Proserpina no inferno (de soberanias literárias)

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A história da literatura, a que se fixa nos manuais escolares, nos volumes das academias e nas enciclopédias, adoita sintetizar o cânone de períodos e nele situar os principais escritores. As grandes literaturas ocidentais, a francesa, as anglosaxónicas e a alemã, adoitam servir de modelo para as outras nas mesmas latitudes, reconhecendo-lhes um pioneirismo e rendendo, de facto, uma vassalagem cultural.

Dante Gabriel Rossetti: “Proserpine” (1873-1877, Tate Gallery, London)
Dante Gabriel Rossetti: “Proserpine” (1873-1877, Tate Gallery, London)

Há literaturas que parecem ir ao seu, mas na realidade é porque vão à contra doutro esquema. Isto normalmente é comum nas literaturas de espaços periferizados, decadentes e onde o conflito nacional, cultural e linguístico é omnipresente desde o século XVIII (as italianas, a irlandesa, a catalã, a polaca, a galega, por exemplo, na perspetiva tradicional).

No caso da literatura galega a complicação é importante. Existe uma formulação do cânone periódico, que se por uma parte é estabelecido em oposição, por outra é – justamente por isso – imitativo. E disto resulta uma paisagem fascinante, porque temos todas as gerações e periodizações influídas pelas extravagantes (e atrasadas) cronologias literárias espanholas.

Cumpre talvez dizer, para aviso, que as periodizações na literatura espanhola vão determinadas pela ideologia e pela construção do cânone nacional, que apenas pode integrar as fases na sua literatura moderna no seu nacionalismo, rompendo a lógica dos estilos e influências, para evitar reconhecerem a completa influência francesa e girando antes e depois do 98 (um modernismo reacionário como bem explicou, justo antes de ser apagado do cânone dos hispanistas, o Inman Fox, no seu fantástico ensaio La invención de España: Nacionalismo liberal e identidad nacional. Cátedra: Madrid, 1997).

Isso lá eles com os seus traumas. O interessante, penso eu, é que na Galiza, a literatura até bem andado o século XX, nunca entrou por Madrid. Sempre chegou, por mar, direita da França, e da Inglaterra e depois enlatada via Argentina, Uruguai e Cuba. Voltaire, Goethe Renan, Chateubriand, Lamartine, e depois Lérmontov, Mallarmé, Baudelaire, Tolstoi, Poe, Keats, Wilde, James Stephens ou Joyce, as religiões e cultura de oriente, o budismo; Morris, Rossetti, Beardsley, J.M. Barrie, Chesterton, já eram de uso entre os escritores galegos no seu mesmo tempo.

O interessante, penso eu, é que na Galiza, a literatura até bem andado o século XX, nunca entrou por Madrid. Sempre chegou, por mar, direita da França, e da Inglaterra e depois enlatada via Argentina, Uruguai e Cuba.

E não foi até o fracasso (manu militari) da geração de Murguia, a de 1868, substituída pelo programa nacionalizador do Canovismo académico e jornalístico, a partir de 1875, que os principais jornais, redações e tertúlias literárias de Madrid deixassem de ser o espaço no que os literatos e das literatas galegas eram avançada e sentavam cátedra.

E depois está a via portuguesa, o contrabando de livros e revistas de matute do Sul, que também nunca deixou de fluir antes de 1936, e depois. Como não ver nos grandes do XIX e primeiras vanguardas, o peso de Almeida Garret, de Anthero de Quental, de Teophilo Braga, de Herculano, de Castelo Branco, de Guerra Junqueiro, de Eugênio de Castro, de Eça de Queiros, de Julio Dantas, Teixeira de Pascoaes, Coimbra, Pessoa, Sophia de Mello.

E depois está a via portuguesa, o contrabando de livros e revistas de matute do Sul, que também nunca deixou de fluir antes de 1936, e depois. Como não ver nos grandes do XIX e primeiras vanguardas, o peso de Almeida Garret, de Anthero de Quental, de Teophilo Braga, de Herculano, de Castelo Branco, de Guerra Junqueiro, de Eugênio de Castro, de Eça de Queiros, de Julio Dantas, Teixeira de Pascoaes, Coimbra, Pessoa, Sophia de Mello.

E as cousas da Bretanha e a Irlanda, com o seu revival e debates, a matéria de Bretanha, Artur, por aquilo do celtismo e também os ecos da Polónia, a Itália garibaldina e a Ocitânia. Imagina alguém os Cantares Rosalianos sem os Barzaz Breiz de La Villemarqué, e sem as leituras sobre celtismo de Murguia. São possíveis as prosas de ambos sem Arbois de Jubainville, sem os Parnasianos, sem Leconte de L’Isle, Proudhon ou Barbey d’Aurevilly?

Pode-se compreender a Galiza cultural, política, sindical, anarquista e social sem a imprensa Cubana, Argentina, Uruguaia, bem afrancesada e com ecos constantes da Itália, das tradições e traduções dos imigrantes judeus e outros centro-europeus, que estava antes e com mais novidades, nos quiosques de Vigo, a Crunha, Ponte-Vedra ou Ribadeu que a de Madrid. Fluxo intensíssimo de novidades (Ruben Dario, Ducasse, Quiroga, Vaz Ferreira, Rodó, Borges, Cortazar, os Rama, Bolaño), de conexões e de influências mútuas que fechou após um fulgurante flash motivado pelo exílio republicano, com a crise pratense de 1959.

