Patacas II: de Macau a Nova Zelândia

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Disque segundas partes nunca foram boas, mas tenho que seguir falando de patacas após o meu primeiro artigo sobre a origem do nome da moeda de Macau. A viagem do termo pataca vai, desta volta, de Ásia a Oceania, seguindo os pegadas das expedições marítimas do século XVI.

Em 1525, três anos depois que a expedição de Fernão de Magalhães completasse a primeira viagem de circum-navegação do mundo, organizou-se uma outra expedição, desde o porto da Corunha, comandada por García Jofre de Loaísa, que tinha por objeto tomar e colonizar as ilhas Molucas (atualmente parte da Indonésia). Era uma frota de seis naus e 450 marinheiros, muitos deles galegos, que tivo uma viagem infernal. Só uma nau chegou às Molucas e muitos morreram, incluindo o próprio García Jofre de Loaísa e Sebastián Elcano, que também formava parte da expedição. Sabe-se o que aconteceu com cada uma das naus exceto com a San Lesmes que, depois de passar o Cabo Horn, em 2 de Junho de 1526, por causa duma tempestade, desapareceu. A sua tripulação tinha cerca de 60 marinheiros, a maioria galegos, mas também bascos e flamengos.

Em 1974, o jornalista e historiador australiano Robert Adrian Langdon publica o polémico livro “The Lost Carabel” (A carabela perdida), no que descreve o que ele acha lhe aconteceu à nau San Lesmes. Ele estava convicto de que os dous canhões descobertos no atol de Mururoa (Polinésia Francesa) em 1929, e resgatados mais tarde em 1969, pertenciam à San Lesmes. Segundo Langdon, a nau poderia ter encalhado perto do atol e, para liberar peso e favorecer o seu reflutuamento, desprendeu-se dos canhões e outros objetos de peso. A partir desses dados e de observações etnográficas e genéticas, Langdon constrói a hipótese de que a tripulação sobreviveu e os seus descendentes se espalharam por outras zonas, incluindo Nova Zelândia e o sul de Austrália, deixando uma influência marcante entre os maoris. Há que ter em conta que tiveram que passar mais de 100 anos para que, em 1642, o explorador holandês, Abel Tasman, chegara às ilhas, e mais outros 100 anos para que, em 1769, os britânicos, chefiados por James Cook, voltaram a fazer a mesma viagem. Atualmente, o autor neo zelandês Winston Cowie defende a teoria de Langdon e afirma que a San Lesmes percorreu as ilhas do Mar do Sul para, finalmente, ancorar na atual Nova Zelândia. O próprio Cowie viajou várias vezes a Galiza para realizar pesquisas que deram lugar à publicação, em 2015, do livro Conquistador Puzzle Trail. Como o espanholismo gosta muito deste tipo de teorias, onde se tenta demonstrar que os castelhanos chegaram aos mares do Sul antes dos britânicos, o polémico livro de Cowie foi traduzido e publicado por Cooperación Española, organismo dependente do Ministerio de Asuntos Exteriores.

Os argumentos invocados por Langdon e Cowie para demonstrar a existência de vestígios da presença da tripulação da San Lesmes entre os maoris estão bem longe de ser conclusivos. Para citar apenas alguns, há a presença de maoris com pele e olhos claros e também barcos com casco e vela latinos, algo totalmente incomum no Pacífico. Além disso, e como é bem habitual nestes casos, encontrou-se um topónimo maori que coincide com um corunhês: Aranga. Um argumento mais sólido é a presença duma árvore originária de Nova Zelândia, o metrosideiro (ou pohutukawa, como lhe chamam os maoris), que se encontra no pátio da comissaria de Monte Alto na Corunha.  Embora não se fizeram provas de datação científicas, os vizinhos dizem que o exemplar tem entre 300 e 500 anos, o que daria mais força à teoria de que os galegos chegaram às antípodas antes que ingleses e holandeses.

No entanto, o argumento que me levou a escrever o presente artigo é a presença de construções tradicionais, chamadas de “pataka” em língua maori, onde os maoris guardam os alimentos e objetos de valor, e que são muito semelhantes em forma e função aos cabaços, celeiros, piornos, canastros ou hórreos galegos. Este argumento também levantou muita curiosidade na imprensa galega e estatal (mesmo Buenafuente fez um monólogo), após um artigo publicado em 2014 no portal GCiencia, por Eduardo Rolland. Langdon afirmava que o nome provém do tubérculo que em galego conhecemos como pataca. No entanto, esta explicação desmonta-se facilmente porque dito tubérculo ainda não se conhecia em Europa nessa altura.

