Por Fernando Venâncio (*)
A palavra involucrar é portuguesa? Não é. Os dicionários ignoram-na unanimemente, as bases de dados não a registam. E, no entanto, nada impediria que fosse. Temos invólucro, era só questão de arranjar-lhe um verbo. Em espanhol, pelo contrário, involucrar é um termo comum. Quando nós dizemos que alguém se envolveu numa situação, numa causa, ou está envolvido com outra pessoa, um espanhol dirá que se involucró, que está involucrado.
Palavras com esta frequência e esta utilidade, sobretudo se forem achadas ‘expressivas’, serão uma tentação contínua para o falante de dois idiomas muito próximos. Se não se precata, cedo ou tarde acabará por utilizá-las na língua indevida. Entre portugueses utentes de francês, o fenómeno é corriqueiro, e poderíamos chamar-lhe o ‘efeito vacanças’. Com o espanhol, essa transferência é mais tentadora ainda, já que as formas são, muitas vezes, imediatamente utilizáveis. Foi o que sucedeu, um dia, a Luís Figo.
Em inícios de 2010, o ex-futebolista viu-se enredado numa manobra eleitoral de certo governo português em apuros. A TSF guardou registo de uma entrevista à comunicação social, de 18 de fevereiro desse ano, em que Figo informava ter entregado queixa às instâncias judiciais, dizendo haver agido, na ocorrência, «como cidadão público», sem qualquer tipo de contrapartidas. Inquirido por uma jornalista sobre ‘o que sentia’, respondeu: «Para mim, neste momento, um pouco de revolta pela situação em que me vejo involucrado. Mas só posso afirmar que são notícias falsas».
O nosso excelente central jogara em Barcelona durante cinco épocas, seguidas de outras cinco em Madrid. E é conhecida a celeridade com que jogadores e técnicos portugueses conseguem um bom domínio do espanhol. No Real Madrid, também Cristiano Ronaldo e José Mourinho falaram publicamente, desde o primeiro momento, o idioma do Estado. Simples boa educação? Sentido das relações públicas? «Dios debe creer que soy un tío cojonudo», confiou ‘Mou’ a uma rádio. Coisa como «Deus deve achar que sou um tipo bestial». Em gritante contraste, está o nenhum esforço de treinadores e jogadores de língua espanhola em equipas portuguesas por se exprimirem na nossa língua. Prolongam com isso, de resto, uma tradição memorável. Nos nossos séculos XVI e XVII, padres espanhóis pregavam em espanhol, professores espanhóis era nele que ensinavam, e de igual modo procediam confessores e governantes. De Catarina de Áustria, a castelhana politicamente interventora que reinou em Lisboa durante 53 anos, sabe-se que nunca falou português e jamais escreveu uma palavra no nosso idioma. Os seus súbitos interiorizaram, sem brados d’alma, a pouco subtil mensagem.
O percalço linguístico de Luís Figo suscitou algumas, poucas, contestações. Na edição online do Jornal de Negócios, um leitor acusava o toque, perguntando se «involucrado» seria «português técnico». Dias depois, um bloguista retomava o tema, e aventava ter-se dado ali uma fusão de «envolvido» com «encalacrado». Um comentador do blogue, não menos matreiro, propunha para «envolucrar» (sic) a etimologia «envolver» e «lucrar». Era a inventiva maledicência nacional no seu melhor.
Um pormenor importa realçar no episódio: a desinibição, a absoluta naturalidade, com que o antigo internacional se serviu de um vocábulo inexistente no seu idioma materno. Na gravação percebe-se que a palavra involucrado não é precedida nem seguida de alguma hesitação, não é sublinhada, não implica qualquer subentendido. Surge como se pertencesse, desde sempre, ao léxico do declarante e dos ouvintes. O registo desta naturalidade é, aqui, essencial.
Não foi, ainda assim, Luís Figo o primeiro português a servir-se desse inaudito involucrado. Em finais do século XIX, Fialho de Almeida utilizara o termo na série satírica Os Gatos, com um à-vontade em tudo semelhante. Foi aliás este castigado estilista a introduzir entre nós um bom número de espanholismos. Conhece-se o apego de Fialho ao espanhol («A língua espanhola tem para mim um prestígio e uma música que me não canso de ouvir e de gostar») e à literatura espanhola sua contemporânea. Poderá espantar-nos que um prosador tão acirradamente vernáculo, como foi Fialho, se tenha entregado a este namoro. Mas é tudo menos estranho. Precisamente os nossos clássicos mais ‘castiços’ nacionalizaram numerosos castelhanismos. É um dos paradoxos da História do nosso idioma.
