Nos dias de hoje são bem conhecidas as gráficas em que se mostra como é que os vírus se espalham. Um indivíduo contagia três, esses três por sua vez outros três, ou nove… É a consequência lógica do contacto interpessoal e das relações em diversos círculos. O mesmo acontece com a literatura no nível social. É uma estrutura complexa onde os diferentes elementos que entram em jogo influenciam outros e por sua vez são influenciados. Esta rede de componentes —não só pessoas, não só livros, também instituições, práticas, doxas, mercado…— é o que se conhece como ‘sistema literário’.
Nesse tecido interconectado há influências e condicionantes que estão diretamente ligadas com o facto literário (estéticas, géneros, intertextualidades…) e fatores que em princípio não o estão tanto (sociopolíticos, culturais, económicos…), mas que incidem igualmente no sistema. Em ocasiões, mesmo em maior medida do que os propriamente artísticos, por assim dizê-lo. Quando se fala de sistema literário também se fala de adesões, jogos de poder, amizades, militâncias, rancores e com certeza também de egos e outras chaves de diâmetro pessoal. E é assim que se explica, entre outros, o nosso campo literário.
E também o facto, provavelmente insólito a nível mundial, de que uma segunda edição de um livro, cuja primeira aparição pública não recebera reconhecimento em forma de prémio, fosse não só nominada, mas se tornasse ganhadora na Gala do Libro Galego. Isto aconteceu neste 2020, em concreto na modalidade de narrativa. Se calhar lembram-se.
E também o facto, provavelmente insólito a nível mundial, de que uma segunda edição de um livro, cuja primeira aparição pública não recebera reconhecimento em forma de prémio, fosse não só nominada, mas se tornasse ganhadora na Gala do Libro Galego. Isto aconteceu neste 2020, em concreto na modalidade de narrativa. Se calhar lembram-se.
Com efeito, o livro seique, de Susana S. Arins, publicado originalmente em 2015, foi reconhecido como um dos melhores daquele ano, e, aliás, como um dos melhores títulos destes primeiros vinte anos do século xx, como se pode ver na consulta realizada por Antía Yáñez e Berta Dávila que publicou Praza no passado 10 de janeiro sob o título “Vinte títulos para os últimos vinte anos”. No entanto, no ano em que se publicou a sua primeira edição, seique não foi nominado a prémio nenhum. Nem no seguinte, nem no seguinte, nem no seguinte, nem no seguinte. De facto, a Gala do Libro Galego não considerou oportuno nominá-lo antes de que uma editora espanhola, De Conatus, o traduzisse sob o título Dicen e vendesse quatro edições em meses. Se calhar por acaso.
O certo é que não é a primeira vez que os prémios desta Gala cometem deslize. Em 2017 as editoriais Xerais e Através publicaram uma obra coletiva em dois volumes, Bolxeviques (Xerais) e Bolcheviques (Através). Pois bem, sendo uma única obra e coordenada por uma mesma pessoa —Teresa Moure—, apenas um dos dois volumes foi nominado à Gala do Libro Galego. Adivinham qual?
O certo é que não é a primeira vez que os prémios desta Gala cometem deslize. Em 2017 as editoriais Xerais e Através publicaram uma obra coletiva em dois volumes, Bolxeviques (Xerais) e Bolcheviques (Através). Pois bem, sendo uma única obra e coordenada por uma mesma pessoa —Teresa Moure—, apenas um dos dois volumes foi nominado à Gala do Libro Galego. Adivinham qual?
A parte mais endogâmica deste sistema literário já se deixou em evidência noutras ocasiões. Que ainda haja editoras que não permitam publicar em reintegrado, que se publiquem livros de Ricardo Carvalho Calero sem respeitar o nome que o autor escolheu para si, que Herba moura, da já mencionada Teresa Moure, vendesse oito edições mas Um elefante no armário nem uma (sim, as leitoras também fazem parte do sistema literário e também podem ser cúmplices do ostracismo, ou como se quiser expressar aquela rara peculiaridade), etc., são exemplos de como os fatores não estritamente literários podem impor-se na hora de outorgar prémios e conceder reconhecimentos.
De facto, a rejeição relativamente à norma reintegracionista é na atualidade tão profunda que Galaxia, quando publicou em 2002 Follas novas de Rosalia de Castro —em edição ao cuidado de Teresa Bermúdez— eliminou elementos utilizados pela autora, como o acento circunflexo, mudado por um agudo (“Diredes destos versos, i é verdade/ que tén [no original ‘tên’] estrana insólita harmonia”) ou o cê cedilhado (“i agora asombran, i agora alegran/ os espasos [no original ‘espaços’] inmensos do ceo”) argumentando que provavelmente ela pretendia refletir o seu sesseio. Especulação e falta de pudor à hora de mexer nos textos da escritora nacional para apagar referentes que nos legitimam.
Quando é que a ortografia vai deixar de ser um valor a julgar? A pergunta continua a ser legítima e oportuna. Se calhar concordam.
[Este artigo foi publicado originariamente no Nós Diario]