O tubérculo não se conhecia mas sim a moeda. Como já foi mencionado no meu anterior artigo, o termo pataca fazia referência a uma moeda e aparece usado frequentemente com esse sentido, junto com pataco e patacão, em textos portugueses a partir do século XVII. Por exemplo:

Deixem-nos vossas mercês, eisaqui duas patacas para beberem: que naõ ha patacas, instaõ os agarradores, todas saõ falsas A arte de furtar, séc XVII.

Mesmo se o termo pataca não se utilizava em textos castelhanos da época, sim sabemos que a moeda também era de uso corrente entre galegos e castelhanos, como se pode inferir destes excertos:

Entre os galegos, que vieram da Beira prisioneiros, veio um soldado castelhano, o qual diz, que trouxera da sua terra umas poucas de patacas, que seu pai lhe havia dado para o caminho, e que tanto que chegara à fronteira, estando já para sair a campanha, fora ter com o cura do lugar, e lhe deu as patacas, dizendo-lhe, que as guardasse, e que se ele morresse na guerra, ficariam para ele, com condição, que dissesse vinte missas pela sua alma: e que se escapasse, lhas tornaria outra vez a dar. Gaceta de Manuel de Galhegos, séc. XVII.

Não se confirmou a notícia dos três cardeais que se dizia que o Papa tinha nomeado , nem a que tem corrido de que o Imperador se fez senhor em Parma de 17 milhões de patacas, que tinha guardadas naquela cidade a Rainha de Espanha reinante…

… dificultarem o comércio não agradecendo a boa fé com que os ingleses lhe entregaram agora um milhão de patacas, que pescaram junto a Jamaica de um navio espanhol , que ali tinha naufragado. Gazetas manuscritas da Biblioteca de Évora. Vol. I (1729-1731), séc XVIII.

As patacas também percorreram os mares do Sul, mesmo antes da chegada de Cook a Nova Zelândia:

El-rei de Pérsia ganhou na Armênia donde matou 18.000 turcos chegou a Inglaterra o navio do mar do Sul com dois milhões de patacas ainda vão dois navios de Ostende para a Índia. Gazetas manuscritas da Biblioteca de Évora. Vol. I (1729-1731).

Encontramos a pataca-moeda no Brasil desde muito cedo, como o demonstra este texto de princípios do XVII:

E sabemos os que temos experiência do Brasil quão grande abatimento hão-de ter os açúcares. Muitas vezes vi lá vender o branco a cruzado, e a pataca, e algumas vezes a muito menos. Cartas do Padre António Oliveira, séc XVII.

Não achei nenhum uso claro de pataca em textos anteriores ao século XVII, mas é provável que essa moeda já fosse de uso corrente antes do reinado de João III (1521 e 1557), pois foi este o monarca que cunhou o patacão (moeda derivada da pataca), tal e como indica o Vocabulario portuguez e latino de Rafael Bluteau (1638-1734) no corpo da entrada:

Patacão: Antigamente houve no reino de Portugal e as suas conquistas patacões de cobre e de prata. Mandou ElRey João III bater o patacão de cobre. Vocabulário Português e Latino, 1712-1721.

O uso do termo pataca e os seus derivados foi-se estendendo dando lugar a significados metafóricos. Dado que era uma moeda de pouco valor, acabou por ser sinónimo do advérbio nada, tal e como se observa nas expressões, ainda vivas em galego oral, formadas com os derivados pataco e patacão: “não vale um patacão”, “não tenho um pataco”. Este sentido aparece já antigamente nos seguintes dous excertos:

onde é tal a escuridade que se não vê pataca. Cartas: O Cavaleiro de Oliveira, séc XVIII.

Não se rosna bem dell, não sabe disto pataca, não sabe disto boya, não sabe da missa ametade. Infermidades da Língua, séc XVIII.

Mas também se usou o termo para denominar um tipo de árvore originária da Índia e que chegou ao Brasil no século XVIII: á Árvore da Pataca, cujas flores se fecham como um cofre. Disque o rei do Brasil, Pedro I, colocou patacas nas flores da árvore para que se formasse o fruto com as patacas dentro. Depois, enviou para Portugal algumas destas árvores com moedas dentro dos frutos e com uma nota que dizia: “Nesta terra o dinheiro nasce das árvores”. Hoje em dia, árvore das patacas é uma expressão que se utiliza como sinónimo de negócio fácil, do mesmo jeito que a galinha dos ovos de ouro, e que deu lugar ao nome dum concurso de televisão muito conhecido emitido na SIC há mais de 10 anos.

