvimento do processo, desde a reconstruçom exaustiva do espaço: o mobiliário, a decoraçom da sala, a luz que entra pola janela; até os pormenores todos que acontecem no julgamento: a chegada dos presos escoltados polos militares. os juízes, fiscais e advogados tomando possiçons, as declaraçons dos presos e das testemunhas, as deliberaçons do jurado, etc. Com um estilo sóbrio, desprovisto de qualquer artifício, e de escritura ágil e direta, atenta a todos os detalhes, O julgamento da Moncada atrapa ao leitor desde o seu início, submergindo-o na atmosfera ameaçante que envolve os acontecimentos narrados desde o presente, mas com consciência plena do seu carácter de acontecimento histórico: “Todos fôrom conduzidos algemados à sala de justiça. O ruído metálico que sobressaltou ao público fora produzido polas cadeias cromadas que aprisionavam mais de cem pulsos. Fidel parou a marcha para dirigir-se ao tribunal e os guardas em atitude de batalhom de combate, tirárom o seguro das suas armas”.

Efetivamente, a história tem provado a transcendência do assalto ao quartel militar do Moncada como o início do processo revolucionário que levaria a vitória, seis anos depois, aos rebeldes de Sierra Maestra. Mas na altura, a Geraçom do Centenário, encabeçada por Fidel, nom passava dumha facçom combativa e marginal do Partido Ortodoxo, atuando fora do marco previsto pola organizaçom do partido, e desconhecida pola imensa maioria das classes populares de Cuba. Aliás, a férrea censura informativa imposta polo governo de Batista, fixo com que os meios perdessem interesse no transcurso do julgamento, pois a logística que requeria o seguimento, nom resultava rendível em relaçom ao extraordinário impacto inicial que tivo o sucesso. Fôrom muito poucos os jornalistas que acompanhárom a Marta Rojas até o final da Causa 37; a revista Bohemia, da qual Marta era correspondente, atemorizada polas ameaças do regime, nom chegou publicar nengumha das crónicas que esta escreveu. As notícias dos acontecimentos propagavam-se de forma silenciosa e discreta entre as classes populares.

Fôrom muito poucos os jornalistas que acompanhárom a Marta Rojas até o final da Causa 37; a revista Bohemia, da qual Marta era correspondente, atemorizada polas ameaças do regime, nom chegou publicar nengumha das crónicas que esta escreveu. As notícias dos acontecimentos propagavam-se de forma silenciosa e discreta entre as classes populares.

Um caso insólito

A rapidez de observaçom que Hemingway exaltava como virtude no jornalismo, seviu-lhe a autora para reconhecer, nos factos excepcionais do processo, a experiência do tempo histórico vivido desde o presente. Atenta a todo o que acontece, Marta Rojas fixa a atençom em gestos, em olhadas, em condutas insólitas que se produziam no tribunal, como a do capitám Lavastida, chefe do Serviço de Inteligência Regimental que se apresenta no tribunal como testemunha da acusaçom: “Lavastida entrou na Sala dando as costas aos acusados. As testemunhas penetrárom pola porta situada no extremo direito do cumprido salom e tinham que bordear toda a fileira esquerda de bancos para situar-se perante o tribunal: para todos deveu constituir um pesadelo percorrer esse trajeto. Alguns olhavam para o grupo compacto de jovens, e estes desafiavam-nos com a olhada fria de desprezo, de indiferença ou de repugnância dependendo de quem se tratara, mas o chefe dos agentes do crime nom puído suportar nengumha daquelas olhadas e percorreu o trecho de costas aos acusados, de tal modo que tivo que caminhar dando saltos laterais.” Neste sentido, a declaraçom de Haydeé Santamaria ante o tribunal fornece um dos episódios mais emocionantes do Julgamento do Moncada. A revolucionária cubana participa em qualidade de enfermeira, junto do irmao Abel Santamaria e o seu companheiro Boris Santa Coloma no assalto ao Moncada; estes integravam o grupo que tomou o hospital Saturnino Lora situado a vários metros do quartel. Deste grupo só Haydeé e Melba salvárom a vida, o resto, embora serem capturados ainda com vida, fôrom todos assassinados após padecer horríveis torturas. Os seus cadáveres fôrom expostos no pátio do Moncada, desta forma o Estado pretendia dissimular o crime, fazendo passar aos assassinados como mortos em combate numha manobra de torpeza macabra, pois os corpos jaziam com queimaduras, sem unhas, sem dentes e com o crânio aberto polas execuçons; a massa encefálica dos cadáveres cobria o cham e os militares apartavam-na com as baionetas para nom pisar nela.