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Através da linguagem desportiva, e mais precisamente do comentário futebolístico, vêm-se infiltrando, nos últimos anos, variadas expressões de origem espanhola. Pensemos em rematar de primeira, entrar a destempo, ter mala pata. Há também esse curioso estar a tope, ‘estar na melhor forma’. Isto, quando a gente o entende. Por isso, é simpática a autotradução de José Peseiro ao declarar, acerca do Braga: «É importante estarmos a tope, estarmos no máximo». Também o jogador Postiga se autotraduziu ao dizer, antes de um jogo com a Alemanha: «Temos que estar a tope, temos que estar no nosso máximo». Não o entendeu o Público de 28-V-2012, que assim transcreveu a declaração do avançado: «Temos de dar o máximo para ganhar, para estar no topo». É um saboroso mal-entendido.
A expressão põe, de facto, à prova os meios de comunicação. Em meados de 2012, José Mourinho dizia, em Madrid, numa conferência de imprensa: «Cristiano trabaja a tope, juega a tope». Nos subtítulos da RTP lia-se: «O Cristiano trabalha ao máximo, joga ao mais alto nível». A SIC traduzia: «O Cristiano está a trabalhar ao máximo, a jogar no seu melhor». E a TVI: «O Cristiano trabalha a um nível extraordinário, joga a um nível extraordinário». Nada disto impede que estar a tope continue a ser usado, descontraidamente, por locutores e comentadores desportivos.
A apropriação de materiais espanhóis é, no nosso futebol, moeda corrente. Citem-se caudal ofensivo, caudal de jogo, lance de jogo, antijogo (entrada desleal), cartolina amarela ou vermelha, autogolo, golo à meia volta, plantel, médio volante, liguilha (play-off) ou remontada (recuperação), que André Villas-Boas pronuncia, talvez com intenção, rèmontada. Há, ainda, os mais antigos bandeirola, golaço, goleada e ponta de lança. E não se esqueça a ola humana que se ergue, sempre fascinante, das bancadas de um estádio.
Tudo leva a pensar que os profissionais da palavra desportiva se habituaram a ouvir e visionar desafios comentados em espanhol, donde retêm vocábulos e ditos que acharam particularmente felizes. O facto é que jamais passaria pela cabeça de um locutor ou comentador televisivo espanhol usar, com esta naturalidade, e sem especial motivo, uma designação portuguesa. Nada de muito novo, de resto. Na história das relações dos dois idiomas, sempre essa profunda assimetria foi nítida. É, aqui, indiferente o muito ou pouco êxito das importações, a maior ou menor felicidade das formas. Interessa o mecanismo: o espanhol criou, o português aproveita, grato e leviano.
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É um facto: a olhos portugueses, e no atinente a divertimentos, sempre Castela foi garantia de qualidade. Na música, no teatro e, muito particularmente, nos jogos, são numerosas as denominações que de lá nos chegaram.
São termos musicais provenientes do castelhano fandango, sarabanda, sapateado, charanga e instrumentos como castanhola, pandeiro, pandeireta, realejo. Pertencem à escrita musical copla, refrão, estribilho, redondilha, seguidilha, endecha, vilancete, vilancico e xácara. O âmbito do teatro perfilhou castelhanismos como bastidor, tablado, palanque, plateia, tipos de peças como entremez e sainete (que guardou o sentido de ‘graça’, ‘jeito’) e ainda mascarilha. Da língua de Castela deriva igualmente camarote, que primeiro significou ‘cabine de beliches’ e se generalizou como ‘compartimento para espectadores’.
Em matéria de recreação, vieram-nos entretenimento, temporada, verbena (tipo de arraial), tertúlia e, também pelo espanhol, os dois italianismos festejo e festim. Caso notável é sarau, surgido timidamente no português por volta de 1520, mas em Castela já muito em voga, escrito sarao, com as variantes serao e serau. Trata-se, na realidade, do antiquíssimo galego-português serão (de três sílabas, como o original latino seranu), que designava, como ainda hoje, o período inicial da noite, e que o castelhano quinhentista fez seu para festividades a horas tardias.
