Por Fernando Venâncio
Ao entrar no Auditório, lobriguei o Manel lá na frente. Ia inaugurar-se ali a novel Academia Galiciana da Língua Portucalense, e o ar já se adensava de tensão e respeitabilidade. Fui ter com o Manel, mas vi-o concentradíssimo, lendo, de lápis em riste. «Estou a acabar», e mirou-me de soslaio.
«928 contra zero. Bom dia, Gaspar!», saudou ele. «Olá, amigalhaço. Nova labuta?», disse eu. «É um texto do venerável Angueira, lido em Abril aos deputados da Comissão de Cultura…» «Eu sei. ‘A Galiza na Assembleia da República’. E então?» «São 928 palavras». «Bom, nada tagarela, o gajo. Bué da fixe». «Mas vê tu a marosca: todas, uma por uma, palavras portuguesinhas. E a pedir, ele, aos deputados portugueses para se habituarem ao léxico galego…». Tive de rir-me. «Armando ao pingarelho, o mariola». «Nem mais. Mas há pior». «Pior?»
O Manel sacou doutro texto. «Repara nesta graçola em Braga. Falou 2480 palavras. E sabes quantas não eram lusitaninhas?» «Sei lá. Umas vinte. Sempre era a capital da Galécia…». «Vinte? Pois são zero. Zero absoluto! Tanto estardalhaço pra isto! É chanfrado, não achas? É reles, é bera. Mas ele há pior». «Pior, mano? Ná!», disse eu. «Então olha. Um livro sobre a Galiza, ‘Berço da Lusofonia’. Está aqui um texto, também do venerável Angueira, com 3069 palavras. Sabes quantas não são lusíssimas?» «Se calhar, também zero». «Aí enganas-te», disse o Manel, «duas não são: ‘rango’ e ‘ponência’». Era troça, pela certa. «Não me lixes, pá. Isso é espanhol!», disse eu. «Pois é. Já vês o desconchavo do valdevinos. ‘Habituem-se ao léxico galego…’ Balelas! Tudo uns trafulhas, uns patifes, uns salafrários», rosnou o Manel, «uma escumalha pirosa que só à bengalada».
As fileiras do Auditório iam ficando bastante compostas. «Hoje acordaste quezilento», insinuei, «se calhar andam só a esconder o galego, por vergonha…». «Alguns escondem-no», disse o Manel, «outros nem no conhecem. Pensam em espanhol e escrevem em português». «Bom», fiz eu, «o português é uma espécie de galego chique». «Pois, como o castelhano foi, durante séculos, uma forma chique de português». «Exacto. E estás a ver, pá? O português sobreviveu. Portanto…» «Portanto, nada», ripostou o Manel, «contra o castelhano, o português tinha a forte base galega. Contra o português, o galego está sozinho».
Tão informada cavaqueira foi quebrada por sons que vinham dos ares, acompanhando a entrada processional dos e das veneráveis. Cantava um coro de celestiais vozes: «Nom abonda, curmáns, com argalhar andrómenas. Nom abonda com verbas prosmeiras, engados renartes. Hossana! Amodinho, passeninho, escaralhades o choio. Aleluia!» O patriarca luso João, que se sentara perto de nós, indagou: «Que língua é esta? Será celta?» Em redor dizia-se: «É caló!», «É latim arcaico!», «É norma agal!», «É dialecto aquitano!», «É estravizano puro!»
Neste ínterim, o venerável-mor subiu ao palanque. Ia falar, mas o coro interpôs-se. «Arelade sem acougo os vieiros ceibes, amosade uma lanzal alentia. Alô um ingel abrente vos gorenta à faciana». Cantavam, claramente, segundo o Acordo Ortográfico. O patriarca brasílico Evanildo estava irrequieto: «Que língua estrangeira é esta?» Responderam-lhe pressurosos: «É uma canção de embalar da Terra Chã», «É o berro genesíaco dos compostelanos», «São as peças do arado em ourensão».
O venerável-mor da Academia conseguiu dominar o coro e encetou a arenga. «Curmáns! Sabede que foi adoito com abraio, com agarimo, e assomade com um celme nos labres, que albiscamos esta juntança. E podo, já que logo, engadir que seica…» Na assistência, levantou-se um burburinho. Que língua falava o alto dignitário? Estaria mangando? A venerável Isabela ergueu-se, franzina, maviosa: «Tolea vostede cecais, assobalhando à mantenta este ateigado eido?»
O patriarca João bichanou para o patriarca Evanildo: «Eles falam línguas! É o novo Pentecostes!». Nisto, impondo ordem, o coro irrompeu: «Nenas, nenos! Decatai-vos da parvada. Genreiras, u-las? Aldraje, u-lo? Falades enxebre. Aleluia! Sodes caralhudos. Hossana!»
O paleio em línguas foi-se alargando entre os e as veneráveis. Mas era patente que não se compreendiam. Não tardou a engalfinharem-se, numa chinfrineira. Dizia um venerável: «Esnaquizo-che as façulas, meijengro». Dizia outro: «Coidas que acadas a latar, paspám?» Mais outro: «Nom petes ao chou, fachendoso!» Outro ainda: «Daquela, pilhabáns, queredes liorta?» Mais outro ainda: «Uma moreia de peringalhos, é o que sodes todos e todas». «Agás eu», dizia um último, «marcho já cara a jalundes». E davam cambalhotas, faziam salamaleques.
Vimos então os patriarcas, o brasílico e o luso, levantarem-se, fugindo espavoridos. «Pailáns! Facheiros! Paletos!», gritava João, furibundo. Nitidamente não o entendendo, Evanildo deitava fumo: «Nugalháns! Paveros! Laretas!». E pediam tipóias para Lavacolha.
O Manel e eu saímos a espairecer, pela saída de serviço. O vivaço rega-bofe estava um tudo-nada sôfrego. Da esquina, olhámos. Pelo portão do Auditório, entravam línguas de fogo.
«Aburinho, Gaspar. Deica a vindeira esmorga», falou o Manel afastando-se. Que dizia ele? Tinha-se o meu amigo passado também? Descortinei, cosendo-se com as paredes, uma sombra cabisbaixa. Era o venerável Angueira. Pensei comigo: «Se quadra, Gaspar, melhor liscas engorde».
Olhei o céu. Iria chover em Santiago? Tão cedo não. Mas havia uma língua de fogo a lamber-me os cabelos.