Haydeé e Melba salvárom a vida graças a intervençom do fotógrafo que acompanhava no julgamento a Marta Rojas, pois por um facto fortuito ele puído vê-las através dumha janela; o fotógrafo instintivamente fijo o gesto de tirar-lhes umha fotografia com a sua câmara, embora esta nom tivesse película, pois tinham sido confiscadas depois do passeio à prensa polo lugar do crime. Este gesto, e as posteriores perguntas sobre as detidas da própria Marta Rojas salvou a Haydeé e Melba, pois a consigna do mando era clara, todos os rebeldes deviam ser exterminados. Na sua declaraçom perante o tribunal, Haydeé relata as torturas às que fôrom submetidos os seus companheiros. A Abel Santamaria, irmao de Haydeé e o segundo da Geraçom do Centenário depois de Fidel, extirparom-lhe com a ponta dumha baioneta um olho, para depois, num ato que mostra o sadismo e a crueldade empregada polos verdugos, mostrar-lho a Haydeé; e a Boris, o seu companheiro sentimental, arrincarom-lhe os testículos antes de executá-lo; assim figérom com os vinte jovens que fôrom capturados no Hospital Saturnino Lora. Marta Rojas transcreve, palavra por palavra, a denúncia e o relato comovente de Haydeé perante o tribunal, mas imediatamente, como para conjurar qualquer possibilidade de sensacionalismo, acorda-nos do brutal relato para trazer-nos ao presente, salientando a importância do que nesses momentos acontecia na sala: “Haydeé voltou para o seu posto serena, mas os seu lábios estavam encarnados e o seu rosto pálido. A sua olhada profundamente triste, fixava-a direta e penetrante nos rostos que enchiam a Sala, incapazes de poder suster-lha, uns para nom chorar de soberba e outros para fugir do medo”.

Efetivamente, no momento da declaraçom de Haydeé, a acusaçom, quer dizer, o Estado, cambaleava de medo perante a denúncia da defesa; o que começara como um julgamento espetáculo, umha farsa do regime, converteu-se num pesadelo para Batista, impondo um silenciamento público absoluto de todo o que tinha a ver com assalto ao quartel Moncada, porque repentinamente os acusados eram o próprio Batista e seu regime criminal.

No livro Estratégia judicial nos processos políticos publicado em 1968, o advogado e ensaísta Jacques Vergès estabeleceu umha distinçom básica entre a estratégia de conivência, onde a defesa reconhece a legitimidade do tribunal, e a estratégia de ruptura, onde o acusado reconhece os factos polos que é julgado renunciando por tanto a defessa, mas nega a legitimidade do tribunal tornando-se em acusador dum sistema injusto. Vergès, que analisa nesta obra, entre outros casos históricos, a defesa de Fidel no processo que seguiu ao assalto do Moncada, defende que a justiça nom pode conter um assalto generalizado contra a legitimidade do Estado, “a partir de certo nível o Estado deve abandonar o seu posto ou desintegrar-se” . Efetivamente o processo da causa 37 abriu a primeira fenda no Estado e Marta Rojas apercebeu-se antes do que ninguém, adiantando-se a sua desintegraçom, A estratégia judicial de ruptura nom fora ainda conceptualizada, mas Marta Rojas tomava nota dum processo exemplar: “Do centro do grupo saiu umha voz até entom desconhecida, rápida e cortante, que dixo: Todos os que participamos no ataque ao Moncada vamos dizé-lo, como também vamos dizer algumhas outras cousas, embora o companheiro Fidel recomendou que aqueles aos quais nom se lhes poida provar o facto nom tenhem necessidade de confessar-se culpáveis, vamos dizer toda a verdade, podem ir soltando aos demais, os que vinhemos somos nós”.