O português sarau é, pois, um vocábulo de torna-viagem. Teve bastante uso em Fastiginia, obra de Tomé Pinheiro da Veiga, um português que, em 1605, participou, em Valhadolide, nos longos festejos pelo nascimento de um herdeiro do trono espanhol e, naquele momento, também do português. É um livro delicioso. A capacidade de observação de Pinheiro da Veiga, a colorida e lúdica descrição de ambientes, o à-vontade e humor do relato, o olhar crítico mas solidário que lança sobre atitudes e costumes, tudo faz de Fastigínia (magnificamente reeditada por Ernesto Rodrigues) uma festa do espírito e do idioma. Lê-se nele o fascínio português por essa cultura vizinha, mas tão radicalmente outra, feita de teatralidade, desmesura e talento exibicionista. Há um imenso deslumbre por esse povo que, sendo culto, sabe como nenhum outro divertir-se, e por isso é sociável e comunicativo até aos rebordos da inconveniência. Jamais um livro português retratou tão bem essa Espanha buliçosa das praças ao cair da tarde e semanas inteiras de folguedos, eterna sedução deste nosso melancólico e sisudo país.
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Em qualquer tasca portuguesa, não imagina um jogador de sueca quanto vocabulário espanhol lhe voa sobre a mesa. Há primeiro o baralho (que já foi baralha) com quatro naipes: os ouros, as copas, as espadas e os paus. Deu-se aqui, importa dizer, algum rebuliço semântico. Naipes eram (e são) em espanhol as próprias cartas do jogo. Ao que chamámos naipes chamam os espanhóis palos. Como se percebe, estes palos acabaram num dos nossos ‘naipes’, o de paus, que em espanhol são bastos. Também destes nos ficou alguma coisa: o basto, o ás de paus no jogo do voltarete (do espanhol voltereta, cambalhota), que faz pensar na espadilha, o ás de espadas. Mas o próprio às nos chegou do espanhol, tal como chegaram trunfo e trunfar, tal como vaza (inicialmente do italiano), tal como canasta.
O idioma de Castela proporcionou-nos também aposta, empate, truque (e os correspondentes verbos), jogos de azar, jogos bancados, o doble e o dado (inicialmente do árabe), e ainda termos de menor uso, como descarte (as cartas postas de lado) ou codilho (forma de perder a partida). Caso curioso é o de mirão, cópia de mirón, esse discreto cavalheiro que, habitualmente de pé, segue o andamento de um jogo de mesa. Cúmulo da inventividade: ao plural espanhol mirones foi o português buscar mirone, esse soturno espectador da desgraça alheia. Particular interesse tem ainda joguete, adaptação de juguete, que tomou todos os valores castelhanos: o de ‘brinquedo’, de ‘gracejo’ e por fim o de ‘vítima submissa’, ‘pau-mandado’, o valor hoje mais em voga.
Paredes-meias com estas lúdicas e recomendáveis práticas, vive o mundo tauromáquico, linguisticamente um feudo castelhano. Praticamente toda a terminologia taurina é decalcada do espanhol. Baste lembrar a série tourear, toureio, tourada, toureiro, toureador. Ou ganadaria e ganadeiro. Mais frequente é o uso do espanhol puro e duro: diestro, doblazo, faena, farpa, fiereza, hechuras, quiebro, quite, revolera, recorrido (o ‘percurso’), sertanazo, templar, trapio (de trapío, galhardia). Não faltam os decalques frásicos, como romper praça, chegar ao vulto, sorte de varas, em ares de escola, traje de luzes, citar o touro, sair aos tércios ou a simples corrida de touros. Tudo isto, somado à música, indumentária e cerimonial importados de Espanha, faz da toureação portuguesa – com o pretexto de ‘desporto’, mais o sofrimento gratuito do animal – um estranho enclave cultural espanhol.
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Na última LER de 2012, na coluna «Língua Movediça», procurei mostrar como, na nossa linguagem do desporto, o espanhol ilusión, que significa ‘esperança’, ‘sonho’, ‘fé’, ‘ambição’, vem contaminando o seu correspondente português. Retomo dois ou três episódios exemplares.
