Balada

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Paulina Chiziane| foto de Otário de Souza
Paulina Chiziane| foto de Otário de Souza

Não lembro quem me falaria por primeira vez de Paulina Chiziane, o mais provável é que fosse Francisco Salinas Portugal, o excelente professor de quarto e quinto de carreira, especialista em literaturas africanas e por sua vez escritor e poeta em língua galega. Seria ele, a pessoa, ou seria talvez nalgum dos seus ensaios ou artigos que encontrara?

A questão é que tinha pela casa Balada de amor ao vento; num cantinho onde andam livros das coleções da Caminho (outras margens, uma terra sem amos) daquelas azul-esverdeadas, onde colocam autores brasileiros, africanos; por junto com aquelas crema e livros soltos doutras coleções e editoras.

Não saberia dizer se li todos, ou se apenas pisquei neles; porque bastantes são de quando a minha mulher estudava português a sério. Mas este, acho que lera. Mas como tanta outra cousa, ou li sem atender, ou quando li não sei que procurava que não achei. Talvez vinha de ler Pepetela, Mia Couto, Saramago e andava extraviado noutras florestas, deslumbrado pelo sol a Sul de Lisboa, talvez sonâmbulo. Ou esqueci. Ou não procurava na língua, senão na história narrada.

Desta volta, aproveitando a ocasião, apanhei de novo. Li, com vagar e imenso prazer. Já desde as primeiras palavras fiquei surpreendido:

Tenho saudades do meu Save, das águas azul-esverdeadas do seu rio. Tenho saudades do verde canavial balançando ao vento, dos campos de mil cores em harmonia, das mangueiras, dos cajueiros e palmares sem fim. Quem me dera voltar aos matagais da minha infância, galgar as árvores centenárias como os gala-galas e comer frutos silvestres na frescura e liberdade da planície verde. Estou envelhecida e sinto a aproximação do fim da minha jornada mas, cada dia que passa, o peito queima como vela acesa no mês de Maria, o passado desfila como um rosário de recordações que já nem são recordações, mas sim vivências que se repetem no momento em que fecho os olhos transpondo a barreira do tempo.

Foi em Mambone, saudosa terra residente nas margens do rio Save, que aprendi a amar a vida e os homens. Foi por esse amor que me perdi, para encontrar-me aqui, nesta Mafalala de casas tristes, paraíso de miséria, onde as pessoas defecam em baldes mesmo à vista de toda a gente e as moscas vivem em fausto na felicidade da terra de promissão.

Terei eu amado algum dia? É verdade que o amor existe? Nada sei sobre a verdade do amor, mas há uma coisa que me aconteceu, digo-vos. Aquilo foi uma espécie de feitiço, mistério, loucura, isso é que foi.

paulina-chiziane-livroO que é isto? o ritmo? não sei mas – pensei – que maravilha. Foi o que mais me alucinou. Mas onde ouvira eu antes esse ritmo. Havia trechos que me traziam saudades, ecos de Joam Rodrigues do Padrão, da Menina e moça, da Consolação de Samuel Usque, de Camões, daquelas traduções castelhanas e portuguesas de poetas pré-islámicos, das poetas sufis e persas, de Omar Caian, Ibn Arabi e de Al-Mutanabbi.

Emudecemos de repente. As mãos encontraram-se. Veio o abraço tímido. Trocámos odores, trocámos calores. Dentro de nós floresceram os prados. Os pássaros cantaram para nós, os caniços dançaram para nos, o céu e a terra uniram-se ao nosso abraço e empreendemos a primeira viagem celestial nas asas das borboletas. (p.17)

Mas o que havia naquela voz que lia. A África? a narrativa oral africana feita literatura? a voz da consciência da mulher africana? os pousos dos séculos da cultura árabe, das tradições europeias, da literatura portuguesa antiga, acostadas naquelas praias, digeridas, reinterpretadas e postas de novo em andamento no acervo popular para ser de novo culturizadas?

Reconheço que fui lendo o romance com uma admiração crescente, sem perder momento, metendo-me na narrativa e na dor, e encontrando essas vozes que se me faziam conhecidas. Mas com esta, reconheço, realmente nunca contara:

…eu gritava, eu chorava, ninguém me acudia e cada um estava encarcerado no seu mundo.

Ó ondas do mar, não viram o meu amor? Verdes palmeiras, aves do céu, peixes caranguejos, barcos acostados, por onde anda o meu amor? As águas não me responderam continuando o seu marmulhar maravilhoso… (p.113)

Como por vezes não sabemos ou não podemos ler. Que má escola não me permitiu entender antes? provavelmente a falta de leituras prévias, a incapacidade para perceber as conexões. Vou ter de dar outra volta, vou ter de procurar de novo nesses, e noutros livros verdes.

Como por vezes não sabemos ou não podemos ler. Que má escola não me permitiu entender antes? provavelmente a falta de leituras prévias, a incapacidade para perceber as conexões. Vou ter de dar outra volta, vou ter de procurar de novo nesses, e noutros livros verdes.

Sarnau, o percorrido da mocidade quase até a velhice, a ilha, terras da África, capulanas, frutas, jantares, Mwando, o valor de uma mulher em vacas e braçaletes de ouro, casas de palha e barro, a poligamia, o poder, o sofrimento, o lamento, a desesperação, a vida e o sexo, a magia, os reis e rainhas,  e o conhecimento como mercadoria, a procura da liberdade económica, sexual e social da mulher, a violência estrutural dos homens e dos colonialistas numa sociedade na que convivem os velhos ritos tribais, a magia e os novos ritos brancos dos padres. Isso tudo, essa África que tanto esquecemos no mundo tecnológico, e mais, para quem seja melhor leitora, está aí, numa prosa poderosa e lírica.

Floresceram o prados…  Balada, de amor, ao vento, aquela voz que eu sentia ao longe, era a de uma prolongada cantiga de amigo, em voz Africana.

[Este artigo foi publicado originariamente em aviagemdosargonautas.net]