Raquel Miragaia vém de publicar Tempo Tardade com a Através Editora, falamos com ela para debulhar algumas chaves do livro, que conta a história de Branca: Após a morte da mãe, Branca volta à casa familiar, agora vazia mas cheia de lembranças da infância. O descobrimento por acaso de uma gaveta cheia de cartas antigas do seu tio-avô, emigrado com 19 anos a Buenos Aires, faz com que Branca se pergunte porque é que a figura do seu tio Serafim mal foi mencionada na sua família. A leitura das missivas e a sua indagação acabarão deitando luz sobre a verdade.
A primeira coisa que não passa desapercebida do teu livro é o título: Tempo Tardade. Podes arrojar algo de luz sobre isto?
Tardade é o topónimo do lugar onde cresci, um topónimo que sempre achei bonito e, em certa medida, simbólico, com essa reminiscência do verbo “tardar”. A expressão “Tempo Tardade” é uma brincadeira que fazia com as amigas quando chegava a Santiago de Compostela depois de um tempo de estar em Tardade. As amigas tinham sempre montes de programas para fazer e eu ainda estava instalada em uma outra dinâmica do tempo, outro ritmo, o que chamava de “Tempo Tardade”. Na minha dificuldade para titular os livros achei que essa brincadeira fazia sentido, penso que o livro está imerso também nesse ritmo mais rural, de lugar pequeno.
A narradora principal do teu romance é Branca, uma mulher que volta para casa dos pais após a morte da sua mãe. É ali onde vai descobrindo uma dura história familiar que desconhecia. No entanto, é realmente ela a protagonista do relato?
Branca é o motivo principal da história, a que faz com que as cousas aconteçam. Em esse sentido pode-se dizer que é a protagonista. Ela e Serafim, dous migrantes mas com uma experiência completamente diferente do deslocamento. Serafim é o migrante de começos do século XX, aquele que migra esperando uma vida melhor num lugar completamente desconhecido, o que fica com uma memória do seu lugar de origem como uma foto, parada no tempo. Branca é a migrante interna, tanto no geográfico como no pessoal. O seu é um movimento muito mais planificado, que tem a ver com a sua criação ou evolução como indivíduo.
Mas também há que dizer que, sendo Branca a que narra e a personagem graças à qual existe a história, não é a ela a quem acontecem as cousas, ou pelo menos não apenas a ela. Nesse sentido, pode-se dizer que não é a única protagonista e que o foco está mais na sua relação com o que descobre e com a casa à que volta.
Em Tempo Tardade há poucas personagens e algumas delas têm pouca presença, como as amizades de Branca ou o seu irmão Isaac. Semelha que a funcionalidade delas é completar a imagem de Branca ou criar contrastes, pelo que me pergunto como é que concebes de forma mais teórica a construção das personagens.
Não estou certa de ter uma conceção teórica apriorística da criação de personagens. Neste caso concreto, interessava-me contar essa viagem de Branca à sua origem desde um ponto da vida em que está preparada para recuperá-la, e, por outro lado, a história de Serafim. Por isso, essas eram as personagens que estavam completamente desenhadas, com a sua árvore genealógica, o seu carácter, e as chaves do que ia contar sobre elas. Efetivamente, as personagens que citas como as amizades de Branca ou Isaac, mesmo a esposa de Serafim ou a sogra, estão aí para completar o desenho das personagens principais. No entanto, acontecem algumas cousas na escrita que escapam a estas planificações. A personagem de Modesta e a de Miguel iam ser muito mais pequenas do que finalmente foram, cresceram um pouco apesar de mim até o ponto de que houve momentos que achei que iam ocultar a Branca e tive que equilibrar o seu peso.
Um motivo presente em Tempo Tardade e em grande medida na literatura feminista galega é a questão dos cuidados. No teu romance aparecem representados de diferentes formas, mas é especial o tratamento que se dá à terra. Atualmente é difícil não ler esse elemento em chave decrecentista e ecologista, mas no teu livro a evolução da terra, concretamente da horta, acompanha também a evolução de Branca. Foi assim como configuraste a imagem da terra?