No livro Estratégia judicial nos processos políticos publicado em 1968, o advogado e ensaísta Jacques Vergès estabeleceu umha distinçom básica entre a estratégia de conivência, onde a defesa reconhece a legitimidade do tribunal, e a estratégia de ruptura, onde o acusado reconhece os factos polos que é julgado renunciando por tanto a defessa, mas nega a legitimidade do tribunal tornando-se em acusador dum sistema injusto.

Quanto a Vergés, poria em prática a estratégia sistematizada por ele defendendo como advogado aos membros do Frente de Libertaçom de Argélia, atacando diretamente ao Estado colonial francês, anos depois do julgamento do Moncada.

Para além do julgamento

Como já apontamos, a crónica do processo de Marta Rojas nom foi publicada pola revista Bohemia, e a autora reelaboraria posteriormente os seus artigos até compor a ediçom definitiva do Julgamento do Moncada. Assim, a crónica do julgamento converte-se no armaçom, no esqueleto que suporta o imenso trabalho de documentaçom, e o estudo rigoroso da reconstruçom da conformaçom do movimento revolucionário, do contexto histórico, político e social de Cuba, do estrato social dos seus protagonistas, do papel institucional na repressom política…

A autora introduze todo este caudal de informaçom sem alterar o rumo dos acontecimentos na sala do tribunal e a pulsom narrativa que late por baixo do relato das sessons, tendendo umha ponte sólida entre a acçom descrita no presente e o tempo histórico que o contém. À rapidez de observaçom da autora, soma-se o magistral poder de síntese para fazer boa a ecuaçom que enunciara Hemingway em torno da narrativa jornalística.

Mas Hemingway deixou fora da ecuaçom um elemento chave para explicar o extraordinário valor desta obra; a autora cubana é umha jornalista vocacional. No 26 de Julho de 1953, na mesma noite em que os revolucionários assaltam o quartel do Moncada, Marta percorre as ruas de Santiago como correspondente da revista Bohemia para redigir um artigo sobre os populares carnavais de Santiago: “Quando já começava amencer, voltávamos para as nossas casas e sentimos os disparos. Nesse momento nom sabíamos que se passava, do mesmo jeito que a imensa maioria das pessoas que por ali andavam, eu atribuim-lho aos foguetes chineses ou aos fogos de artifício, próprios do carnaval.

Som tiros- afirmou Panchito, desgostado. E a seguir dijo-me: –Lá vai a reportagem dos carnavais.

– Pois vamos fazer o dos tiros, respondi, muito longe de imaginar a transcendência dessa resposta assumida como umha decisom.”

O impulso que levou Marta Rojas ao Moncada apenas se pode explicar desde a consideraçom do ofício jornalístico como vocaçom. Depois da primeira sessom, com a intervençom devastadora para o regime dum desconhecido, como entom era Fidel, os meios, temerosos da repressom, abandonárom o seguimento da causa 37 que tantas expectativas levantara, os partidos da opossiçom ao regime e os sindicatos apressarom-se em se desvincular de qualquer participaçom na tentativa revolucionária, apenas umha jornalista contra todos os obstáculos trabalhava sem descanso na procura da verdade, e a verdade estava do lado dos revolucionários. Finalmente seria Marta Rojas “a melhor romancista deste acontecimento”.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]