Rosalia romântica? como? se Nicomedes Pastor Díaz já é um romântico seródio e manierista; sendo os nossos pre-românticos chateaubrianescos Manuel Pardo de Andrade, José Fernández de Neira e Antonio Benito Fandinho. Os Mestres do rexurdimento, Rosalia de Castro e o seu home desde logo, parecem mais bem entre o Arts & crafts, o simbolismo e Wilde; como Pondal, bem aí precursor, e com os da Cova céltica e os seus contemporâneos irlandeses, mas já no modernismo, junto com Murguia e Curros e os prerrafaelitas de Vicetto e Faraldo. A Pardo Bazán renunciando por Madrid a ser Lady Gregory, Valle-Inclan, puro Joyce. Cabanillas com Yeats. Otero e Risco, no decadentismo, na estela de Eça de Queiroz e achegados de Lampedusa. Castelao, Camba, Fernández Florez, Picallo, entre Barrie e Chesterton. Manoel António, Amado Carvalho e Bouza Brey, nas vanguardas plenas. Carvalho Calero, no existencialismo. Dieste e Cunqueiro inaugurando com Aquilino Ribeiro desde o mesmíssimo centro da tradição céltica e popular o Realismo mágico.

Pode-se compreender a Galiza cultural, política, sindical, anarquista e social sem a imprensa Cubana, Argentina, Uruguaia, bem afrancesada e com ecos constantes da Itália, das tradições e traduções dos imigrantes judeus e outros centro-europeus, que estava antes e com mais novidades, nos quiosques de Vigo, a Crunha, Ponte-Vedra ou Ribadeu que a de Madrid.

E sugerido isto (britanismo, literatura francesa e portuguesa, conexões com América) convêm reparar no mais interessante. Sendo a nossa literatura em geral mais moderna e cosmopolita, dado que até os nossos escritores conservadores (nem que falar das gentes de avançada), mesmo os que escrevem em castelhano, vão a outro ritmo do que apresentam as periodizações da literatura em língua castelhana, aparecem sempre fora de lugar e fora das categorias e modas que se estudam e fixam nos manuais.

O ritmo, o centro e a força original dos poetas é outro; mas é que o dos narradores também e resulta sempre difícil de classificar, parecendo, desde a prepotência e soberba, que não alcançam quando já passaram, ou que não chegaram quando já desbotaram o que começa em Madrid. Gondomar, Feijó, Sarmiento, Rosalia, Murguia, mas também a Pardo Bazán, Valle-inclán, Torrente Ballester, Blanco Amor, Cunqueiro. E todas as nossas poetas e alguns dos poetas até hoje.

E digo literatura porque é onde as periodizações andam mais atrapalhadas pelas línguas e portanto pelos nacionalismos. Na música e na arquitetura, na imprensa diária e na comunicação, na pintura e escultura, nas artes aplicadas e na indústria as cousas andam algo melhor e as cronologias e periodizações foram fixadas com critérios um bocadinho mais cosmopolitas.

Por vezes penso que estamos parvos com tanto mirar para Espanha e o castelhano, para o Madrid jornalístico, editorial e os seus salões literários, fardados de labregos e com a pucha na mão, quando podíamos mirar para América Latina, para a África e Ásia portuguesa, para a literatura portuguesa, irlandesa, francesa, inglesa, italiana, alemã, e para as repúblicas da América do Sul, onde quadramos perfeitamente e as nossas periodizações, ritmos, alegorias e estilos se entendem melhor.

 

Nota. Este artigo foi publicado com título “Soberanias”, no blogue A viagem dos argonautas o 26 de Novembro de 2020. O estilo de Título-Seção nesse blogue faz com que prefiramos títulos palavra. Publicamos agora com o título original que referencia a sonada pintura de Dante Gabriel Rossetti, um dos iniciadores da Irmandade Pré-Rafaelita, que insurgia contra a arte académica inglesa da sua época.

Proserpina (ou Prosérpina) é, para além uma das três formulações romanas da primitiva deusa da Terra. Aquela que, raptada por Pluto, ficou no inferno após comer os frutos do Hades (ponhamos cá de Mordor ou de Castela), que lhe eram proibidos (géis). Apos o pato de casamento em que se regularizou a sua situação e como esposa do senhor do inferno tem de passar lá no mínimo três meses do ano, nesse tempo acontece o inverno, o tempo em que para o mundo e é bom refletir.

As três formas da deusa eram Febe (a Lua), no céu, Diana na Terra (ou a Hipona Celta) e Proserpina no inferno. Representação triforme, luar, terreste e infernal; com os atributos simbólicos do leão, a égua e o cão. Como deusa do Submundo, retirava-se no inverno, atendia à procriação e acompanhava na morte. Como deusa da Terra, ocupava-se das outras três estações e regia os seres vivos. Como deusa do Céu, era a Lua, nas suas três fases: Nova, Cheia e Minguante e regia o calendário. O seu espaço sagrado era a encruzilhada, na qual estátuas (podemos pensar em cruzeiros) eram erguidas.

Máis de Ernesto V. Souza