Num jogo de Portugal com a República Checa, no Europeu de 2012, um locutor da RTP dizia: «Tudo em aberto ao intervalo. Mantém-se a expectativa, a ilusão». Um treinador, de viagem com a equipa para um jogo internacional, despedia-se assim à TVI: «Partimos com a ilusão de fazer o melhor na Champions». E o frustrado concurso de Portugal e Espanha para a organização do Mundial de 2018 valia-se da frase publicitária «Jugamos en equipo. Une-nos a ilusão». Este último caso comprovou, dolorosamente, o servilismo português. Ninguém fez o mais ligeiro reparo ao desatino, que esteve legível, semana após semana, nos ecrãs da televisão.
Claro: é quase impossível ver um programa familiar espanhol ou ouvir uma declaração de desportista de língua espanhola sem uma confissão de ilusión (e há sempre um panorama ilusionante, ou algo que ilusiona a este ou àquele). Jogadores e técnicos portugueses vivem expostos a este assédio linguístico, e entende-se que isto os condicione. De outros círculos esperava-se, ainda assim, algum sentido crítico. Luís Figo poderá dizer, na apresentação de uma iniciativa estimuladora de futuros desportistas: «Tenho a ilusão de fazer o melhor possível e espero que os jovens gostem». Mas o jornal Record não deveria reproduzi-lo sem um ai. Em Espanha, El Corte Inglés pode festejar a reabertura das aulas com o slogan «El regreso a la ilusión». Mas as filiais portuguesas fazem figura de parvas ao engalanarem, num spot televisivo, com «O regresso à ilusão».
Este seguidismo acrítico está longe de ser pontual. Ao longo de toda a história do nosso idioma, deu-se este acomodamento, aqui razoável, ali papalvo, às criações castelhanas. O português, por princípio, não rejeita. Tem, antes, essa capacidade estonteante de absorver, digerir, integrar. A rejeição que dizemos ter pelo galicismo ou pelo anglicismo foi sempre fogo de vista. Vivemos na leviana convicção duma identidade a toda a prova, tipo «não há mal que nos chegue», e isso inspira-nos essa permissividade eufórica.
Mas não será o próprio inglês um exemplo de alegre absorção? Sem dúvida. Só que aí há uma também alegre reciprocidade. O inglês integra muitos materiais a ele exteriores, outras línguas tiram proveito das criações dele. No caso do português e do espanhol, a assimetria da relação foi sempre gritante, mas também, deve dizer-se, sempre patrioticamente camuflada, não fossem os outros, e até nós mesmos, apanhar um grande susto.
Séculos a fio, aprendemos a divertir-nos à espanhola. Havia, decerto, jogos e divertimentos nacionais, castos e singelos. Mas a diversão a sério, com muito salero e garantido donaire, chegou-nos sempre de Espanha, com as suas regras, os seus hábitos, os seus nomes.
Os ensaístas da cultura têm, nisto, farto material para sondarem a alma portuguesa. E para, provavelmente, se assustarem.
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Nota necessária para o leitor galego
Um português, lendo este artigo, fica sinceramente boquiaberto: ele ignorava que todo esse vocabulário fosse de criação espanhola. Com efeito, um português médio, de espanhol, conhece olé, adiós e pouco mais. São mesmo escassos os portugueses que realmente dominam a língua do Estado vizinho. A verdade é esta: para a generalidade dos portugueses, o vocabulário e a fraseologia mostrados neste artigo funcionaram, sempre, como novidades portuguesas.
No decurso da sua história, a língua portuguesa integrou vários milhares de criações vocabulares e fraseológicas castelhanas. A historiografia linguística portuguesa ignora estes factos, ou limita-se a apontar meia dúzia de exemplos indisfarçáveis. Mas a naturalidade com que essa maciça apropriação se deu só pode significar que os materiais vizinhos foram, de modo implícito mas actuante, sentidos como, por direito, portugueses também. Esta estranha convicção reina ainda, como pode ver-se, nos dias de hoje.
Podemos lamentar ‒ e eu lamento ‒ o comportamento histórico da elite escrevente portuguesa. Resta-nos, actualmente, aumentar a consciência desse fenómeno, e mostrar quanto o português é, e continua, vulnerável. Foi essa a intenção deste artigo, e doutros anteriores em que fiz ver a progressiva castelhanização da prosa ficcional de Saramago. É claro: a ameaça que pesa sobre o português é bem menor que sobre o galego. Mas fica demonstrado, também, que nenhuma ortografia consegue evitar as transferências do espanhol.
(*) Artigo publicado originalmente na revista LER do mês de janeiro de 2014. Prima aqui para descarregar o artigo original em formato PDF.