É muito engraçado que coloques a pergunta nestes termos, porque sempre senti que esta teoria decrecentista que faz tanto sentido na atualidade, é, realmente, uma forma bastante habitual de viver a terra na Galiza rural, pelo menos há uns anos. Por dar dous exemplos óbvios mas muito esclarecedores, existe essa vivência decrecentista na mínima geração de resíduos (sem invólucros, com reutilização, etc) ou na autossuficiência alimentar. Só que essa análise da terra não deve levar a uma idealização, porque o abandono que se vê na atualidade, que de alguma maneira se reflete no romance, também tem a ver com não ter conseguido oferecer uns serviços apropriados para esse rural onde tudo fica longe e chega tarde.
A outra questão, a evolução de Branca à par da criação da horta, tem para mim também uma relação com esse tempo que figura no título. O tempo Tardade, esse tempo que marca as vidas nesse lugar, é o tempo da natureza, tem as suas próprias regras e não adianta muito lutar contra ele. Branca aprende (ou reaprende) a geri-lo, a comprender quais são as horas do trabalho e quais as do descanso, a aceitar o ritmo das conversas e que o dia acaba cedo e todas essas cousas que de alguma maneira tinha desaprendido desde a sua fugida da aldeia.
O tempo Tardade, esse tempo que marca as vidas nesse lugar, é o tempo da natureza, tem as suas próprias regras e não adianta muito lutar contra ele. Branca aprende (ou reaprende) a geri-lo, a comprender quais são as horas do trabalho e quais as do descanso, a aceitar o ritmo das conversas e que o dia acaba cedo e todas essas cousas que de alguma maneira tinha desaprendido desde a sua fugida da aldeia.
A discapacidade também está presente no teu relato, mas de um jeito bastante subtil. Achega-se por meio desta questão uma visão dura do que pode ser uma vida, nomeadamente quando chegamos ao final do romance. Fico com a sensação de que é esse realmente o tema de Tempo Tardade: as vidas que não se contam das pessoas que não importam.
Ultimamente andei pensando que, na realidade, o protagonista do romance é o silêncio, o que não se conta. Porque afinal, os acontecimentos mais importantes não se nomeiam. Por isso, creio que tens muita razão nessa ideia que colocas sobre as vidas que não se contam. A discapacidade, todo tipo de diversidade, a doença, são questões das que se fala pouco, especialmente quando essa discapacidade afeta a saúde mental, mas não só. E eu sempre acreditei que daquilo que não se fala, não existe. Essa negação da existência é uma violência em si mesma, pelo que acho justo trazer essa existência ao plano da literatura, pelo menos isso.
Há outros assuntos no romance que se calam, outros assuntos dos que não devo falar muito para não revelar demasiado da história, mas que são outros dos silêncios que me interessava contar.
A discapacidade, todo tipo de diversidade, a doença, são questões das que se fala pouco, especialmente quando essa discapacidade afeta a saúde mental, mas não só. E eu sempre acreditei que daquilo que não se fala, não existe. Essa negação da existência é uma violência em si mesma, pelo que acho justo trazer essa existência ao plano da literatura, pelo menos isso.
Mencionei que o teu romance tem traços da narrativa feminista galega (protagonismo e presença feminina, os cuidados como pano de fundo, um tratamento não agressivo de temáticas duras e pouco exploradas fora dos feminismos, etc.). Em que coordenadas situas Tempo Tardade dentro da narrativa galega feminista? Utilizarias essa etiqueta para o teu romance?
Imagino que como a maioria das escritoras, não me sinto confortável com as etiquetas. Entendo que são uma ferramenta de análise interessante, mas que pertencem às teóricas e às críticas, elas que devem decidir se Tempo Tardade se situa nessas ou noutras coordenadas. Em qualquer caso, a ideia de uma “narrativa feminista” parece-me conflituosa como género literário. Em que paradigma de classificação existe essa categoria? Temos “narrativa galega marxista”, “narrativa galega liberal”, “narrativa galega ecologista”…? Prefiro pensar que o romance está na categoria de “narrativa de intriga” ou “narrativa de aprendizado” ou qualquer outra etiqueta do género e que o facto de ter uma evidente perspetiva feminista na construção faz parte da minha forma de colocar-me no mundo, ainda que também hei de confessar que estou muito alheia à atualidade da teoria e da crítica literária como para responder com acerto esta pergunta.