Ora bem, há que lembrar que o nosso objetivo é relacionarmos as patacas-moeda com os canastros maoris. Como explicar a relação entre uma construção para guardar objetos de valor e uma moeda? A língua tem muitos mecanismos para buscar relações lexicais, entre eles, um dos mais conhecidos é a metonímia, que permite referir-se ao tudo a partir da parte, sendo o binómio conteúdo/contentor um tipo muito estendido de relação parte/tudo. De facto, num grande número de contextos linguísticos, o termo que designa o conteúdo é utilizado para referir-se ao contentor. Quando dizemos, por exemplo, “passa-me o vinho” estamos pedindo diretamente a garrafa (contentor) que contém o vinho (conteúdo). Num texto brasileiro antigo, encontrei um suposto uso mentonímico da palavra pataca:

Na pataca do canguinho [avarento] o demônio tem quinze vinténs e dez réis. Maria Lusá, 1910, de Lindolfo Rocha (1862-1911).

Aqui o termo pataca faz referência a um saquinho (contentor) que contém moedas (conteúdo), nomeadamente vinténs e réis. Portanto, por extensão lexical metonímica, o termo pataca, inicialmente usado para moedas, acaba por referir-se a um saco delas. Uma vez realizada esta subtil mudança de significado, a relação entre um contentor de moedas e um contentor de produtos e objetos de valor, como as patakas dos maoris, é mais fácil de estabelecer. Bem é certo que não temos evidência nenhuma de que este uso metonímico fosse habitual na língua oral no século XVI.

Se aceitamos que as patacas (moedas ou sacos de moedas) estavam bem presentes na vida e na língua dos marinheiros da nau San Lesmes, é fácil deixar-se levar pola imaginação para reelaborarmos uma narração dos feitos mais ou menos fantasiosa. É fácil imaginarmos os galegos da San Lemes construindo uma espécie de hórreo para guardar as sementes, comida e objetos de valor, e é fácil também recriar as dificuldades que teriam para dar-lhe um nome consensual: celeiro, caboço, cabaço, cabaz, calustra, caustra, canastro, caniza, piorno, caroceiro, sequeiro, vergueiro, e assim por diante. Dado que este tipo de construções se podiam chamar de muitas maneiras segundo a forma, o material empregado ou o lugar geográfico, não é estranho que se recorresse a um outro termo, pataca, de uso frequente e mais ou menos relacionado com o conteúdo (objetos de valor) e a função destas construções (proteção).

A pegada galega ou portuguesa entre os maoris talvez não chegou da tripulação da San Lesmes, mas doutras muitas expedições que tiveram lugar por volta da primeira circum-navegação de Magalhães. Uma das mais conhecidas teorias alternativas à descoberta “oficial” da Austrália e Nova Zelândia é atribuída ao explorador português Pedro Fernandes de Queirós no início do século XVII. Em realidade, e muitos historiadores concordam, é bem provável que os portugueses tiveram sido os primeiros em chegarem a essas terras pois, desde a primeira metade do século XVI, as naus portuguesas não só percorriam aqueles mares do Sul, mas começavam a estabelecer-se em zonas muito próximas, como a ilha de Timor. No entanto, não houvo colonização dos povos das terras de Austrália e Nova Zelândia por parte dos portugueses, mas só integração e assimilação cultural dalguns marinheiros, seica galegos entre eles, que ali deixaram a sua pegada em forma de cabaços e patacas-moeda.

A importância das patakas na cultura maori reflecte-se no nome dado a um dos principais museus de arte maori, o Pātaka Art + Museum, aberto em 1998 em Porirua, perto da capital Wellington. Como ideia para uma exposição nesse museu, ocorre-me uma na que se misturem as patacas de Coristanco com as de Macau, guardadas dentro de patakas maoris e canastros galegos. É só uma ideia para gestores culturais e de museus que estejam à procura duma boa escusa para fazerem uma viagem a Nova Zelândia.

Não sei se algum dia encontrarei mais material para escrever uma terceira parte sobre as exóticas aventuras e desventuras da palavra pataca, mas se assim for, espero que sirva para abrir uma nova linha de pesquisa focada no estudo da origem, mudança e transmutação do itinerante e transformista termo.

Principais corpus diacrónicos consultados: